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Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque
Diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV
1. Características do Plano Collor
O Plano Collor ataca de frente o problema inflacionário. Não havia alternativa, pois o Brasil fora lançado na hiperinflação entre os dias 12 e 13 de março, quando ocorreram prenúncios de uma corrida bancária, apenas evitada com a decretação do feriado bancário nos dias que precederam a posse do presidente Collor. Não havia mais como evitar um achatamento sistêmico, capaz de atacar todas as células doentes do organismo econômico. Amputações, antiinflamatórios, sedativos e outras formas de terapia heterodoxa teriam efetividade apenas como medidas coadjuvantes.
A cura estava a exigir uma intervenção direta na corrente sanguínea da economia. Apenas um tratamento convencional é capaz de fazer isso com efetividade. Um forte aperto fiscal e monetário, seguido de amplas e profundas reformas estruturais, surge, portanto, como a única alternativa para debelar a inflação no País. O Plano Collor tem o mérito de admitir esta verdade elementar. Desmistifica as falsas promessas dos planos heterodoxos, que juram realizar o controle inflacionário sem custos, sem recessão e sem perda de emprego e de renda.
A sociedade brasileira vinha pedindo um programa de estabilização corajoso, consistente e abrangente. O Plano Collor satisfez esses requisitos. A disposição de efetuar um brutal ajuste fiscal de 10% do PIB e de reconquistar os instrumentos de política monetária; os ambiciosos programas de privatização e de desregulamentação propostos; o combate à sonegação; a liberalização e a abertura da economia ao exterior; todos estes pontos foram corajosamente incluídos na estratégia a ser implementada por Collor. As tentativas anteriores de estabilização falharam por não atenderem adequadamente a estas exigências clássicas de uma política de estabilização.
Mas, além desses elementos convencionais de estabilização, o Plano Collor adotou duas medidas excepcionais: impôs severas restrições à movimentação de recursos financeiros e adotou um congelamento de preços, seguido de prefixação. Por quê? Não bastaria uma terapia ortodoxa para estabilizar a economia?
A resposta é, ao mesmo tempo, sim e não. Os instrumentos clássicos de estabilização seriam capazes de reverter a inflação em economias com características fiscais e monetárias tradicionais. No Brasil, a dificuldade se encontra na identidade entre moeda e títulos públicos. A liquidez desses papéis transformou-os em quase-moeda, girada diariamente no mercado monetário, e cuja taxa de expansão era exogenamente determinada pelas operações de rolagem do estoque da dívida mobiliária do setor público.
Os economistas sabem como conter a oferta de moeda, no sentido tradicional. Elevam-se os juros, aumentam-se os depósitos compulsórios das instituições financeiras, corta-se o crédito. No Brasil, contudo, essas medidas apenas tocariam em uma parcela muito pequena dos ativos monetários. Além disso, como o Governo é o maior devedor líquido da economia, a excessiva elevação dos juros inviabilizaria o necessário ajuste fiscal, como ficou patentemente demonstrado no Plano Verão. Fica explicada, portanto, a necessidade das restrições impostas à conversão do cruzado novo para o cruzeiro.
Nesse sentido, o cerne da política de estabilização acha-se na constatação de que a massa de recursos financeiros de alta liquidez, estimada em US$ 120 bilhões, jamais encontraria contrapartida no setor real da economia. Não poderia ser transformada em consumo, ou em investimentos — apenas em mais inflação. O mito de que a liquidez do setor privado poderia dar início a um amplo processo de recuperação dos investimentos era uma miragem, que se desfazia a cada tentativa de realização.
Os agentes econômicos compreenderam este fenômeno. Achavam-se dispostos a aceitar novas regras do jogo, pois afinal se convenceram de que nada tinham em suas carteiras — apenas papéis, que representam haveres de uns sobre os outros. A massa de recursos financeiros não tinha qualquer contrapartida em fluxos de poupança real, capazes de gerar novos investimentos produtivos na economia.
