Publicado no Livro: Curso de Direito Tributário e Finanças públicas - Do Fato à Norma, da Realidade ao Conceito Jurídico - 2008.
Marcos Cintra
Economista; Professor titular da Escola de Administração de Empresas de São
Paulo (EAESP/FGV); atual Vice-Presidente da Fundação Getulio Vargas – FGV/SP;
bacharel em Economia (B.A. cum laude, 1968) pela Universidade de Harvard (EUA);
Mestre em Planejamento Regional (M.R.P., 1972) pela Universidade de Harvard;
Mestre em Economia (M.A., 1974) pela Universidade de Harvard; Doutor em
Economia (Ph.D., 1985) pela Universidade de Harvard
1. O surgimento do imposto sobre movimentação financeira
O IPMF/CPMF é, sem dúvida, um dos tributos mais polêmicos instituídos no Brasil. Sua discussão teve início no contexto da proposta de criação do Imposto Único, em janeiro de 1990, quando propus um novo modelo tributário para o país.
Segundo esse projeto, haveria apenas um imposto de características arrecadatórias, incidente sobre movimentação bancária. Os demais tributos, tipicamente fiscais, seriam eliminados gradualmente, permanecendo em vigor apenas aqueles essencialmente extrafiscais, destinados a servirem como instrumentos de regulação ou intervenção do poder público na economia, como o imposto de importação ou o imposto territorial rural, ambos nitidamente extrafiscais. A proposta do Imposto Único tinha como base o conceito de pagamento monetário ou, de maneira mais moderna, a transação financeira realizada por meio do sistema bancário.
Um breve histórico do conceito do Imposto Único é necessário para entender as razões que levaram à criação do imposto sobre movimentação financeira. A ideia do imposto único remonta ao século XVIII, com os fisiocratas franceses, que defendiam a taxação da terra como única fonte de receita para o governo. Embora o conceito tenha uma longa tradição na evolução do pensamento econômico, nunca pôde ser concretizado, devido à falta de uma base tributável ampla o suficiente para gerar receita suficiente sem a necessidade de alíquotas confiscatórias. No entanto, modernamente, o conceito da transação financeira como base impositiva tornou-se viável, e o Brasil é um dos poucos países que preenche plenamente os requisitos necessários.
A primeira condição é a existência de um sistema bancário altamente informatizado, com um sistema nacional de compensação de cheques e documentos. A segunda é a predisposição cultural da sociedade para não utilizar moeda manual, substituindo-a por diversas formas de moeda escritural. Apenas o Brasil preenche totalmente esses dois requisitos, sendo referência mundial em tecnologia bancária.
Além disso, o Brasil é uma das economias mais desmonetizadas do mundo, onde a moeda eletrônica substituiu amplamente o uso de moeda manual.
A proposta do Imposto Único nos primeiros anos da década de noventa gerou um grande movimento em prol de mudanças na estrutura de impostos em todo o país. A corrente favorável a um sistema de tributos não-declaratórios abraçou o projeto do Imposto Único, enquanto defensores dos impostos declaratórios passaram a desqualificá-lo, destacando problemas que sua implantação poderia acarretar. O imposto único possui inúmeras vantagens inquestionáveis, tornando a fiscalização mais simples, evidenciando os critérios de taxação e reduzindo os custos para o poder público e o setor privado.
Logo após a apresentação da proposta, ela foi apresentada na Câmara dos Deputados pelo então Deputado Federal Flávio Rocha como emenda à Constituição, a PEC 17/91. Isso desencadeou uma intensa discussão sobre a urgente necessidade de uma reforma tributária no Brasil durante o governo Collor, levando à criação da Comissão Ary Osvaldo Mattos Filho em 1991, durante o governo Collor, para elaborar um modelo de reforma tributária para o país. A Comissão endossou oficialmente a criação de um tributo sobre movimentação bancária para financiar a seguridade social.
Em 1992, durante o governo Itamar Franco, foi instituído o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), que vigorou de agosto de 1993 a dezembro de 1994. Em 1996, já como presidente da República, Fernando Henrique Cardoso criou a CPMF, Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, que permanece em vigor até o presente momento. Apesar da polêmica jurídica e econômica que a cercou, essa nova espécie tributária se mostrou robusta e produtiva.
Embora mantenha a denominação de "provisória", a CPMF vem se consolidando como um tributo duradouro no sistema tributário brasileiro, sendo uma das experiências mais amplas, duradouras e abrangentes dessa nova espécie tributária no mundo. Apesar de não ser uma experiência pioneira, a aplicação de um imposto sobre movimentação financeira no Brasil se destaca por duas características em seu processo de implantação. A primeira, negativa, é ter sido usado como um tributo adicional, descaracterizando a intenção original de ser único. A segunda, positiva, é sua amplitude, duração e abrangência, tornando-se uma referência mundial.
