Fernando Rezende
Folha de S. Paulo, 12/02/90
Há muito que o sistema tributário brasileiro padece de graves enfermidades que debilitam a receita governamental e atormentam a vida dos contribuintes sem que tenha sido possível adotar a medicação conhecida para resolver os seguintes problemas: como evitar que sejam aumentadas as injustiças que caracterizam o sistema tributário brasileiro? Como fazer com que o aumento da arrecadação seja alcançado mediante a melhoria na eficiência dos mecanismos de controle e fiscalização de molde a eliminar a sonegação e combater a evasão fiscal? Como mobilizar apoio político suficiente para que o aumento da arrecadação seja alcançado pela erradicação dos privilégios e pela redução dos incentivos e de outras modalidades de favorecimento fiscal?
O professor Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque anuncia, agora, um remédio milagroso. Em artigo publicado na Folha, em 14 de janeiro de 1990, ele propõe uma revolução tributária capaz de resolver, de um só golpe, todos os conflitos que marcam as complexas relações Estado-contribuinte e que não tiveram solução ao longo dos últimos 200 anos. Por que não substituir as inúmeras formas de tributação existentes no Brasil - diz ele - por um único imposto: o Imposto Único sobre Transações? Afinal, a cobrança de muitos impostos (federais, estaduais e municipais) complica a vida dos contribuintes, dificulta a tarefa dos administradores e torna mais difícil avaliar a efetiva repartição do ônus tributário e o grau de injustiça do sistema. O imposto único reduziria os custos da arrecadação como os custos privados relacionados ao cumprimento das obrigações fiscais. Simples, não? Por que, então, solução tão milagrosa nunca foi aplicada? Indagado a respeito, o professor Marcos Cintra responde que a implantação desse imposto não poderia ter sido feita antes porque ela depende da informatização do sistema bancário. Será que o Brasil é o primeiro país a preencher esse requisito?
Para que se opere o milagre não é preciso invocar nenhum poder sobrenatural, basta adotar como base única da tributação as transações monetárias. O imposto único seria aplicado toda vez que fossem realizados pagamentos, cobrado sobre o valor da transação e repartido, eqüitativamente, entre as duas partes envolvidas. A arrecadação seria feita automaticamente a cada lançamento de débito e de crédito no sistema bancário, uma vez que as contas credoras e devedoras seriam debitadas em um percentual fixo do valor da transação, seja ela efetuada mediante cheque ou outro tipo de ordem de pagamento. Assim, o sistema bancário poderia transferir automaticamente o montante arrecadado para os cofres federal, estaduais e municipais, segundo critérios a serem estabelecidos.
Para o autor, o paraíso fiscal do imposto único traria ainda outras vantagens: ficaria impraticável qualquer tentativa de sonegação, pois bastaria fiscalizar a compensação bancária; a alíquota do imposto poderá ser baixa, o que também desincentivaria a sonegação; seriam também tributadas as transações especulativas e financeiras; ficaria garantida a progressividade na distribuição do ônus tributário.
A tese básica é a de que, por incidir sobre o valor total das transações bancárias, a alíquota do imposto poderá ser baixa: uma alíquota de 2% seria suficiente, conforme estimativa do autor, para gerar uma receita de 25% do PIB. Como explicar um resultado tão surpreendente quando a arrecadação de todos os impostos federais, estaduais e municipais hoje existentes não chega a alcançar a cifra equivalente a 20% do PIB? Mágica? Não. O fantástico volume de transações bancárias que permite multiplicar a arrecadação com uma alíquota tão baixa deve-se à frenética especulação financeira que eleva o volume de transações no sistema bancário muito além do que seria necessário para sustentar o valor real dos negócios. Ou seja, a alíquota é baixa porque as transações diárias de caráter especulativo são freqüentes, inchando, artificialmente, a base do imposto sugerido. Vale a pena lembrar que a aplicação de uma alíquota de 1,+% sobre o faturamento de todas as vendas de mercadorias e serviços no país - alíquota correspondente ao Finsocial - produz uma receita de apenas 1,5% do PIB. Mesmo que a sonegação do Finsocial seja elevada (alguns a estimam em 50%) é fácil ver que a receita a ser obtida com o imposto único de 2% sobre pagamentos referentes a transações de compra e venda de mercadorias e serviços dificilmente ultrapassaria a casa dos 5% do PIB.
À primeira vista parece uma solução genial. Apenas um quinto da arrecadação prevista seria proveniente do setor produtivo. As transações de caráter especulativo no sistema financeiro arcariam com o ônus mais elevado: quatro quintos da arrecadação. Uma reflexão mais cuidadosa, no entanto, põe a nu a fragilidade da proposta. O sistema tributário giraria em torno da especulação financeira que por sua vez é sustentada pelo próprio Estado. É o cachorro - ou melhor, o leão - mordendo o próprio rabo. A tese do imposto único, tal como proposta, só sobrevive nas trevas do overnight. Exposta à luz do dia ela perde toda a aparência de vitalidade e consistência.