Em realidade, a economia nada poupava, enquanto acumulava uma enorme massa de títulos financeiros. A poupança real privada era imediatamente transferida ao setor público, que a consumia em sua quase totalidade. Esse processo gerou a acumulação de títulos sem lastro. Embora não pudessem ser transformados em demanda efetiva por bens e serviços — pois qualquer tentativa nesse sentido faria explodir a hiperinflação —, representavam uma constante ameaça de desestabilização. Ademais, o acúmulo de ativos no setor privado gerava um efeito riqueza, que tendia a exacerbar a propensão de consumo, dificultando a rolagem da dívida pública, que passava, portanto, a ser feita com juros reais cada vez mais elevados. Era fundamental, portanto, aparar o excesso de liquidez da economia, como ponto inicial de qualquer política de estabilização.
Essa é a lógica do Plano, como de resto sempre foi a lógica de qualquer programa de estabilização que contemple a desvalorização ou o congelamento da dívida pública. Portanto, o Plano Collor não surpreendeu em sua concepção; pelo contrário, havia uma visível disposição da sociedade em aceitar perdas patrimoniais, caso integrassem um consistente programa de estabilização de longo prazo. Afinal, não se pode deixar de reconhecer que parte importante do desajuste do setor público foi o preço da sobrevivência do setor privado ao longo da década de 80.
Mas há uma outra explicação para o uso de políticas pouco convencionais de estabilização. Trata-se da determinação explicitada várias vezes pelo presidente Collor de que os custos do ajuste recairiam sobre as camadas de renda mais elevada. De fato, isso foi feito com maestria.
Urge afirmar, contudo, que, do ponto de vista conjuntural, os custos da estabilização também serão cobrados dos trabalhadores. Haverá recessão e perda de emprego. Apenas em um primeiro momento, a promessa de concentrar os custos da estabilização nos ricos poderá ser cumprida. Realmente, contudo, esses custos se espalharão por toda a economia. Além disso, o congelamento dos ativos financeiros implicará perdas para toda a sociedade, pois abala a credibilidade das instituições, exacerba o intervencionismo, contraria a ordem jurídica e poderá comprometer seriamente a credibilidade do mercado de títulos públicos, um importante instrumento de financiamento do Estado.
A explicação para o congelamento inicial de preços também está ligada à promessa do presidente de não prejudicar o assalariado. A manutenção da política salarial no mês de março — diga-se que qualquer alteração seria recebida com enorme desconfiança pelas lideranças trabalhistas — apenas seria capaz de garantir ganhos ao assalariado se houvesse um congelamento de preços.
Nota-se, portanto, que há razões para o sequestro da liquidez e para o congelamento inicial de preços (embora na prática este último tenha se revelado redundante): a primeira de ordem técnica e a segunda de ordem política. Conclusão: o Plano é clássico em sua essência; as medidas mais heterodoxas são fundamentalmente maneiras engenhosas de distribuir perdas, de acordo com promessas políticas do presidente e respostas a algumas características peculiares da economia brasileira.
Cumpre acrescentar que o plano de estabilização é só uma parte da política econômica que o novo Governo promete executar. Outras importantes medidas deverão ser adotadas se o Presidente da República cumprir seus compromissos eleitorais. A abertura para o exterior, o fortalecimento da iniciativa privada, a desestatização, a modernização industrial e um perfil mais equilibrado de distribuição de renda são apenas alguns dos pontos mais visíveis de uma plataforma de Governo que conquistou o País. Todas essas metas, porém, jamais poderiam ser atingidas em uma economia distorcida e instável como a brasileira.
Não deve haver nenhuma surpresa, portanto, acerca da necessidade de estancar a inflação antes de qualquer outra providência. As tentativas anteriores foram valiosas como aprendizado e mostraram, conclusivamente, que apenas uma política de choque, radical, poderia evitar a explosão inflacionária. De certa forma, a atual equipe econômica contribuiu para precipitar a expectativa de total descontrole da economia ao não articular com o Governo anterior um processo de transição mais suave. Com isso, tornou-se inevitável que o programa de estabilização fosse ousado e implacável.
