Publicado no Livro: Direito Tributário - Política fiscal - 2015.
Introdução
Uma das mais importantes questões contemporâneas na Administração Pública é encontrar caminhos para adequar os meios de financiamento do Estado ao novo ambiente político, econômico, social e tecnológico globalizado. O mundo moderno é marcado por uma conjuntura internacional de estratégia fiscal competitiva e profundamente imbricado com a revolução tecnológica da era da informática.
Nesse sentido, nota-se um esforço crescente para reformar os sistemas tributários convencionais, que vêm se mostrando crescentemente desgastados pela corrosão da eficácia dos mecanismos de exação das estruturas burocráticas, que se tornam cada vez mais impotentes para dirigir e controlar o processo fiscal em seus respectivos Estados nacionais.
A tônica dominante neste esforço renovador tem sido, por um lado, a busca de métodos formais de controle e fiscalização cada vez mais onerosos para o poder público e para o setor privado. Os gastos da Administração Tributária Pública se agigantam. Ao mesmo tempo, os custos de conformidade dos impostos ao setor privado para atender às novas e mais volumosas obrigações tributárias acessórias implicam elevação de preços ao consumidor e estimulam o surgimento de novas possibilidades de práticas desleais de concorrência mediante a crescente sofisticação dos mecanismos de planejamento tributário, de evasão e de movimentação de fatores de produção e de capitais em todo o mundo.
Igualmente perturbador é que estas tendências acham-se presentes com maior intensidade em países federativos como o Brasil, bem como nos novos espaços econômicos formados por blocos de países integrados13. A superfície na qual se desenrola o jogo econômico mundial torna se cada vez mais desigual mediante o surgimento de paraísos fiscais, zonas preferenciais e de uma predatória guerra fiscal, tanto interna quanto internacional.
Nesse mister, é importante a identificação de novas bases imponíveis tributárias, mais adequadas a essa nova realidade surgida a partir de meados do século passado. Há que evitar reformas baseadas na estrutura clássica de impostos, que, no dizer de Roberto Campos, “é uma curiosa relíquia artesanal na era eletrônica”.
As bases convencionais, estruturadas sobre tributos declaratórios, aplicam em sua grande maioria os métodos conhecidos como “autolançamento e auto recolhimento com auditoria”, uma tecnologia complexa, artesanal e profundamente contraditória com as tendências globalizantes e informatizadas das transações econômicas realizadas no mundo moderno. Exigem de cada pagador de impostos a auto apuração e o oferecimento de seus rendimentos à tributação, e sua posterior submissão a auditorias amostrais para aferir a veracidade das informações.
Nesse sistema, a fiscalização exige o acompanhamento físico das transações econômicas, uma tarefa ciclópica, a cada dia mais difícil e onerosa de ser realizada com sucesso. As transações eletrônicas, o comércio pela internet, a volatilidade e mobilidade crescentes de fatores, capitais, mercadorias e serviços tornam a tarefa quase impossível de ser concretizada por haver necessidade de fiscalizar e auditar um número incalculável de transações que se realizam a cada momento. O resultado é a crescente necessidade de novos investimentos em tecnologia de informação por parte do poder público, quando a privacidade pessoal e o sigilo econômico tornam se vítimas desta assustadora realidade orwelliana que toma conta do dia-a-dia dos agentes econômicos. Agravando ainda mais o quadro, criam-se áreas cinzentas e indivisíveis entre a auditoria tributária e a atividade policial repressiva, tornando o contribuinte um suspeito em potencial, até prova em contrário.
Luigi Nese afirma que:
"Hoje em dia já ‘transportamos’ serviços via Internet quando fazemos os chamados ‘download[s]’ de arquivos contendo, por exemplo, livros e músicas. Da mesma forma, no setor de serviços, estamos transportando, por via digital, softwares, projetos de engenharia, de arquitetura, de propaganda, tradução de documentos, informações, acesso a banco de dados etc.
Nesses casos, a nota fiscal se torna uma peça de ficção. Portanto, o sistema tributário tem de dar conta dessa nova tecnologia. O que deve ser fiscalizado não é mais a mercadoria em trânsito, mas os valores envolvidos na transação. No instante em que alguns economistas já questionam a função e a quantidade dos bancos centrais existentes, é preciso pensar mais numa tributação de meios de pagamento do que, propriamente, na tributação sobre o bem. Quando alguém efetua o pagamento de uma compra virtual, seja por meio do cartão de crédito ou de uma ordem de pagamento, é nesse momento que deve haver a cobrança de imposto. Creio que seria a única maneira de controlar esse tipo de operação e o fluxo monetário entre os países.
Esforços meramente reformistas poderão não ser suficientes para enfrentar as vicissitudes desta nova ordem econômica mundial".
Há que buscar alternativas inovadoras, capazes de conter a explosiva burocracia tributária resultante destes novos desafios.
Ao invés de embate com os inconvenientes desta nova realidade, a exemplo do uso de legislação regulamentadora dos preços de transferência e das polêmicas normas antielisão, há que se desviar deles, buscando alternativas e atalhos que abram novas possibilidades de garantir o financiamento seguro, estável e eficiente do poder público. Longe do desejo de utilizar o “princípio da conveniência”, como alguns defensores do conservadorismo tributário insistem em afirmar em suas críticas às inovações tributárias, o que se pretende com o “princípio do desvio” é evitar a deflagração de conflitos de crescente gravidade entre o Estado, carente de formas estáveis e eficazes de financiamento, e os pagadores de impostos, cada vez mais escassos e sobretaxados, a partir da fuga de parcelas crescentes dos contribuintes para a economia informal, para a evasão, para os paraísos fiscais e para a sonegação.
A tese dita que se as economias modernas insistirem em manter o atual conservadorismo tributário, buscando apenas corrigir, calibrar e reformar seus sistemas de arrecadação de impostos, ao invés de inovar, não há como imaginar que os tributos convencionais e ortodoxos gerados na era do papel, dos livros contábeis, das barreiras físicas de transporte e comunicação, e do Estados nacionais autônomos, serão capazes de evitar a generalizada evasão tributária e suas dramáticas consequências para o financiamento do Estado moderno.
A síndrome dos porcos assados
Certa vez, ocorreu um incêndio num bosque onde havia alguns porcos, que foram assados pelo fogo. Os homens, que até então os comiam crus, experimentaram a carne assada e acharam-na deliciosa. A partir daí, toda vez que queriam comer porco assado incendiavam um bosque. O tempo passou, e o sistema de assar porcos continuou basicamente o mesmo.