Entretanto, a implementação no Brasil foi antipática aos olhos de especialistas e da opinião pública. Implantado como uma solução emergencial para gerar caixa para o orçamento federal, o IPMF/CPMF teve suas receitas vinculadas a programas específicos e desrespeitou princípios constitucionais, como a anterioridade e a não-cumulatividade. Além disso, iniciou o uso abusivo de contribuições não compartilhadas, uma tendência que persiste.
Várias dessas questões foram respondidas juridicamente, outras foram sanadas por meio de alterações e aperfeiçoamentos para atenuar seus impactos econômicos indesejáveis, como isenções para operações em bolsas e movimentações tipificadas como operações financeiras. Críticas, como a da cumulatividade, revelaram-se frágeis, tanto teórica quanto empiricamente.
As críticas, no entanto, persistiram, principalmente do ponto de vista econômico. Durante a discussão no Supremo Tribunal Federal, alguns ministros apontaram a cumulatividade no imposto sobre movimentação financeira. A crítica mais resistente é a da cumulatividade, que vem se mostrando frágil tanto teórica quanto empiricamente. Algumas críticas, como a temor de excessiva verticalização da produção, desintermediação bancária, uso de circuitos financeiros off-shore ou informais, iniquidade e regressividade, foram consideradas sem fundamentos sólidos.
A discussão sobre o IPMF/CPMF afastou objeções legais e econômicas que se opuseram à sua implementação. Seus méritos e sua formulação conceitual contemporânea credenciam-no a se tornar um tributo relevante no século XXI, como afirmou a Professora Maria da Conceição Tavares.
2. Globalização e informatização: “a cashless society”
A crescente intensificação na movimentação de mercadorias e capitais no mundo moderno impõe novos parâmetros de comportamento nos setores privado e governamental. A automação e as sofisticadas formas de gestão, principalmente nas empresas transnacionais, aumentaram vertiginosamente a produtividade e geraram escalas mundiais de produção. As empresas passaram a realizar planejamento estratégico em um contexto global, padronizando produtos e práticas administrativas por todos os países onde atuam. As transnacionais projetam seus produtos, adquirem insumos, produzem, vendem e aplicam recursos financeiros em escala mundial, independentemente da localização física de suas matrizes e filiais. Os circuitos financeiros internacionais movimentam somas vultosas de recursos a cada dia, tornando praticamente impossível a tarefa de acompanhar, controlar e classificar tais fluxos e suas representações materiais para servir de base para um sistema tributário convencional.
O avanço tecnológico e a revolução da informática começam agora a alterar profundamente as formas como as trocas se realizam nas economias contemporâneas. O dinheiro de papel será substituído pelas mais variadas formas de moeda escritural, como o cheque, o dinheiro de plástico e a moeda eletrônica.
Em breve, as economias modernas serão totalmente desmonetizadas. A desconfortável moeda manual, anti-higiênica e de custosa manipulação, que, como lembrado por Keynes, é uma relíquia bárbara dos tempos em que os meios de troca eram mercadorias com valor intrínseco, irá desaparecer. O termo "cashless society", cunhado pela revista The Economist, resume um novo ambiente econômico em gestação no mundo moderno.
O desaparecimento da moeda manual ocorreu precocemente no Brasil, induzido pela inflação crônica entre as décadas de 60 e meados de 90. Estimulada pela corrosão do valor da moeda manual, a sociedade brasileira investiu pesadamente no sistema bancário e deixou de usar dinheiro vivo. O Brasil se antecipou a uma tendência mundial e já opera com taxas de 3% de monetização (papel-moeda em poder do público) em relação ao PIB, certamente a mais baixa do mundo entre as economias ocidentais.
Nesse complexo cenário, cabe indagar sobre os impactos gerados na administração tributária. Qual o efeito desse fenômeno sobre os contribuintes? Os atuais sistemas tributários estão estruturados sobre bases convencionais de incidência. A renda pessoal, o lucro das empresas, o consumo e o patrimônio são as formas predominantes de exação. Mas cada uma delas assume características distintas frente à globalização.
Profissionais altamente qualificados, com elevado nível de renda, passaram a ter uma mobilidade que jamais tiveram. É o caso dos grandes artistas, esportistas e magnatas, que subitamente passaram a ser estrelas mundiais, em vez de brilharem apenas em seus âmbitos locais e regionais. Esses definem seus domicílios fiscais e investem seus rendimentos em países onde a tributação é menor, tornando-se alvos voláteis para os fiscos de seus respectivos países.