2. A Implementação do Plano Collor
Sete semanas após a sua decretação, o Plano Collor mostrou toda sua força e suas fraquezas. A inflação caiu para zero, o nível de atividade se recuperou após a virtual paralisação das primeiras semanas; os setores financeiro e bancário voltaram a funcionar, retomando a intermediação financeira entre os setores superavitários e deficitários de liquidez; o desemprego não ocorreu da forma como inicialmente se imaginou; os saldos comerciais aumentaram; o consumo de bens de salários explodiu, em parte com a volta do crediário ao consumidor.
Por outro lado, surgiu um clima de crescente preocupação. Paradoxalmente, houve uma radical mudança nas expectativas. Enquanto no início do Plano se argumentava que o Governo havia errado na dosagem e que, portanto, lançaria o País na maior recessão de sua história, passou-se, após um mês e meio, a temer o excesso de liquidez. Os preços dos ativos de risco subiram acentuadamente algumas semanas após o choque. As taxas de juros caíram dramaticamente, após terem atingido patamares de mais de 2.000% anuais.
O Governo se viu forçado a recuar em várias de suas decisões de expansão setorial de liquidez. Voltou a pairar no ar o temor de um repique inflacionário.
O programa de enxugamento de liquidez foi bruto, rudimentar e pouco sofisticado, mexendo desnecessariamente na credibilidade das instituições financeiras. Recuperá-la não será impossível, nem mesmo improvável. Mas foram custos que não precisariam ter sido incorridos. O uso de alíquotas tributárias decrescentes ao longo de uma estrutura de prazos de aplicação poderia ter tido efeito equivalente, sem os inconvenientes do sério abalo de confiança institucional que o Plano Collor acabou causando.
A reforma cambial foi extemporânea, poderia esperar alguns meses para ser implementada. Sua concretização acabou sendo apenas mais um fator de instabilidade. As exportações foram tributadas por um câmbio desfavorável. Ademais, como o Governo teve o intuito de recuperar os saldos comerciais e acumular reservas, não se obtiveram vantagens em termos de contração da oferta monetária, nem a valorização do cruzeiro, que se seguiu ao choque, contribuiu para o esforço anti-inflacionário, pois as importações não ocorreram por força da contração econômica e do crescimento dos estoques internos ocorridos nos últimos meses do governo Sarney.
No plano operacional, a estabilização não teve um bom início. Levou a economia a uma total paralisação. Houve comunicação deficiente, pouca eficiência administrativa e enorme dose de improvisação.
O Governo não foi capaz de demonstrar que a contenção fiscal que se propunha a realizar era mais do que o diferimento de custos financeiros ou do que ganhos de caixa insustentáveis nos exercícios seguintes. O ajuste fiscal precisa ser permanente, inequívoco e inquestionável para dar sustentação ao plano de estabilização. O Governo, contudo, não conseguiu sinalizar sua disposição nesta tarefa. Houve evidente assimetria na contenção que impôs ao setor privado, vis-à-vis o exigido dele mesmo.
As metas monetárias não são conhecidas. As pressões expansionistas estão se acumulando. Os saldos comerciais, as linhas de crédito do Banco Central, a expansão monetária endógena pela permanência do overnight tal como existia quando a inflação beirava 100% mensais, as volumosas conversões em cruzeiros de impostos, anteriormente em cruzados novos congelados são algumas das fontes de expansão monetária que não foram devidamente equacionadas. Era imprescindível aparar o excesso de liquidez do sistema. Da mesma forma, é fundamental evitar que a contenção monetária inicial seja revertida.
Apesar dessas objeções e preocupações, o Plano Collor atingiu seu objetivo essencial: acabar instantaneamente com a inflação. As críticas enumeradas geraram apreensões quanto à permanência da inflação baixa e amedrontaram por seus acenos recessivos. Mas nem de longe condenaram o Plano Collor ao fracasso.
Contudo, a inflação está viva. O Plano Collor tirou-lhe o oxigênio e a deixou desmaiada. Ao retirar de circulação a maior parte dos meios de pagamento, a demanda se evaporou. As transações cessaram e, portanto, a alta de preço foi totalmente contida. No entanto, ainda lhe restam sinais vitais.
Os mecanismos de realimentação inflacionária não foram destruídos. Poderão, a qualquer momento, aplicar uma respiração boca a boca na prostrada inflação brasileira. Além disso, foram aplicados alguns choques de custos, que poderão reativar suas funções respiratórias.