Mas as coisas nem sempre funcionavam bem: às vezes os animais ficavam queimados demais ou parcialmente crus. As causas do fracasso do sistema, segundo os especialistas, eram atribuídas à indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam, ou à inconstante natureza do fogo, tão difícil de controlar, ou, ainda, às árvores, excessivamente verdes, ou à umidade da terra ou ao serviço de informações meteorológicas, que não acertava o lugar, o momento e a quantidade das chuvas.
As causas eram difíceis de determinar: na verdade, o sistema para assar porcos era muito complexo. Fora montada uma grande estrutura: havia maquinário diversificado, indivíduos dedicados a acender o fogo e especialistas em ventos – os anemotécnicos. Havia um diretor-geral de Assamento e Alimentação Assada, um diretor de Técnicas Ígneas, um administrador geral de Reflorestamento, uma Comissão de Treinamento Profissional em Porcologia, um Instituto Superior de Cultura e Técnicas Alimentícias e o Bureau Orientador de Reforma Igneooperativas.
Eram milhares de pessoas trabalhando na preparação dos bosques, que logo seriam incendiados. Havia especialistas estrangeiros estudando a importação das melhores árvores e sementes, técnicas para gerar fogo mais intenso etc. Havia grandes instalações para manter os porcos antes do incêndio, além de mecanismos para deixá-los sair apenas no momento oportuno.
Um dia, um incendiador qualquer resolveu dizer que o problema era fácil de ser resolvido – bastava, primeiramente, matar o porco escolhido, limpando e cortando adequadamente o animal, colocando-o, então, em uma armação metálica sobre brasas, até que o efeito do calor – e não as chamas – assasse a carne.
Tendo sido informado sobre as ideias do funcionário, o diretor-geral de Assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e disse lhe:
– Tudo o que o senhor propõe está correto, mas não funciona na prática. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotécnicos, caso viéssemos a aplicar a sua teoria? E com os acendedores de diversas especialidades? E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos, com suas máquinas purificadoras de ar? E os conferencistas e estudiosos que, ano após ano, têm trabalhado no Programa de Reforma e Melhoramentos? Que faço com eles se a sua solução resolver tudo, hein?
– Não sei, disse o funcionário, encabulado.
– O senhor percebe agora que a sua idéia não vem ao encontro daquilo que necessitamos? O senhor não vê que, se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito tempo? Que outros países já a teriam adotado? O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os anemotécnicos e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas? O que o senhor espera que eu faça com os quilômetros de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos e nem têm folhas para dar sombra? E o que fazer com nossos engenheiros em porcopirotecnia? Vamos, diga-me!
– Não sei, senhor.
– Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia dizendo por aí que pode resolver tudo. O problema é bem mais sério do que o senhor imagina. Agora, entre nós, devo recomendar-lhe que não insista nessa sua ideia – isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo.
A nova realidade mundial
O mundo de hoje é global e informatizado. As principais modificações nessa nova, e ao mesmo tempo historicamente velha, ordem de organização social e econômica são a crescente concentração e a maior escala operacional das empresas, o deslocamento hegemônico estratégico para o setor financeiro, e o surgimento do conceito da informação total e em tempo real.
Essas alterações na forma de organização e de comportamento econômico afetaram inúmeros conceitos tidos como verdades absolutas em administração pública, tais como a soberania nacional, a democracia representativa, as políticas de desenvolvimento interno, a distribuição de renda, as origens das vantagens comparativas, o processo inflacionário, os direitos socioeconômico trabalhistas e os padrões de comércio internacional. Os reflexos dessas mudanças obviamente afetam os conceitos jurídicos, políticos, sociais e culturais em todo o planeta. Nesse texto, abordaremos particularmente os efeitos dessas alterações no campo tributário.
O novo padrão de intensa movimentação de mercadorias e capitais impõe novos parâmetros de comportamento tanto para governos como para empresas. A informatização e as novas formas de gestão aumentaram a produtividade. Os processos de produção e comercialização adquiriram escalas mundiais. A localização territorial perdeu importância na definição de produtos, no planejamento estratégico e nos padrões de compra de insumos e de distribuição de produtos, principalmente nas empresas transnacionais. O mercado financeiro internacional passou a girar grandes volumes de recursos, tornando praticamente impossível a tarefa de acompanhar, controlar e classificar tais fluxos e suas representações materiais para poderem servir de base para um sistema tributário convencional.
O avanço tecnológico e a revolução da informática afetaram em profundidade as formas como as trocas econômicas se realizam nas economias contemporâneas. A moeda manual vem sendo substituída pela moeda escritural, em suas várias modalidades, como o cheque, o cartão e a moeda eletrônica. Em breve as economias modernas serão totalmente “desmonetizadas”.
O termo cashless society resume um novo ambiente econômico em gestação no mundo moderno. Alvin Toffler já indica que a produção e as relações comerciais poderão no futuro dispensar a existência de moeda, ocorrendo por meio de processos e sistemas estritamente contábeis. O crescimento desta riqueza não monetária terá implicações profundas, ainda não devidamente avaliadas, por desconhecidas e não mensuradas. Mas já indicam um caminho provável de profundas alterações.
Nesse complexo cenário, cabe indagar sobre os impactos gerados na administração tributária. Qual o efeito desse fenômeno sobre os contribuintes?
As bases tributárias convencionais como a renda pessoal, o lucro das empresas, o consumo e o patrimônio deixam de ser as formas predominantes de exação e adquirem características distintas frente a este novo cenário mundial.
As pessoas físicas com altos rendimentos passaram a ter uma mobilidade física que jamais tiveram. A territorialidade não mais define a tributação pessoal de rendas. Profissionais, artistas, esportistas, executivos e grandes empresários escolhem seus domicílios fiscais e investem seus rendimentos em países onde a tributação é menor. Tornam-se alvos voláteis e incertos para os fiscos de seus respectivos países.
No caso dos lucros das empresas, a mobilidade é ainda mais acentuada. As grandes empresas multinacionais passam a utilizar preços de transferências em suas relações internas, e a escolha na localização de suas bases de operação passam a ser instrumentos de minimização de suas obrigações tributárias mediante práticas variadas de profit shifting.
A facilidade no transporte de pessoas por todo o mundo, o turismo de lazer e de negócios afetam a tributação do consumo. Comerciantes e turistas podem adquirir produtos de elevado valor agregado em países que oferecem preços mais reduzidos. A expansão acelerada do comércio pela internet dificulta a tributação convencional, obscurecendo a identificação dos locais de origem e destino da operação.