No caso dos lucros das empresas, a mobilidade é ainda mais acentuada. As grandes empresas multinacionais dispõem de modernos instrumentos que permitem reduzir seus desembolsos tributários. A utilização dos preços de transferências e a livre escolha na localização de suas sedes operacionais são ações implementadas como forma de minimizar suas obrigações fiscais.
A facilidade no transporte de pessoas por todo o mundo também afeta a tributação do consumo. Comerciantes e turistas podem adquirir produtos de elevado valor agregado em países que oferecem preços mais reduzidos. Além disso, nota-se que a expansão acelerada do comércio eletrônico dificulta a tributação por meios convencionais declaratórios, que se tornam incapazes de identificar os locais de origem e destino da operação.
A utilização de sistemas tributários convencionais dentro desse contexto de dramáticas mudanças de paradigmas comportamentais e administrativos é caldo de cultura propício para o surgimento de "paraísos fiscais". Há dezenas espalhados pelo globo. Os privilégios tributários proporcionados pelas "offshore companies" criadas nessas ilhas ou países permitem a montagem de complexas operações envolvendo fundações familiares, sociedades de serviços especializados, "trading companies" e fundos de investimentos, criando dificuldades enormes para a gestão de estruturas tributárias ortodoxas baseadas em impostos tradicionais.
Nota-se, portanto, acentuada deterioração na capacidade de tributação dos governos nacionais. As atuais estruturas fiscais vivem em constante ameaça em função de decisões tomadas por pessoas e empresas em diferentes partes do mundo e sobre as quais os governos nacionais possuem escassa possibilidade de controle. Tal situação leva o poder público a buscar compensação na excessiva tributação de bases menos voláteis, como os assalariados do setor formal. Isso, por sua vez, gera estímulos à evasão para os setores que se sentem prejudicados.
Neste ambiente, os métodos de controle e fiscalização do fisco são igualmente modernizados, mas o sistema tributário e seus modos de ação continuam estruturalmente arcaicos. As formas de tributação não se ajustaram à realidade do novo modo de produção que surge no mundo moderno. O paradigma "fordista" de produção facilitava a fiscalização tributária. Isto levou ao desenvolvimento de métodos de arrecadação e controle baseados no sistema "autodeclaratório com auditoria", ou seja, o próprio contribuinte declara sua movimentação física, econômica e financeira e oferece ao fisco os resultados obtidos em sua atividade produtiva. Ainda hoje, um quilo de salsicha que sai de Chapecó, em Santa Catarina, é acompanhado fisicamente pela fiscalização desde o momento que sai da fábrica, com sua nota fiscal discriminando tipo, peso, embalagem, valor, etc., até seu destino final.
Ao chegar em algum supermercado em qualquer ponto do país, o produto é conferido, fiscalizado e visualmente inspecionado. Se isto fazia sentido no passado, tal método tornou-se hoje um exercício de patente futilidade. Não há como aplicá-lo, por exemplo, às centenas de milhões de transações realizadas diariamente em economias modernas como o Brasil, ou a um consultor que envia suas recomendações a seu cliente, em outro continente, por e-mail, de sua residência. Nada mais ineficaz.
O Brasil precisa adequar seu sistema tributário ao mundo contemporâneo. A informatização dos bancos e a predominância da moeda eletrônica convergem para a adoção de um sistema de impostos baseado na movimentação financeira.
3. Reforma tributária urgente
Roberto Campos foi um ardente defensor do imposto eletrônico, do imposto único e dos impostos não-declaratórios. Tal postura pode surpreender aqueles que afirmam que ele era um conservador empedernido. Estão equivocados. Ele foi sempre original, um iconoclasta, um criador de paradigmas.
Entre 1964 e 1967, foi o responsável pela reforma que criou as bases do atual sistema tributário. A partir dos anos 80, o político Roberto Campos passou a criticar a administração pública brasileira. Dizia: "continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível", e apontava o sistema tributário como um dos maiores obstáculos a serem removidos pelo país. No debate sobre o tema, entre as reformas simplificadoras e as inovações revolucionárias, Roberto Campos preferiu ficar com as últimas.
Ele percebeu que os tributos sobre valor agregado, os IVAs, tidos como justos e eficientes, escondiam uma outra realidade, bem menos atraente, e cujas deformações eram ampliadas em países com organização federativa. O resultado é a exacerbação burocrática, a galopante corrupção, a exasperadora complexidade, os proibitivos custos de arrecadação, a irresistível evasão e a convidativa sonegação.
Em 3/11/1991, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado "Reforma ou revolução", Roberto Campos afirmou que a ética fiscal brasileira fora destruída. Dizia que pagar impostos no Brasil é comprar chateação e que apenas as empresas organizadas do setor privado e os assalariados com carteira assinada é que pagavam tributos diretos. Os outros dois terços, que sonegavam, eram classificados por ele como delinquentes.