A contenção de liquidez teve como principal objetivo retirar do sistema o excesso que se concentrava nos títulos públicos — e nas últimas semanas antes do choque, também nas cadernetas de poupança. Portanto, se apenas o excesso foi retirado, a oferta monetária deixada em circulação deveria ser suficiente para manter o nível de atividade nos patamares anteriores à decretação do programa anti-inflacionário.
O raciocínio estaria correto se os mecanismos de intermediação financeira continuassem funcionando. Porém, isso não ocorreu de imediato. A complexidade administrativa do programa paralisou o setor financeiro por várias semanas, levando igualmente à paralisia da produção. Além disso, o seqüestro de liquidez fez o efeito riqueza engrenar marcha à ré. Os antigos detentores de ativos financeiros altamente líquidos viram-se subitamente mais pobres, o que lhes reduziu a propensão de consumo.
Os fatores que poderiam reanimar a espiral inflacionária não foram totalmente eliminados do quadro econômico. Existem ameaças de que os aumentos de preços possam não estar contidos em definitivo.
No Brasil, a inflação não pode ser totalmente explicada pelos mecanismos keynesianos clássicos. Vários fatores poderiam justificar um forte e crescente componente expectacional. A indexação, a persistência dos déficits públicos, o encurtamento dos prazos de aplicações financeiras, os impasses gerados pelos crescentes endividamentos interno e externo foram fatores que compuseram um quadro bastante complexo, realimentando vigorosamente as pressões inflacionárias. São problemas que apenas poderão encontrar soluções duradouras em reformas estruturais nas condições de funcionamento da economia.
A indexação, a persistência dos desequilíbrios financeiros do setor público e os impasses gerados pela expansão incontrolável do endividamento do Governo também explicam a explosão de liquidez que se reproduzia organicamente na economia brasileira. A excessiva liquidez foi gerada pela moeda indexada, alimentada endogenamente pelo financiamento do déficit público. O overnight — e seus desdobramentos — foi o meio de cultura no qual a inflação se reproduziu, pois esse ambiente de propagação inflacionária ainda não foi destruído.
Além disso, o Plano Collor impôs ao setor produtivo um forte choque de custos. Seu impacto inflacionário logo será sentido. Inicialmente, a busca de liquidez prevaleceu sobre a procura do lucro e da rentabilidade. Porém, com a recuperação do fluxo produtivo, essas pressões fatalmente emergirão nos preços. A economia brasileira não é capaz de conviver com uma recessão suficientemente forte e profunda para evitar que as pressões de custo sejam repassadas aos preços.
O Plano do Governo impôs aumentos de salários reais em março; impôs altos custos financeiros para os setores que necessitaram de empréstimos para saldar suas folhas de salários; vários preços públicos, como combustíveis e energia elétrica, sofreram majorações; a retração na produção multiplicou os custos fixos unitários; o cruzeiro sofreu forte desvalorização após algumas semanas de quedas, aumentando o preço dos produtos importados.
No campo tributário, os impactos foram enormes. A agricultura passou a pagar IR. O IPI foi aumentado. Os prazos de recolhimento foram reduzidos. O fim da sonegação e da economia informal — embora plenamente justificável do ponto de vista moral e ético — implicou um inequívoco aumento da taxa de extração tributária exigida do setor privado.
É preciso não esquecer que a estrutura tributária brasileira é deformada, ineficiente e custosa. Além disso, foi calibrada para ser aplicada sobre meia nota. Se aplicada sobre o valor integral da produção, a carga tributária brasileira aumentaria velozmente, implicando forte impacto nos custos das empresas. Portanto, há riscos de que esses choques de custos reflitam na inflação.
O Plano Collor tem falhas que podem ser corrigidas, sofre ameaças que podem ser contornadas e tem méritos que precisam ser preservados. É preciso lembrar que o sucesso inicial do programa de estabilização deve ser a senha para o início de profundas reformas estruturais, capazes de garantir a retomada do crescimento e a manutenção de taxas de inflação aceitáveis.