Nesse contexto de profundas mudanças de paradigmas comportamentais e administrativos, a eficácia dos sistemas tributários convencionais é desafiada, principalmente com o surgimento de “paraísos fiscais” espalhados em todo o mundo. A engenharia financeira e tributária permite a montagem de complexas operações envolvendo fundações familiares, sociedades de serviços especializados, trading companies e fundos de investimentos, colocando em xeque as estruturas tributárias ortodoxas baseadas em impostos tradicionais.
Na economia globalizada, o dinheiro se move de forma instantânea e praticamente anônima entre as fronteiras nacionais. O problema para os governos modernos é que, quando os fluxos financeiros se movimentam, levam receitas tributárias com eles, em geral para paraísos fiscais ou para países de baixa tributação. Estimativas mostram que eles desviam anualmente cerca de US$ 250 bilhões de arrecadação tributária do restante do mundo, sendo US$ 70 bilhões somente da economia norte-americana.
As atuais estruturas fiscais são enfraquecidas por decisões tomadas por pessoas e empresas em diferentes partes do mundo e sobre as quais os governos nacionais possuem escassa possibilidade de controle. Tal situação leva o poder público a buscar compensação na excessiva tributação de bases menos voláteis e com menor mobilidade, como os assalariados do setor formal e os prestadores de serviços não comercializáveis. Paraísos fiscais “enfraquecem as receitas tributárias de países ‘reais’, limitando a habilidade desses países de financiar serviços públicos, forçando-os a tributar bases de menor mobilidade, como o trabalho, a propriedade, o consumo” (tradução nossa). Isso, por sua vez, gera estímulos à evasão e à sonegação.
Ainda que os métodos administrativos de controle e fiscalização do fisco sejam operacionalmente modernizados, as estruturas sobre as quais estão assentados continuam estruturalmente arcaicas, permanecendo em grande parte desajustadas à realidade do novo modo de produção que surge no mundo moderno.
O antigo paradigma “fordista” de produção industrial, territorial e administrativamente concentrado inspirou os modelos tributários convencionais e levou ao desenvolvimento de métodos de arrecadação e controle baseados no sistema “auto declaratório com auditoria”. Essa forma de organização deixa de ser hegemônica. Mas o sistema tributário gerado por esse antigo modo de produção ainda prevalece no pensamento tributário convencional, não obstante o surgimento de evidências avassaladoras acerca de sua crescente dissonância com os ditames do mundo moderno.
Ainda hoje uma garrafa de vinho de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, é acompanhada fisicamente pela fiscalização desde o momento em que sai da vinícola, com sua nota fiscal discriminando tipo, peso, embalagem, valor etc., até seu destino final, em uma mesa de restaurante em São Paulo ou em uma reunião familiar em Roraima. Ao chegar em algum distribuidor, transportador, armazenador, intermediário ou supermercado em qualquer ponto do país, o produto é conferido, fiscalizado, e visualmente inspecionado, tendo em vista o atendimento das obrigações tributárias.
Se isso era operacional no passado, quando a abrangência das transações econômicas eram geograficamente restritas às regiões de operação de produtores e consumidores, tal método tornou se hoje exasperadoramente ineficiente e burocratizado. Não há como aplicá-lo, por exemplo, às centenas de milhões de transações realizadas diariamente em economias modernas como a do Brasil, ou a um consultor que exporta suas recomendações a seu cliente, em outro país, por Email, de sua residência, ou a serviços de call centers estabelecidos em continentes muitas vezes distintos da área de comercialização que atendem.
O fenômeno da globalização e da informatização afeta todas as economias do mundo:
O verdadeiro problema é que a globalização tornou o atual sistema de tributação das multinacionais arcaico. A tributação baseia-se em fronteiras nacionais, mas as companhias operam entre continentes e podem facilmente transportar dinheiro e bens físicos ao seu redor. Até que os sistemas tributários reflitam essa realidade, as dificuldades persistirão (tradução nossa.)
O Brasil precisa adequar seu sistema tributário ao mundo contemporâneo. A informatização dos bancos e a predominância da moeda eletrônica convergem para a adoção de uma nova base tributária e para um sistema de impostos baseado na movimentação financeira.
O sistema tributário brasileiro
O Brasil possui uma estrutura tributária complexa. São impostos sobre a renda, o patrimônio e a produção, além de taxas de serviços e contribuições sobre o faturamento e a folha de salário das empresas.
Essa parafernália de tributos extrai cerca de 35% do valor de toda a produção de bens e serviços. Historicamente, a arrecadação de impostos oscilou entre 22% e 25% do PIB até meados da década de 1990, quando, então, passou a absorver fatias crescentes do produto nacional.
A fúria arrecadatória do governo se intensificou com a estabilização da moeda, quando, com o fim do imposto inflacionário, os desequilíbrios orçamentários demandaram ações voltadas à recuperação da capacidade de investimento do poder público. A opção pelo aumento da arrecadação se deu com a criação de novos tributos, aumento de alíquotas e alterações na base de cálculo dos impostos. Muitas dessas medidas foram implementadas de forma administrativa através de portarias e decretos, que gradualmente foram expandindo as receitas públicas. Essas ações pontuais criaram uma colcha de retalhos, aprofundaram as distorções da estrutura produtiva do país.
Para manter sua competitividade, as empresas passaram a ver na sonegação e na evasão de impostos uma forma de sobrevivência. Sonegar é hoje a característica predominante do sistema tributário brasileiro.
A evasão gerou um padrão de incidência tributária sobre a produção tão caótico, imprevisível e devastador a ponto de poder quebrar uma empresa eficiente, que paga seus impostos corretamente, e de fazer sobreviver uma ineficiente, que sonega e saqueia seus concorrentes. A sonegação se tornou um polpudo prêmio à ineficiência e à desonestidade.
O aperfeiçoamento de instrumentos públicos de controle e fiscalização, como o cruzamento entre a declaração de rendimento do contribuinte e sua movimentação bancária, a instalação de modernos e poderosos computadores com gigantesca capacidade de busca, armazenamento e cruzamentos de dados econômicos, bem como o aprimoramento dos mecanismos operacionais dos sistemas de inteligência tributária e policial, devem elevar ainda mais a carga de impostos para muitos contribuintes.
Dessa forma, deve aumentar a carga de tributos incidentes sobre o consumo, que já é alta. Bens duráveis, por exemplo, carregam uma carga de impostos em seus preços entre 40% e 50%, enquanto em outros países os tributos pesam em torno de 6% a 7%. Os alimentos industrializados carregam em seus preços cerca de 1/3 de impostos, enquanto a média internacional é de 7%. Esta situação penaliza, sobretudo, os grupos de baixa renda, que despendem nesse item maior fração de suas rendas do que as camadas de renda mais elevada.