E prosseguia dizendo naquele memorável artigo que, "em matéria fiscal, o país tem chance de uma experiência pioneira com o imposto único. Isso pela coincidência de circunstâncias inexistentes alhures: a) tanto a ética como a estrutura fiscal entraram em colapso; b) a economia está desmonetizada -o papel-moeda em poder do público é de 1% do PIB; c) o sistema bancário é surpreendentemente eletronificado para um país do Terceiro Mundo". Campos completou, afirmando: “A meu ver, as características de uma revolução fiscal seriam: 1) um fato gerador suficientemente amplo e simples para elidir a fronteira entre contribuintes e delinquentes; 2) alíquotas suficientemente baixas para tornar ridícula a engenharia da sonegação; 3) coleta automatizada para tornar dispensáveis as três burocracias do fisco; e 4) repasse instantâneo aos beneficiários, evitando-se as complicações da indexação dos tributos. Todas essas condições são satisfeitas pela proposta do professor Marcos Cintra e por nenhuma das propostas reformistas”.
Desde então, Roberto Campos se tornou um guerrilheiro da reforma tributária e dos impostos sobre movimentação financeira. Contudo, a forma desastrada de implantar o IPMF/CPMF proporcionou aos críticos uma oportunidade valiosa para satanizar aquele tributo. Criou-se o mito de que, por ser cumulativo, ou em cascata, ele seria necessariamente de baixa qualidade, e por isso deveria ser combatido.
Com sarcasmo, Roberto Campos distinguia dois tipos de cascata, uma maligna e outra benigna. A primeira compreende tributos como o PIS e a Cofins (que ainda eram cobrados em cascata), de recolhimento inevitável. A segunda diz respeito aos impostos que reduzem as obrigações fiscais, tais como o Simples e o Imposto de Renda sobre o lucro presumido. As críticas são sempre dirigidas ao primeiro grupo. Assim, quando a carga tributária pode ser reduzida, a cascata é considerada benigna até pelos ferrenhos críticos da cumulatividade. Contudo, quando a cascata implica carga tributária alta, torna-se diabólica. Exemplo claro e inegável se dá com respeito às críticas à CPMF, em razão de esse tributo ter se mostrado insonegável.
As discussões em torno da reforma tributária em 1999 dentro da Comissão Especial da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados deram origem a uma proposta excessivamente conservadora, que Roberto Campos classificou de "aperfeiçoamento do obsoleto". Dizia ser a reforma tributária uma demanda fundamental para nos aproximarmos da "riqueza atingível" e para combatermos a "pobreza corrigível". E o instrumento seria um tributo sobre movimentação financeira nos moldes da CPMF, por ser um tributo universal, insonegável, e capaz de alcançar todos os agentes econômicos, eliminando a iniquidade dos impostos declaratórios que permitem que alguns contribuintes sejam fortemente onerados, e que os sonegadores tenham cargas tributárias individuais sensivelmente mais baixas.
A CPMF tem um mérito inegável, convenientemente ignorado por vários de seus críticos: o de eliminar do atual sistema tributário sua maior aberração, qual seja, as diferenças artificiais de custos de produção causadas pela ampla e generalizada sonegação de impostos no país. A sonegação cria uma vantagem comparativa perversa. Permite a sobrevivência de empresas ineficientes na produção, desde que ousadas na sonegação; e deixa morrer as que são competitivas na produção, mas tímidas na evasão. A forma pela qual a evasão de impostos distribui a atual carga tributária implica distorção econômica mais grave do que a alegada alteração nos preços relativos que um turnover tax, como a CPMF, poderia estar causando na economia brasileira.
No mundo global e informatizado, não se deve imaginar que os impostos convencionais e ortodoxos gerados na era do papel, dos livros contábeis, das barreiras físicas de transporte e de comunicação
, e do isolacionismo político e econômico serão capazes de evitar a generalizada evasão tributária e de servirem de base para a urgente reforma tributária que o Brasil necessita.
Recentemente, iniciou-se no mundo o que vem sendo chamado de “flat-tax revolution”. Vários países do leste europeu vêm implementando significativas mudanças em seus sistemas tributários. A unificação de impostos foi adotada em 1994 pela Estônia, que criou uma alíquota de 26% sobre a renda para substituir quatro tributos. Em seguida, Lituânia, Letônia, Rússia, Sérvia, Ucrânia, Eslováquia, Geórgia e Romênia seguiram a mesma diretriz.