A afirmação de que o imposto único aplicado a transações com mercadorias e serviços garante progressividade ao sistema tributário também é facilmente contestada. Esse imposto tem as mesmas características do Finsocial (um imposto em cascata, com alíquota uniforme aplicada ao faturamento das empresas) que é unanimemente apontado pelos especialistas como o mais perverso dentre os impostos que compõem o sistema tributário brasileiro. O argumento defendido baseia-se na suposição de que os produtos supérfluos envolvem um maior número de transações que os essenciais e suportarão, portanto, uma carga tributária mais elevada. Mesmo que isso fosse verdadeiro, as diferenças de carga tributária seriam insignificantes dado o baixo valor da alíquota e, portanto, incapazes de dar conta das enormes diferenças na distribuição da renda nacional (caso as diferenças de carga tributária o justificassem, a integração vertical da produção de bens supérfluos se encarregaria de eliminar as alegadas características de progressividade do imposto).
Outros fatores ainda concorreriam para agravar a injustiça. O autor argumenta que a sonegação só seria possível quando as transações fossem efetuadas em moeda (ou por escambo) passando ao largo da compensação bancária. Como o acesso à conta bancária e ao cheque pressupõe o preenchimento de alguns requisitos (estabilidade no emprego e nível de renda, por exemplo) boa parte da população brasileira - os 30% mais pobres - já estariam previamente condenados ao sacrifício. Eles teriam de arcar com uma alíquota duas vezes mais elevada, que corresponde ao desincentivo criado para desestimular as transações em dinheiro. Mesmo os trabalhadores mais felizardos - aqueles aquinhoados com uma conta bancária - dificilmente escapariam ao pagamento da alíquota duplicada. É fácil imaginar que as regras propostas estimulem o comércio a rejeitar cheques nas vendas ao consumidor, principalmente quando se tratar de mercadorias de primeira necessidade e de menor valor. Isto porque o vendedor não sofreria o desconto de 1% na compensação bancária enquanto o comprador teria de pagar duas vezes mais a cada saque que efetuasse na sua conta para comprar as mercadorias de que necessita. O lucro do comerciante seria totalmente isento do imposto, que seria inteiramente repassado para o consumidor.
Nas transações entre empresas, o sistema do imposto único estimularia o subfaturamento generalizado e desestimularia a intermediação financeira. Não havendo registros contábeis nem a necessidade de comprovar a origem do rendimento para explicar o acréscimo patrimonial, a intermediação financeira doméstica ficaria ameaçada pelas vantagens não-tributárias concedidas à transformação dos excedentes financeiros em dólar, ouro ou depósitos bancários no exterior. Não só a sonegação pode atingir níveis elevados, como também os riscos envolvidos são muito maiores do que os que se relacionam diretamente com o não-pagamento das obrigações tributárias. Desde os primórdios da humanidade, os governantes estão à busca de um imposto que tome impraticável a sonegação. Assim como o moto-perpétuo, ele provavelmente nunca será inventado.
Nada foi dito sobre as conseqüências da adoção do imposto único do ponto de vista das necessidades de estímulo à exportação. Nesse caso, todos os ganhos obtidos no passado no sentido de isentar as exportações da incidência de impostos domésticos seriam cancelados. Não haveria meio de isentar o produto exportado do imposto pago nas etapas anteriores do processo de produção e circulação de mercadorias, posto que regrediríamos à idade da tributação em cascata - um lamentável retrocesso. Não só o produto seria onerado: pelas regras sugeridas, as operações internas de financiamento à exportação também seriam tributadas, contrariando as propostas de estimular a liberalização do comércio e a integração do Brasil ao mercado internacional.
Causa espanto o eco provocado pela proposta de criação do imposto Único. O editorial da Folha do mesmo dia a incluiu como uma das alternativas inovadoras que devem ser tentadas para que os objetivos de modernização do país possam se! alcançados. De modo geral, parece haver uma clara simpatia pela proposta. E preciso cautela, no entanto, para evitar maiores estragos no já combalido sistema tributário brasileiro, severamente castigado por uma enxurrada de mudanças casuísticas nos últimos anos. A reforma do sistema tributário aprovada pela Constituição de 1988 não criou o sistema tributário dos nossos sonhos, mas lançou as bases para o seu progressivo aperfeiçoamento, nos limites dados pela realidade brasileira. A consolidação desses avanços dependerá da regulamentação dos dispositivos constitucionais que deverá beneficiar-se do debate e da discussão de idéias inovadoras.
A proposta do professor Marcos Cintra tem a marca da ousadia que estimula a polêmica e contribui para o desenvolvimento dos argumentos necessários ao fortalecimento de princípios e convicções. Nesse sentido, ela é extremamente bem-vinda.