Os tributos incidentes sobre a folha de salário das empresas constituem outro fator que causa anomalias na economia brasileira. O alto custo de contratação e manutenção de funcionários é uma das principais causas do crescimento da economia informal registrada nos últimos anos. Metade dos trabalhadores brasileiros não tem carteira assinada, fenômeno que barateia custos para as empresas e desonera os salários recebidos pelos empregados, que, em muitos casos não declaram esses rendimentos.
A sonegação, portanto, é hoje o tumor a ser extirpado do sistema tributário nacional, e deve ser o foco dos esforços em busca de sistemas de arrecadação mais eficientes e mais universais. No rol dos atuais tributos, apenas a CPMF (recentemente extinta) era capaz de neutralizar parcialmente esta anomalia.
O grande desafio é ampliar a base de contribuintes, fazendo todos pagarem, e, assim, fazer com que os que pagam muito paguem menos, e os que pagam pouco, ou nada, passem a contribuir com o esforço social de financiamento do Estado.
A escolha da espécie tributária
Em contraposição à tese de que o foco dos esforços de construção de um novo sistema tributário deva ser a busca da universalização da base de contribuintes mediante a eliminação da evasão e da sonegação, há quem acredite que o grande problema a ser superado é a cumulatividade presente no sistema tributário brasileiro. Em outras palavras, a discussão está centrada no debate entre os que defendem a universalidade e os que defendem a não cumulatividade.
Setores empresariais aliaram-se à burocracia pública e privada com ligações funcionais com o sistema tributário para se posicionar, de modo quase paranóico, contra a cascata dos tributos cumulativos25. Esses grupos convenceram parte da opinião pública que os impostos cumulativos representam o maior problema da atual estrutura tributária brasileira.
O debate centra-se no IPMF/CPMF, instituído como uma usurpação da proposta do Imposto Único pelo governo27. Começou com a proposta para substituir os atuais tributos declaratórios por um único imposto arrecadatório não-declaratório sobre movimentação financeira. Mas, ao invés de ser único, transformou-se em um imposto a mais a onerar o setor privado brasileiro.
A CPMF foi o principal alvo da artilharia dos que julgam a cumulatividade como o principal obstáculo a ser enfrentado na reforma tributária. Ao fazerem isto, relegam a sonegação a um plano secundário. A CPMF foi uma espécie tributária de grande eficácia arrecadatória e de baixo custo, tanto para o governo como para o contribuinte. Por ser insonegável, ela incomodava uma minoria que se beneficiava dos sistemas tributários convencionais.
A transação financeira como base de incidência tributária surgiu com a recente supremacia da moeda escritural sobre a moeda manual, e com a intensa informatização das operações bancárias. A convergência entre a busca da unicidade tributária e a solidificação de um sistema baseado na moeda escritural eletrônica deu origem à proposta do Imposto Único no Brasil, que introduziu a movimentação financeira como nova base tributária.
A principal razão de seu ressurgimento no Brasil advém de razões históricas. Ainda que o Imposto Único tenha uma longa e respeitável tradição na evolução do pensamento econômico, ele nunca pôde se materializar, pois em nenhuma circunstância histórica uma sociedade reuniu as duas condições básicas para a efetiva operacionalização do conceito de transação como base tributária. A primeira é a existência de um sistema bancário altamente informatizado, com um sistema nacional em tempo real de compensação de cheques e documentos. A segunda, é a predisposição cultural da sociedade de não usar moeda manual, substituindo-a pelas mais variadas formas de moeda escritural.
Apenas o Brasil preenche plenamente esses dois quesitos. Possui um dos sistemas bancários mais desenvolvidos e informatizados em todo o mundo, com padrões tecnológicos superiores aos encontrados em países desenvolvidos, como os Estados Unidos ou a União Européia. Em realidade, o “Brasil é referência mundial na tecnologia bancária”. Além disso, o Brasil é uma das economias mais desmonetizadas do mundo, e que, culturalmente, já absorveu a inevitável substituição da moeda metálica manual pela moeda escritural, principalmente pela moeda eletrônica.
Em 1993, quando se discutia a criação de um imposto sobre movimentação financeira com o propósito de contribuir para o ajuste das contas públicas (o IPMF instituído naquele ano), e depois para financiar a saúde pública (a CPMF criada em 1996), muitos críticos desse tipo de tributo alardearam que o mesmo seria danoso ao sistema produtivo nacional. Os fatos acabaram desmentindo as profecias catastróficas apregoadas na época.
A CPMF foi usada, com sucesso, para atingir múltiplas finalidades: garantir o ajuste fiscal, custear a saúde pública, alimentar o fundo de combate à pobreza, detectar os sonegadores, e aumentar o salário mínimo. Mesmo assim, muitos insistem em ignorar suas qualidades, principalmente a de aliviar o contribuinte brasileiro. Afinal, se a CPMF não tivesse existido, os impostos convencionais, quase sempre ineficientes e injustos, necessitariam de alíquotas mais elevadas, onerando ainda mais fortemente os contribuintes indefesos. Ainda que, com certa ligeireza, se lhe atribuam inúmeras distorções econômicas graves, esse tipo de tributo deixa um saldo amplamente favorável quando se pesam suas vantagens e desvantagens.
A objeção mais comum se refere ao impacto prejudicial de sua cumulatividade nos mercados financeiros e no comércio exterior, que será analisada adiante. O mais importante, contudo, é que um tributo sobre movimentação financeira, como foi a CPMF, tem um mérito inegável, convenientemente ignorado por vários de seus críticos: o de eliminar do atual sistema tributário sua maior aberração, qual seja, as diferenças artificiais de custos de produção causadas pela ampla e generalizada sonegação de impostos no país. A forma pela qual a evasão de impostos distribui a atual carga tributária implica distorção econômica mais grave do que a alegada alteração nos preços relativos que um turnover tax, como a CPMF, poderia causar na economia brasileira, já que, em realidade, a CPMF é uma espécie tributária capaz de atenuar essa distorção, como será visto mais adiante.
Contudo, ela irritava e enfurecia os grandes sonegadores porque eles não podiam evita-la. Em geral, o custo da evasão acabava superando a própria economia tributária. Esta é a vantagem de um imposto não-declaratório, que, por ser insonegável, permite alíquotas baixas, porém universais. Esse tipo de tributação reduz custos, elimina a corrupção, distribui o ônus tributário na exata proporção das operações econômicas realizadas pelos contribuintes, e assim os que pagam muito hoje, como os assalariados, poderão pagar menos, e os que sonegam, pagarão as suas partes.