3. Perspectivas de Estabilidade
Os primeiros resultados do Plano Collor foram positivos. A inflação foi zerada. Contudo, o nível de atividade, como era esperado, sofreu uma queda significativa. A pergunta fundamental, portanto, é saber se a inflação permanecerá baixa e qual o grau de recessão compatível com esse objetivo. Evidentemente, ainda é necessário avaliar se o Plano Collor é consistente com as metas que propõe atingir.
O plano de estabilização se revestiu de enorme ousadia. A violência das medidas provavelmente coloca essa tentativa de estabilização em uma posição singular em regimes democráticos. O congelamento dos ativos financeiros foi uma medida totalmente inesperada e, por isso, de enorme impacto em todo o funcionamento do sistema econômico.
Contudo, há que se avaliá-lo sob duas perspectivas temporais. No curto prazo, os resultados foram avassaladores. A liquidez encolheu, a demanda agregada sofreu uma redução fortíssima, as contas do setor público se equilibraram, o preço dos ativos de risco despencou, os juros reais explodiram e a inflação foi zerada. Todos esses efeitos resultaram, fundamentalmente, do choque contracionista aplicado na economia.
O principal impacto do Plano Collor — o enxugamento da liquidez — resultou de medidas que comprometeram seriamente a credibilidade das instituições econômicas do país. Houve violações de normas estabelecidas, sem as quais uma economia de mercado não pode florescer. A confiança no mercado financeiro foi seriamente abalada, o espaço para colocação de títulos públicos foi drasticamente reduzido, o intervencionismo e o dirigismo estatais foram fortalecidos em detrimento da liberdade dos agentes econômicos, e o estatismo avançou a passos largos.
Poder-se-ia contra-argumentar que a ameaça hiperinflacionária justificaria a imposição de uma autêntica economia de guerra, na qual os indivíduos abrem mão de seus direitos em favor dos interesses sociais. Tal argumento implica uma situação de absoluta excepcionalidade, na qual se vislumbre um horizonte de retorno à normalidade do funcionamento dos mecanismos de mercado. Em outras palavras, admite-se a violência inaudita do Plano Collor, desde que envolvida por expectativas altamente liberalizantes para a economia.
Nesse sentido, surge uma primeira grande dúvida: o componente heterodoxo do Plano — congelamento seguido de prefixação — não pode se tornar o centro da estratégia do Governo na sequência do Plano Collor. Assim, a decisão tomada pelo Governo em fazer o congelamento ser seguido por uma taxa de prefixação igual a zero pode ser um perigoso indício da síndrome do Plano Cruzado. Ao permanecer o congelamento da cesta básica de produtos, o Governo pode estar enveredando pela trilha dos planos de estabilização que se enroscaram na traiçoeira armadilha do excessivo intervencionismo.
Na mesma linha, percebe-se com preocupação que as autoridades optaram por administrar a liquidez da economia apelando para medidas setoriais, ao invés de fazer uso dos instrumentos macroeconômicos, cuja eficácia foi, em grande parte, recuperada pelo próprio Plano Collor. Ao adotar essa estratégia fortemente dirigista, o Governo entra em terreno movediço, ampliando fortemente a margem de erro de suas decisões, como de fato ocorreu quando o Governo foi forçado a recuar em várias de suas decisões a respeito da liberação da conversão de cruzados novos em cruzeiros, apenas cinco ou seis semanas após tê-las implementado.
As políticas fiscal e monetária tradicionais deveriam dar sustentação a um efetivo e rápido descongelamento. A rápida liberalização da economia, seguindo as próprias manifestações do Governo no lançamento do plano de estabilização, deveria ser a etapa seguinte do choque. Reformas estruturais, capazes de fortalecer a economia de mercado e a livre iniciativa, deveriam ser rapidamente implementadas, ao invés do aprofundamento do intervencionismo que se seguiu às primeiras semanas do Plano Collor. Ao serem atraídas pela mística do congelamento, as pressões de antecipação de compra se tornaram mais acirradas. As expectativas inflacionárias se exacerbarão pela inevitável constatação de uma inflação reprimida, a exemplo das experiências anteriores de estabilização. Seria preferível uma inflação positiva, mas baixa, dentro de um regime de liberdade de mercado, a uma trajetória de inflação reprimida por congelamentos e controles administrativos. A primeira evoca credibilidade, ao passo que a segunda destila desconfiança.