4. Uma nova base tributária
A simplificação tributária do leste europeu é um exemplo que vem despertando interesse em todo o mundo. Conduzir a simplificação à sua consequência lógica, unificando impostos em uma única base real, exigiria identificar uma base ampla para permitir alíquotas marginais módicas e evitar a evasão e a sonegação.
A partir dos anos oitenta, tornou-se evidente que a base mais ampla possível é o fluxo monetário. No Brasil, com a ampla e sofisticada informatização do sistema bancário e a predominância da moeda escritural sobre a moeda manual, é fácil concluir que a base não-declaratória da movimentação financeira seria a mais adequada para implantar um sistema simplificado, barato e imune à clandestinidade econômica. Uma autêntica reforma tributária deveria juntar a ousadia simplificadora das experiências do leste europeu com a eficiência técnica do modelo da CPMF brasileira. No entanto, a tendência predominante é a adoção de bases tradicionais como a renda, o lucro e o valor agregado.
Há propostas que unificam vários tributos (ICMS, IPI, ISS, PIS, Cofins, e contribuições ao INSS), tomando o valor adicionado como fato gerador, uma espécie de IVA único. Como pude demonstrar no artigo "IVA único serve para o Brasil?", publicado na Gazeta Mercantil em 29/3/2005, a alíquota necessária para gerar a mesma arrecadação que todos os tributos extintos será próxima de 40%. É evidente que, como a evasão varia na proporção direta da alíquota nominal do imposto, surgirá um grande estímulo à sonegação, o que irá agravar as mazelas do sistema tributário atual.
No Brasil, o padrão de incidência tributária é caótico, imprevisível, devastador, a ponto de poder fazer quebrar uma empresa eficiente que paga impostos, e de fazer sobreviver uma ineficiente, que sonega e saqueia seus concorrentes. A CPMF neutraliza esta anomalia. Em geral, o custo da evasão acaba superando a própria economia tributária. Esta é a vantagem de um imposto não-declaratório, que, por ser insonegável, permite alíquotas baixas, porém universais.
5. Críticas e respostas
Tornou-se moda acusar a CPMF de uma série de defeitos que não poderiam, por lógica ou justiça, ser atribuídos a ela, ou apenas a ela. Impostos sobre movimentação financeira possuem qualidades. Apesar das usuais acusações de cumulatividade, impossibilidade de desoneração nas exportações, regressividade e outras distorções, a CPMF vem se firmando como um tributo confiável, robusto e, sobretudo, justo, por ser insonegável. A CPMF é a única espécie tributária que sobrevive incólume aos intensos debates sobre como reformar o sistema tributário brasileiro. Criticada, tornou-se, porém indispensável.
Mas, se uma mentira repetida muitas vezes acaba virando verdade, já é hora de questionar muitas das alegações que vêm sendo feitas sobre a CPMF antes que se tornem universalmente tidas como verdadeiras.
Afirmam que a CPMF, por ser um tributo cumulativo, é um imposto burro. Mais à frente rebateremos este argumento. Mas cumpre dizer, desde já que impostos em cascata não são necessariamente ruins. As recentes teorias da tributação ótima, juntamente com postulados da teoria do second-best, de safra mais antiga, já deveriam ter convencido os economistas de que não se pode concluir a priori se um tributo cumulativo introduz mais ou menos distorções na economia. Um tributo em cascata com alíquotas baixas pode ser melhor, do ponto de vista alocativo, que tributos sobre valor agregado com alíquotas altas.
Outra crítica comum é factual. Afirma-se que a cumulatividade da CPMF, e da Cofins e do PIS quando ainda eram cumulativas, atinge, em apenas oito etapas de produção, carga de impostos de 25% no preço final. Trata-se de um equívoco numérico elementar. O conceito de número finito de etapas de produção é destituído de sentido. O processo de produção é sempre circular. O número de etapas é infinito para qualquer produto.
Simulações utilizando uma matriz de insumo-produto para 33 setores de produção, fornecida pelo IBGE, comprovam que a carga tributária é inferior a 9% em todos os setores da economia. Foi tomada por base a alíquota de 1% em cada lançamento bancário.
Há quem diga que a CPMF vai contra todos os modernos princípios da ciência tributária e contraria tudo o que fazem os outros países. A primeira parte da crítica é falsa e a segunda, irrelevante.
Políticos, economistas e tributaristas de boa estirpe no Brasil e no mundo apoiam impostos sobre transações financeiras e os recomendam em seus trabalhos e estudos. Entre os economistas, James Tobin (Prêmio Nobel), Rudiger Dornbusch, Roberto Campos, Maria da Conceição Tavares e o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel. Entre os políticos, Flávio Rocha, Luiz Roberto Ponte (autor de emenda de grande popularidade no Congresso), Luiz Carlos Hauly (autor de outra respeitada proposta), e os senadores Paulo Octávio e Jefferson Peres, dentre inúmeros outros.