A questão da cumulatividade, portanto, é uma crítica ao imposto eletrônico facilmente refutável. O verdadeiro, e o maior problema da estrutura tributária brasileira e fonte de profundas distorções na economia do país, é, seguramente, a sonegação e a evasão de impostos, estimuladas pela alta e mal distribuída carga tributária imposta aos contribuintes.
Diz o autor:
Os custos de conformidade à tributação (compliance costs of taxation) correspondem ao custo dos recursos necessários ao cumprimento das determinações legais tributárias pelos contribuintes. Declarações relativas a impostos, informações ao Fisco federal, estadual e municipal, inclusões e exclusões realizadas por determinações das normas tributárias, atendimento a fiscalizações, alterações da legislação, autuações e processos administrativos e judiciais...
Esses desembolsos representam uma pequena parcela dos custos totais dos tributos por tratarem-se apenas de gastos monetários suportados pelas empresas no atendimento de suas obrigações com o fisco. A eles devem se somar os custos operacionais públicos nos três níveis de governo, bem como os custos temporais e psicológicos impostos ao contribuinte, além dos gastos a serem imputados pelas distorções e pela perda de eficiência alocativa e distributiva dos tributos, e pela própria obrigação tributária em si mesma.
Os resultados da pesquisa são dramáticos. O valor total dos custos de conformidade das companhias abertas atinge 0,32% da receita bruta na média das empresas pesquisadas.
Nas empresas menores, com faturamento bruto anual de até R$ 100 milhões, a despesa atinge 1,66%. Calculando-se a incidência desses desembolsos como proporção do PIB, chega-se a 0,75% no total das companhias abertas e 5,82% no caso das empresas abertas de menor porte. Conclui-se que para a esmagadora maioria das empresas brasileiras, cujo faturamento é inferior a R$ 100 milhões anuais, os custos de conformidade deverão ser superiores aos 5,82%.
Os elevados custos operacionais tributários são um grande peso morto na economia brasileira. Manter uma estrutura tributária baseada em impostos declaratórios convencionais, característica contida nas propostas de reforma tributária que o governo tem enviado ao Congresso ao longo dos últimos dez anos, irá perpetuar um sistema complexo e dispendioso. Os custos administrativos tributários, ou seja, os custos públicos para a administração do sistema de arrecadação é, no Brasil, de 1,5% do PIB, ou pouco mais de 4% do valor total arrecadado nos três níveis de governo, segundo Bertolucci. Há poucas estimativas disponíveis em outros países, mas estima-se que na Nicarágua seja de 3,86% do valor arrecadado, 3% no Peru, 1,47% no Reino Unido, 1,18% no Canadá, 0,87% na Colômbia e 0,83% nos EUA.
O custo de conformidade é fator determinante na opção da maioria das empresas brasileiras pelo regime de tributação de lucro. Curiosamente, optam por um regime que implica tributação maior, mas que é compensada por custo de conformidade mais baixo. Afirma o ex-Secretário da Receita Federal Everardo Maciel que:
Tanto no Simples, como no lucro presumido, o pagamento da Cofins é feito de forma cumulativa. Conclui-se, portanto, que opcionalmente o contribuinte brasileiro pessoa jurídica, em 93% dos casos, prefere o regime cumulativo (...). A alíquota efetiva média do lucro presumido é 3,87%. Já o lucro real é 1,22%. Ainda assim, há mais empresas optando pela tributação do presumido, portanto pelo pagamento da Cofins cumulativa. A razão está no chamado custo de conformidade. Os custos no lucro presumido são muito menores e a segurança é muito maior.
Vale lembrar que, além da dificuldades e custos implícitos na legislação tributária doméstica, há que considerar os custos ligados à complexa legislação tributária internacional. Segundo Fernando Aurélio Zilveti, Carlos Eduardo Costa Toro, e Bianca Maia de Britto, apenas para evitar dupla tributação, o número de tratados internacionais aumentou 2.000% nos últimos cinqüenta anos, “podendo atingir ainda na metade deste século a casa de 16.000, numa projeção bastante otimista”.
Vale concluir, reproduzindo as palavras de Bertolucci, que:
Comparando a incidência de custos da Administração Tributária do Brasil com a de outros países, verifica-se que são os mais elevados de todos, exceção feita a Portugal que está tão longe dos outros levantamentos que poderia conter algum erro metodológico. Acrescente-se a isso o fato de que não se conhecem os custos dos tributos e contribuições estaduais e municipais, que podem ser percentualmente superiores aos custos da União. Isso porque estudos levados a cabo no Reino Unido por Sandford et al. (1989, p. 134) mostram que o VAT – Value Added Taxation é o tributo de custo operacional mais elevado ... Do outro lado do espectro de custos, encontram-se Israel, Japão e Noruega, com 0,16%, 0,26% e 0,10%, de incidência de custos de administração sobre a arrecadação, respectivamente. Os Estados Unidos, também, apresentam, nesse sentido, uma incidência bastante reduzida, de 0,44% da arrecadação. Deve-se notar, porém, que essa informação se refere somente à arrecadação dos tributos federais.
Criar um sistema com impostos mais simples e de menor custo são princípios fundamentais que devem reger as discussões em torno da reforma tributária no Brasil. Nesse sentido, um sistema baseado em tributos não-declaratórios representa uma alternativa viável para equacionar essa necessidade.
Salários e Previdência: desoneração da folha de pagamentos
Os custos salariais no Brasil comprometem dramaticamente a competitividade da produção nacional. O grande vilão é o elevado custo dos encargos sociais incidentes sobre a folha salarial, já que a remuneração do trabalhador brasileiro é relativamente baixa.
Os gastos patronais com INSS, FGTS, Salário-Educação, Seguro de Acidentes do Trabalho e o Sistema “S” representam cerca de 36% dos salários pagos aos trabalhadores. A inclusão de custos relacionados ao tempo não trabalhado (férias, 13º salário, aviso prévio, etc.) faz com que a despesa de contratação de um funcionário ultrapasse 100% do salário nominal.
O acirramento da concorrência no comércio internacional foi determinante para que o elevado custo trabalhista no Brasil se tornasse uma questão em evidência. O problema está se mostrando dramático devido ao grande diferencial existente entre o custo com mão de obra na economia brasileira comparado a outros países emergentes, sobretudo quando o referencial é a China, onde, segundo a CNI (Confederação Nacional da Indústria), um funcionário custa para as empresas quase a metade do que no Brasil.