A consolidação dos primeiros resultados do Plano Collor exige uma opção rápida, porém inequívoca pela liberalização. As formas heterodoxas de estabilização se esgotaram em si mesmas. Precisam ser seguidas por uma política essencialmente liberal, dentro de um contexto de profundas reformas estruturais.
É preciso uma ampla reforma financeira que crie novos instrumentos de financiamento do Estado e que evite o ressurgimento do overnight como quase-moeda. Mais importante ainda é evitar que as taxas de juros nos mercados monetários se transformem em indexadores da economia. A permanecerem as atuais instituições, o retorno ao overnight — aliás, incentivado pelo Governo — fará crescer, novamente e de forma endógena, a oferta de moeda indexada e o nível de liquidez da economia. O Governo não deve ignorar os alertas de vários economistas que apontam para a importância da contenção do crescimento da oferta de moeda no controle da inflação, uma vez equacionado o problema do excessivo estoque de liquidez.
É preciso conter a expansão da moeda. A inflação futura dependerá da expansão dos meios de pagamento, e não do seu estoque. Urge explicitar as metas monetárias ao longo dos próximos 12 meses, com reprogramações bimestrais. Uma importante alteração institucional é proibir o Banco Central de financiar o Tesouro, sob qualquer hipótese. O Banco Central só deveria ser autorizado a emitir cruzeiros para a conversão de cruzados novos ou para a compra de câmbio; mesmo assim, sujeito às metas de expansão monetária. O objetivo dessa medida é garantir um ajuste fiscal permanente e consistente, do ponto de vista intertemporal, que, por enquanto, é apenas uma expectativa. A independência do Banco Central seria garantida pela criação de um conselho de administração, responsável pela definição de suas metas operacionais.
Igualmente fundamental é a recuperação de credibilidade do mercado financeiro. É urgente a criação de um novo título com absolutas garantias de segurança e estabilidade de regras. Trata-se de oferecer ao público uma alternativa ao consumo, ao dólar e ao entesouramento. Esta meta, contudo, jamais será obtida com a continuidade do dirigismo estatal, profundamente associado, na mente dos agentes econômicos, com a instabilidade de regras no funcionamento da economia.
Embora o sequestro de liquidez seja justificado no sentido de haver aparado excessos, há o risco de que este seja descongelado com excessiva liberalidade. Igualmente preocupantes são as dúvidas que permanecem quanto aos impactos das eventuais devoluções, ao cabo de 18 meses de retenção. Nesse sentido, o Governo deveria encontrar formas não inflacionárias de pré-pagamento daqueles saldos.
É interessante notar que, embora o setor produtivo se encontre pouco endividado junto ao Governo e ao setor financeiro, a economia brasileira como um todo exibe índices de endividamento consideravelmente elevados. Isso se deve aos passivos do setor público, incluindo a dívida mobiliária e os resíduos do Sistema Financeiro da Habitação. Assim, surge, como alternativa, a conversão dos cruzados novos congelados dentro de um amplo programa de privatização das empresas estatais.
As reformas estruturais também não podem ser adiadas. Sem elas, permaneceriam atuantes as causas primárias das pressões inflacionárias no Brasil — a abertura da economia, o desmantelamento dos cartórios, o remodelamento dos mercados financeiros, a maior competição, o controle permanente do déficit público, o enxugamento do Estado, a redução do intervencionismo, a prioridade social nos gastos governamentais, a austeridade monetária, mais liberdade no funcionamento dos mercados e uma implacável legislação antitruste. Estes são alguns dos mais importantes temas para uma agenda de consolidação dos resultados de curto prazo já alcançados pelo Plano Collor.
Apesar dos traumas, da indignação e do sofrimento de muitos, o programa de estabilização do Governo foi aceito pela sociedade brasileira. Seus resultados, não surpreendentemente, estão sendo notáveis. Contudo, até agora, esta foi a parte mais fácil, de menos atritos. Há muito por fazer, contudo, para evitar que este enorme esforço seja em vão.
Originais recebidos em 7 de maio de 1990