Não importa se outros países não se valem de impostos como a CPMF. É possível que não tenham atingido as mesmas condições materiais para desenvolvê-la, como generalizada desmonetização e sofisticada informatização bancária. Mas mesmo que pudessem utilizá-la, porque deveríamos copiá-los, e não nos anteciparmos a eles, como se faz agora? A CPMF é um imposto moderno, produto da era da informática, e sua futura utilização em outros países do mundo será inevitável. No entanto, persistem temores acerca dos impactos da CPMF nos mercados financeiros e nas exportações.
Nos mercados financeiros e de capitais temia-se que a CPMF aumentasse os custos das aplicações financeiras, reduzindo sua rentabilidade de curto prazo. Temia-se, ainda, que a incidência do tributo sobre as operações em bolsa poderia afugentar os fundos estrangeiros, podendo até levar à mudança do centro de liquidez das ações brasileiras para o exterior. Estas críticas são pertinentes, porém perfeitamente administráveis.
A isenção da CPMF, inicialmente aos investidores estrangeiros nas bolsas de valores a partir de 2001 deu início a uma série de necessários aperfeiçoamentos na regulamentação desse imposto. Em seguida, através da lei 10892/04 que criou a conta-investimento, tornaram-se isentas também todas as movimentações financeiras estritamente dentro do mercado financeiro e de capitais.
Contudo, a cumulatividade ainda é a crítica mais frequente. Teme-se que a cascata provoque impacto indesejado nos preços e prejudique a produção e a exportação. Em realidade, qualquer imposto, seja ele cumulativo, ou não, terá impacto no preço final do produto e, portanto, "prejudica" a produção. O que nem sempre é notado, no entanto, é que um imposto em cascata com alíquota baixa (como a CPMF) pode ser preferível a um imposto sobre valor agregado com alíquota alta (como o ICMS). A grande atratividade da CPMF é que por ser insonegável, admite alíquota nominal baixa para um dado nível de arrecadação, ao passo que os impostos declaratórios convencionais, por serem fortemente sonegados, exigem alíquotas altas para arrecadarem o mesmo valor. Vê-se, portanto, que ao contrário da afirmação dos críticos, a CPMF prejudica menos a produção, e consequentemente as exportações, que os impostos convencionais.
6. Cumulatividade
O escritor inglês C. C. Colton afirmou que "há enganos tão bem elaborados que seria estupidez não ser enganado por eles". A mitificação da superioridade da não-cumulatividade sobre os tributos em cascata é um desses trágicos enganos.
Há alguns anos, a bandeira da não-cumulatividade foi transformada em dogma, dando-se início a uma guerra santa contra tributos cumulativos como o PIS, a Cofins e a CPMF. É curioso notar que importantes tributos cumulativos como o Simples, o Imposto de Renda cobrado sobre lucro presumido, o ISS e até mesmo extravagâncias como o ICMS cumulativo (por exemplo, quando cobrado sobre faturamento no setor de alimentação em São Paulo), entre inúmeros outros casos, não são criticados. As objeções se restringem à CPMF e ao PIS-Cofins cumulativo.
A crítica da cumulatividade foi colocada com clareza por Delfim Netto no trecho reproduzido abaixo:
“O sistema tributário deve ser o mais neutro possível com relação às distorções que sempre produz sobre os preços relativos. É por isso que um sistema com tributação sobre o valor adicionado é considerado melhor do que o que utiliza o imposto em cascata... Não existe nenhum teorema de finanças públicas que demonstre esse fato.”
“Sabemos, sim, que o critério da cobrança em cascata introduz profundas distorções nos preços relativos (em geral, não se conhecem a direção nem a dimensão das distorções). O professor Marcos Cintra tem estudado teórica e empiricamente esses problemas e seus trabalhos merecem atenção porque diminuem a potência da crítica superficial à cascata. Pena que ele não esteja no Congresso para enriquecer os debates.”
“Uma coisa é certa: a sua pregação teve um efeito importante sobre a Receita Federal, como se pode deduzir das posições assumidas pelo ilustre ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel.”
“Nós continuamos com a “crença” de que o sistema de valor adicionado é superior (do ponto de vista alocativo, isto é, do desenvolvimento econômico) ao de cascata.”
Como se vê, economistas, políticos, tributaristas e empresários acreditam que a cumulatividade é a fonte dos males do sistema tributário brasileiro. Os críticos dos tributos em cascata defendem os impostos sobre o valor agregado (IVA) afirmando ser essa forma de cobrança neutra, justa e eficiente.