Os encargos sociais trabalhistas devem ser custeados por toda a sociedade. Não deveriam ser suportados prioritariamente pelo setor produtivo, como ocorre hoje com as contribuições sobre a folha salarial (e continuaria ocorrendo caso a base fosse substituída pelo valor agregado ou faturamento). Isso porque, em geral, os modelos previdenciários tiveram início como sistemas de capitalização, e nesse caso, o mecanismo de financiamento apropriado é a incidência sobre a folha de salários, recolhida pelos beneficiários assalariados e pelos empregadores. Contudo, por razões que não cabe discutir no momento, a sociedade brasileira optou por garantir os benefícios da Previdência, até o teto legal, como direito de todos os cidadãos, justificando, assim, a evolução do custeio para o sistema de repartição. Nesse caso, o financiamento da Previdência pode ser feito não apenas com contribuições dos beneficiários, mas também com impostos gerais, incidentes sobre toda a sociedade. A Constituição de 1988 incorporou essa conceituação ao definir, conforme o caput do art. 195, que o custeio do sistema previdenciário compete a “toda sociedade, de forma direta e indireta”.
Nesse sentido, há que se substituir as contribuições incidentes sobre a folha salarial por uma contribuição sobre movimentação financeira, como proposto pela Comissão Ary Osvaldo Mattos Filho em 1991, a pedido do então presidente Fernando Collor de Mello. Essa alternativa simplifica o sistema, combate a sonegação e reduz o custo empresarial. Estudo realizado pela Fundação Getulio Vargas simula o impacto da substituição do INSS patronal por um adicional de 0,50% na CPMF para 42 setores produtivos no Brasil. Atividades como a indústria de artigos de plásticos, transportes e serviços prestados às empresas teriam redução da carga tributária em relação ao valor agregado superior a 7 pontos percentuais. O PIB poderia ter um crescimento adicional de 1,6% e o nível de emprego de 1,9%.
A proposta de desonerar a folha de pagamentos das empresas mediante a eliminação das contribuições patronais ao INSS foi levantada na Comissão Especial da Reforma Tributária, na Câmara dos Deputados, na legislatura 1999-2003. Propôs-se a introdução de uma Contribuição Social incidente sobre as transações financeiras, capaz de gerar um volume de recursos equivalente ao arrecadado pelo INSS sobre a folha de pagamentos das empresas. Trata-se de uma mera substituição de fontes, é bom observar, que em nada alteraria a destinação dos recursos recebidos, e não alteraria as receitas e despesas referentes ao salário-educação e ao denominado Sistema “S”. A vantagem seria reduzir a carga tributária sobre salários, estimular a formalização dos contratos trabalhistas, incentivar a abertura de novos postos de trabalho, combater a sonegação e reduzir o custo Brasil.
Cumpre lembrar que, nos primeiros trabalhos sobre o Imposto Único, tentou-se avaliar o impacto desta nova contribuição social na formação dos preços na economia. Foram utilizadas as matrizes de relações interindustriais do IBGE e suas atualizações, tendo-se chegado à conclusão de que os impostos sobre movimentação financeira (IMF) impactam com menor intensidade os preços na economia do que impostos sobre valor agregado (IVA), já que os primeiros exigem alíquotas nominais sensivelmente mais baixas para uma dada meta de arrecadação.
A simulação apresentada na Tabela 1 compara o impacto nos preços setoriais de um IMF sendo usado como a fonte de financiamento do INSS, relativamente ao atual modelo tributário, mediante a substituição da alíquota básica de 20% da contribuição patronal sobre a folha de salários (que é uma contribuição sobre valor agregado) por um IMF com alíquota total de 0,49%.
Vê-se que o desvio nos preços relativos causado pelo IMF foi de 0,51%, ao passo que, no caso do modelo convencional, atingiu 1,8%. Comprova-se, assim, a inveracidade da afirmação de que necessariamente os tributos cumulativos geram maiores distorções nos preços relativos e que, por isso, seriam mais ineficientes do ponto de vista alocativo.
Outra constatação importante é a redução significativa da carga tributária setorial resultante da alteração nas fontes de financiamento do INSS. Enquanto no caso convencional o peso das contribuições sociais no preço setorial variava entre 9,72% e 16,46%, no caso do IMF a variação caiu significativamente para entre 0,60% e 2,25%. Percebe-se que houve uma redução de cerca de 80% da carga tributária setorial vinculada ao custeio do INSS.
Confirma-se assim a possibilidade de que a alteração proposta abrirá espaço para a redução de preços, e, conseqüentemente, para a ampliação dos salários reais e das margens de contribuição das empresas. Ademais, tornam-se possíveis aumentos nominais de salários, sem impactos negativos no grau de eficiência da economia.
O resgate da função arrecadatória dos impostos
Uma crítica aos impostos não-declaratórios sobre movimentação financeira, e, mais especificamente, ao projeto do Imposto Único, é que, por serem gerais, universais e com estrutura simplificada de alíquotas, o governo perde sua condição de calibrar o sistema de acordo com seus propósitos, além de perder a capacidade de praticar políticas econômicas seletivas.
Mas qual é a função essencial dos impostos? Ao longo dos tempos os tributos passaram a ter funções extrafiscais. Passou-se a acreditar que a redistribuição de renda e de riqueza, por meio da cobrança punitiva de impostos dos mais eficientes e mais poderosos, seria sua função essencial. O ativismo governamental e a política econômica keynesiana enfatizaram o papel dos impostos, e da isenção deles, como meios para calibrar o desenvolvimento econômico. Ecologistas e sanitaristas passaram a usar o sistema tributário como forma de proteção do meio ambiente, e de punição para infratores; planejadores urbanos e regionais enxergam no sistema tributário mecanismos de indução para alcançar objetivos socialmente desejáveis; agricultores querem a reforma agrária pela tributação dos latifúndios; instituições policiais enxergam nos impostos uma forma de identificar meliantes.
Em suma, todos procuram no sistema tributário a solução para seus problemas. Como afirmou Everardo Maciel, “isso serve apenas para demonstrar que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos imprevisíveis, ditados por razões fortuitas ou motivos insondáveis”.
A ênfase na extrafiscalidade dos tributos, ainda que legítima, vem se sobrepondo aos objetivos fiscais, tornando o sistema tributário brasileiro complexo e pouco funcional em sua função precípua, além de caro, ineficiente, corrupto, e fortemente indutor das mais variadas formas de evasão.
Nessa corrida entre meios e fins, o sistema tributário acabou perdendo eficácia em sua função essencial: a de arrecadar recursos para financiar as atividades públicas.
O formalismo teórico, típico da burocracia pública e da academia, que busca identificar os impactos alocativos e distributivos dos tributos com milimétrica precisão, revela-se cada vez mais ilusório, dado que construído no campo da alta abstração. Nas palavras de Mangabeira Unger, a visão acadêmica desdobra-se em meio a “ilusões edificantes e tranquilizadoras”. Mas “o mundo é selvagem e obscuro”. Não existe o mundo da competição perfeita.