A cumulatividade sempre esteve presente no sistema tributário brasileiro. Mesmo com a forte campanha anti-cumulatividade encetada pelas principais lideranças empresariais e pelo governo, os tributos cumulativos podem causar menos impactos negativos e, portanto, serem preferíveis aos impostos sobre valor agregado (IVAs).
A alegação de que a CPMF é ruim porque é cumulativa é um puritanismo hipócrita, porquanto não existe imposto perfeitamente não-cumulativo, um ideal teórico e jamais encontrado na vida real. Ademais, por ser a CPMF um tributo insonegável, não causa as imensas distorções de preços relativos e, portanto, alocativas, que a sonegação, estimulada pelos tributos convencionais, introduz na matriz interindustrial brasileira. Essa, sim, é uma perversidade, uma aberração, que seria amplamente evitada com o uso de tributos eletrônicos como a CPMF. Em várias simulações publicadas, mostrei que um imposto cumulativo sobre as movimentações financeiras, com baixa alíquota, provoca menos distorções sobre os preços relativos do que um IVA sonegável com alíquota elevada.
A alegação de que o IVA provoca menos distorção nos preços relativos pode ser verdadeira quando avaliada sob a condição "ceteris paribus" e considerando a hipótese de sonegação zero. Entretanto, as hipóteses que confirmam a vantagem do IVA não são observadas na prática. A sonegação é um fenômeno disseminado na economia brasileira e a aplicação de um sistema de cobrança sobre o valor agregado, ao exigir uma alíquota absurdamente elevada, irá incentivá-la. Ademais, a suposta vantagem do imposto sobre valor agregado em relação ao menor impacto sobre os preços relativos é baseada na aceitação de que os mercados são competitivos perfeitos. Sabe-se, contudo, que os mercados não satisfazem essa hipótese.
A única base tributária capaz de enfrentar a sonegação é a movimentação financeira.
Mesmo sendo cumulativo, esse imposto, ao permitir a aplicação de uma alíquota reduzida sobre um sistema não-declaratório e automático, minimiza a sonegação, criando um sistema mais justo, e reduz os custos administrativos para os agentes públicos e privados.
No tocante às distorções nos preços relativos, apresento na tabela abaixo o resumo de um ensaio que produzi, utilizando a matriz insumo-produto do IBGE, para apurar o impacto sobre os preços de 42 setores da economia de um imposto sobre a movimentação financeira (IMF), comparativamente a um sistema com ICMS, IPI, INSS e ISS.
Reunindo os setores em cinco grandes grupos, mostro que o impacto de um IMF, com alíquota de 5,3% dividida no débito e no crédito de cada lançamento bancário (que geraria a arrecadação equivalente), faz os preços pós-impostos se distanciarem dos preços sem impostos entre 11,3% e 18,5%. Já o IVA causa elevações de 32% a 50,9%. Analisando os desvios nos preços relativos setoriais causados por cada um desses dois modelos, nota-se que foram de 4,4% no caso do IMF e de 8% no sistema tradicional.
Vê-se, portanto, que a cumulatividade não é o principal problema a ser enfrentado na construção de um novo sistema tributário. As distorções nos preços relativos de um IMF são bem menores que as causadas por um IVA. O foco das preocupações do administrador público deve ser a eliminação da sonegação, a redução do custo operacional e a ampliação da base tributária imponível.
José Roberto Affonso e Érika A. Araújo afirmam que os tributos cumulativos “são mais fáceis de serem cobrados e pagos...”, ao passo que os sobre valor adicionado são “mais complexos de serem apurados e mesmo compreendidos”.
Em sua argumentação contra os impostos cumulativos, os autores dizem que os tributos cumulativos são “os mais danosos à competitividade da produção nacional, pela dificuldade em eliminar integralmente sua incidência sobre um bem exportado e pela vantagem que oferecem às importações que, em regra geral, não se sujeitam ao mesmo tratamento no país de origem”.
No tocante a essa observação, é interessante notar a reação do Professor José Alexandre Scheinkman ao ser convidado a proferir palestra sobre competitividade comercial e harmonização tributária. Disse ele: “competitividade é uma noção que não faz nenhum sentido para um país como um todo. Todos os países têm maior competitividade ou menor competitividade em produtos diferentes”. E complementa: “a ideia de que a estrutura tributária... afeta a competitividade, a meu ver não faz sentido”.
O Professor Scheinkman demonstra com precisão que os fatores que deprimem a produtividade em uma economia são a sonegação e a economia informal. Se o sistema tributário induz altas taxas de sonegação e elisão, a produtividade deixa de guardar correlação com os investimentos em tecnologia e com eficiência administrativa e gerencial. Uma empresa de baixos custos de produção pode não ser “competitiva” frente a outra que sonegue os tributos, ainda que os custos de produção da empresa sonegadora sejam mais elevados. Isso estimula a sobrevivência de empresas ineficientes e deprime a produtividade econômica do país.
Em outras palavras, a remoção da cumulatividade não aumentará a produtividade da economia, pois dela resultarão aumentos das alíquotas dos impostos convencionais e, portanto, maior sonegação. O grande vilão do sistema tributário atual não é a cumulatividade, mas sim a sonegação resultante da complexidade e das altas alíquotas implícitas nos modelos tributários declaratórios atuais.
Finalmente, cumpre esclarecer que a verdadeira prova de eficiência de um sistema tributário é sua capacidade de arrecadar. De nada adianta um tributo ser teoricamente neutro, justo e eficiente, se na prática não consegue arrecadar o esperado, ou então se gera padrões de comportamentos nos contribuintes que neutralizam, e muitas vezes até revertem, suas anunciadas qualidades.
Visões românticas enxergam na cobrança de tributos a expressão do espírito cívico do cidadão cônscio de seus direitos e deveres. Humanitários passaram a acreditar que a única maneira de redistribuir riqueza e renda é através da cobrança punitiva de impostos dos mais eficientes e mais abastados. Economistas e líderes políticos buscam nos impostos, ou na isenção deles, o caminho para estimular o desenvolvimento econômico. Ecologistas e sanitaristas usam o sistema tributário como forma de proteção do meio ambiente e de punição para infratores de suas regras conservacionistas. Planejadores urbanos e regionais utilizam-nos como mecanismos de indução para alcançar objetivos socialmente desejáveis. Agricultores querem a reforma agrária pela tributação dos latifúndios.
Em suma, todos procuram no sistema tributário a solução para seus problemas. Como afirmou Everardo Maciel, “isso serve apenas para demonstrar que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos imprevisíveis, ditados por razões fortuitas ou motivos insondáveis”. A multiplicidade de objetivos a serem atingidos pelo sistema tributário tornou-o altamente complexo, burocratizado, caro, ineficiente, altamente corrupto e fortemente indutor das mais variadas formas de evasão.
O formalismo teórico tão grato aos economistas de gabinete que buscam identificar nos impostos seus impactos alocativos e distributivos com milimétrica precisão, revela-se cada vez mais ilusório. A realidade econômica não se ajusta aos precisos modelos econômicos construídos no campo da alta abstração. Nas palavras de Mangabeira Unger, a visão acadêmica desdobra-se em meio a “ilusões edificantes e tranquilizadoras”. Mas “o mundo é selvagem e obscuro”. Não existe o mundo da competição perfeita.
Na mesma linha e raciocínio, Delfim Netto declara que a ciência econômica deixa a impressão de ser: “um corpo de conhecimento progressivo, uma ‘ciência dura’”. Prossegue o autor: “o que toda essa sofisticação esqueceu é que ela está apoiada em dois postulados implícitos: 1) que não existe sonegação, isto é, que todo o cidadão é prisioneiro de normas sociais rígidas, que lançam o opróbrio sobre o sonegador e 2) que o recolhimento desses impostos não tem custo, isto é, eles saem direto do livro texto para a caixa do tesouro... ‘Quando se leva em conta a falsidade desses dois postulados, começa-se a duvidar da qualidade das recomendações sugeridas e a ter mais respeito intelectual pelas propostas dos ‘ ‘impostos não-declaratórios’ ...”
O resgate do conceito da arrecadação como meta fundamental e prioritária do sistema tributário encontra respaldo também em UNGER (1998) onde ele confirma a necessidade de se resgatar a função arrecadatória dos impostos ao escrever que impostos indiretos, mesmo cumulativos, podem “gerar muito dinheiro com pouco desarranjo econômico”, ao passo que impostos diretos e progressivos, tão caros a economistas em suas torres de marfim, “como o Imposto de Renda sobre a pessoa física, não produz a receita necessária. Nem pode fazê-lo, por enquanto, sem acarretar desincentivos, fugas e evasões devastadoras”. Unger vai além e diz que o essencial é gerar “dinheiro para o Estado investir no social”.
Finalizo este texto reproduzindo o pensamento de Paulo Rangel, brilhante consultor legislativo na Câmara dos Deputados, sobre a polêmica do imposto sobre movimentação financeira.
“A tributação das movimentações financeiras é ainda um tema infrequente na literatura especializada. Atualmente o Brasil é o detentor da primazia na mais rica, ampla e bem-sucedida experimentação no campo dessa peculiar técnica tributária”. “Nessa matéria, não há socorro disponível em inglês, francês, alemão, japonês ou italiano. Por uma vez, somos o único referencial de nossas próprias reflexões, e a experiência brasileira é a referência básica para os estudiosos estrangeiros”.