Na mesma linha de raciocínio, Delfim Netto declara que a ciência econômica deixa a impressão de ser “um corpo de conhecimento progressivo, uma ‘ciência dura’”. Prossegue o autor:
O que toda essa sofisticação esqueceu é que ela está apoiada em dois postulados implícitos: 1) que não existe sonegação, isto é, que todo o cidadão é prisioneiro de normas sociais rígidas, que lançam o opróbio sobre o sonegador, e 2) que o recolhimento desses impostos não tem custo, isto é, eles saem direto do livro texto para a caixa do tesouro ... Quando se leva em conta a falsidade desses dois postulados, começa-se a duvidar da qualidade das recomendações sugeridas e a ter mais respeito intelectual pelas propostas dos ‘impostos não declaratórios’.
O resgate da função fiscal do sistema tributário é apoiado também em dois artigos publicados na Folha de S. Paulo por Mangabeira Unger.
Em “Impostos e paradoxos”, o autor afirma que mesmo impostos indiretos, e porque não cumulativos, podem “gerar muito dinheiro com pouco desarranjo econômico”, ao passo que impostos diretos e progressivos, tão caros aos economistas de gabinete, “como o Imposto de Renda sobre a pessoa física, não produz a receita necessária. Nem pode fazêlo, por enquanto, sem acarretar desincentivos, fugas e evasões devastadoras”. Mangabeira Unger vai além, e diz que o essencial é gerar “dinheiro para o Estado investir no social”.
Em outro texto de Mangabeira Unger, intitulado “Reforma tributária (1)” o autor confirma a tese dos defensores do Imposto Único de que a redistribuição de renda “se faz mais pelo lado do gasto do que pelo lado da estrutura progressiva da arrecadação”, desmistificando assim a tese acadêmica de que a progressividade na arrecadação dos impostos é condição necessária para uma boa reforma tributária.
Eqüidade
Uma questão freqüentemente abordada no debate sobre tributos sobre movimentação financeira diz respeito à progressividade da incidência desse tipo de tributação.
Tratando-se de um imposto cumulativo, os produtos cujos métodos de produção sejam roundabout, e os que agreguem menos valor adicionado em cada uma destas etapas, serão proporcionalmente mais taxados. Isso implica garantir ao sistema tributário uma desejada dose de progressividade, já que os wagegoods – produtos de cesta básica que compõem o perfil de demanda das classes de mais baixa renda – terão uma carga tributária relativamente menor do que os produtos mais sofisticados. Espera-se que isto garanta uma progressividade natural nos tributos sobre movimentação financeira.
Outra característica interessante destes tributos é passar a tributar menos as atividades vinculadas à geração de riqueza, e mais pesadamente aquelas que impliquem mera transferência de ativos, que hoje são notoriamente sub-tributadas, tais como as transações patrimoniais de bens físicos.
Maria da Conceição Tavares efetuou simulações para avaliar a suposta regressividade de impostos sobre transações financeiras considerando sua incidência discriminada por faixas de renda47. A autora afirma que “este é um imposto que penaliza sobretudo as pessoas que fazem da circulação financeira de suas aplicações uma fonte extra e muitas vezes considerável de renda”. E prossegue afirmando que:
As transações financeiras constituem uma das poucas bases potenciais de arrecadação futura na qual é possível ancorar o aumento da receita pública sem penalizar os setores produtivos e os segmentos sociais que, atualmente, mais contribuem com uma carga tributária globalmente baixa, mas socialmente injusta.
A simulação de Conceição Tavares mostra, na verdade, que o imposto eletrônico é um tributo proporcional, ou ligeiramente progressivo. Onera mais quem dispõe de somas maiores de recursos. Quanto ao impacto do tributo sobre os preços, Tavares conclui que não deve ser significativo, e que não irá provocar (como não provocou) desintermediação financeira. Além disso, alcança o setor informal e minimiza a sonegação. O imposto pune mais pesadamente os “rentistas”, sejam eles “formais” ou “informais”. A autora conclui afirmando que “a circulação financeira é uma base de futuro, já que, além de sua contínua expansão, permite controles eletrônicos e deverá permitir, portanto, uma menor sonegação do que os atuais impostos”.
A defesa da movimentação financeira
Tornou-se moda acusar a extinta CPMF de uma série de defeitos que não poderiam, por lógica ou justiça, ser atribuídos a ela, ou apenas a ela.
Impostos sobre movimentação financeira possuem qualidades. Apesar das usuais acusações de cumulatividade, impossibilidade de desoneração nas exportações, regressividade e outras distorções, a CPMF se firmou como um tributo confiável, robusto e, sobretudo, justo por ser insonegável. Portanto, é hora de questionar muitas das alegações feitas sobre a CPMF antes que se tornem universalmente aceitas como verdadeiras.
A primeira crítica afirma que a CPMF, por ser um tributo cumulativo, é um imposto pouco inteligente e disfuncional. Impostos em cascata não são necessariamente ruins. As recentes teorias da tributação ótima, juntamente com postulados da teoria do second best, já deveriam ter convencido os economistas de que nada se pode concluir a priori, como será comprovado mais adiante.
Um tributo em cascata com alíquotas baixas pode ser melhor, do ponto de vista alocativo, do que tributos sobre valor agregado com alíquotas altas. No Brasil, criou-se um círculo vicioso: o governo aumenta alíquotas para compensar a enorme evasão tributária, o que, por sua vez, estimula ainda mais a evasão e gera novas rodadas de aumentos de impostos.
A segunda crítica é factual. Afirma que a cumulatividade magnifica os impactos do imposto nos preços, e que cadeias longas poderão implicar cargas tributárias elevadas.
Trata-se, em geral, de um equívoco numérico. O conceito de número finito de etapas de produção é destituído de sentido. O processo de produção é circular, e o número de etapas é infinito para qualquer produto. Além disso, como será demonstrado nas simulações abaixo, a cumulatividade não implica maior carga tributária setorial em comparação com tributos convencionais em simulações que mantêm a arrecadação constante.
A terceira crítica se refere ao efeito que a CPMF tinha sobre o comércio exterior: dificuldades de desoneração das exportações que acumulavam o tributo ao longo do processo produtivo.
Ora, para desonerar a exportação, basta conceder rebates fiscais, como na devolução do ICMS cobrado nas fases intermediárias da produção de exportados. Por exemplo, na legislação vigente, no caso da exportação de tratores, a montadora recebe créditos de 5,2% por conta de ICMS acumulado na aquisição de insumos, além da isenção de exportador. Bastaria fazer o mesmo para um tributo como a CPMF em todos os setores, com auxílio da matriz interindustrial brasileira.
A quarta crítica afirma que a alíquota do imposto sobre movimentação financeira pode começar baixa, mas tenderia a ser elevada ao longo do tempo. Tal crítica, na realidade, não deve ser atribuída a este ou àquele tributo, mas aos mecanismos de controle social exercidos pelos cidadãos. A crítica deveria ser dirigida aos governantes, que aumentam as alíquotas, e à própria sociedade, que aceita a situação. Aliás, se houvesse um imposto único, os olhos da sociedade estariam mais bem focados no controle social de sua única alíquota. Hoje, a babel tributária impede que mecanismos efetivos de controle sejam exercidos pela sociedade.
Por fim, há quem veja no ineditismo da proposta do imposto único sobre movimentação financeira uma demonstração de sua fraqueza, ao invés de uma exaltação da originalidade da situação brasileira, como se apenas fosse bom para o Brasil o que já tivera sido testado em países avançados.
Tributação do consumo: Imposto sobre Valor Agregado (IVA) e turnovers
Nenhum imposto é neutro, seja ele cumulativo ou sobre valor agregado. Todos os impostos possuem vantagens e desvantagens. O IVA pode ter vantagens, pois se alega que introduz menos alterações nos preços-relativos dos insumos. Contudo, esta afirmativa se baseia na aceitação da premissa da existência de mercados competitivos perfeitos. Sabe-se, contudo, que essa hipótese tem uma função essencialmente heurística, e que na prática os mercados não satisfazem os quesitos para serem considerados perfeitos. Nessas condições, torna-se impossível fixar um ordenamento confiável de situações alternativas do mercado sem uma análise pontual e específica de cada cenário, o que evidentemente não é feito quando se afirma a priori que tributos sobre valor agregado são mais eficientes que os cumulativos.
Ademais, a Teoria do Bem-Estar em economia demonstra que a sociedade poderá não optar por uma situação alocativamente eficiente se, comparada a outra situação, mesmo que ineficiente, puder atingir um ponto superior em sua função de be-mestar social.
Por sua vez, os impostos cumulativos também causam distorções nos preços relativos dos insumos, ainda que seus efeitos sejam mitigados por terem alíquotas marginais baixas relativamente aos IVAs. Os tributos cumulativos são menos transparentes pois se enraízam na produção e tornam-se invisíveis, exceção à última operação, no consumo final, onde sua transparência é maior que a dos IVAs.
No caso das exportações, os tributos cumulativos exigem métodos mais complexos de desoneração da produção, ainda que este seja um problema técnico perfeitamente contornável.
O importante no caso brasileiro é que, na comparação entre vantagens e desvantagens, os impostos cumulativos apresentam amplo saldo positivo. Não discriminam contra os salários, possuem alíquotas muitos mais baixas que os IVAs, e, com isso, desestimulam a sonegação e a corrupção. Ademais, tem custos baixíssimos de operação, quase zero no caso dos impostos eletrônicos, como a CPMF. Portanto, custam menos à sociedade e reduzem significativamente o pesado custo-Brasil.
Um equívoco comum na avaliação de IMFs advém da presunção de que tributos cumulativos acumulam elevadas cargas tributárias geradas por “longas” cadeias de produção.
As cadeias de produção jamais podem ser descritas como“curtas” ou “longas”: são sempre infinitas. Em realidade, qualquer produto ou serviço implica a contribuição de todos os demais setores da economia para sua produção. Trata-se de um processo circular e que necessariamente utiliza insumos de vários outros setores que, por sua vez, necessitam de insumos de outros setores, e assim sucessivamente. Portanto, a cadeia de produção é sempre infinita.
O que determina a carga de impostos de um tributo cumulativo é a relação entre insumos e valor agregado em cada estágio no processo de produção. Por exemplo, se um dado setor de produção compra insumos e agrega valor em montante equivalente, a cumulatividade carregada das etapas anteriores de produção encontra-se totalmente embutida no valor dos insumos adquiridos. O valor agregado nesta etapa de produção não sofre qualquer efeito cumulativo nessa mesma etapa, passando a fazê-lo apenas na medida em que a produção se transforma em insumo na etapa posterior de produção.
A Tabela 2 reflete esse fato, supondo-se uma taxa de agregação de valor (VA) equivalente a 100% do valor dos insumos adquiridos. No exemplo, supõe-se que o valor do produto final seja R$ 100, incluído o IMF de 1% no débito e no crédito bancários.
Os dados abaixo mostram que os efeitos da cumulatividade tributária se exaurem rapidamente ao se analisar o imposto carregado das etapas anteriores de produção, seguindo uma progressão geométrica decrescente, cuja razão pode ser vista na tabela abaixo. No exemplo dado, o valor total do imposto acumulado no preço do produto final é de R$ 3,8646 – ou seja a carga tributária equivale a 3,8646% do preço final.
Nota-se que nas condições especificadas no exemplo a cumulatividade gerada ao longo da cadeia de produção se exaure rapidamente, atingindo valor de apenas cinco centavos de real, R$ 0,05, na etapa t5, caminhando rapidamente para valores próximos de zero. Percebe-se, assim, que a acumulação de tributos ocorre com intensidade bem menos alarmante do que fazem crer os críticos dos impostos sobre movimentação financeira. Na etapa t3, o valor do imposto corresponde a pouco mais de 5% da carga tributária total.
Tomando-se um exemplo extremo, no qual o valor agregado em cada etapa é de apenas 10% do valor dos insumos adquiridos, a carga tributária na composição do preço final atinge 18,1066%. Nota-se que mesmo neste caso o imposto carregado de cada etapa anterior da cadeia de produção também cai rapidamente para valores próximos de zero. Na etapa t6 o valor do imposto corresponde a apenas 5% da carga tributária total.
Para ilustrar, o gráfico abaixo mostra o impacto da cumulatividade na cadeia de produção para vários níveis de agregação de valor.
Como se vê, os efeitos da cumulatividade são muito menos alarmantes do que parecem. Não há tributos totalmente neutros, e o que se deve medir é a relação entre efeitos positivos e negativos de cada forma de tributação. E, nessa comparação, tributos sobre movimentação financeira possuem, no mundo moderno, vantagens inequívocas relativamente a tributos sobre valor agregado.
Qualquer tributo introduz distorções econômicas. Contudo, a intensidade com que essas distorções ocorrem depende não apenas do tipo de tributo (cumulativo ou de valor adicionado), mas também do valor das alíquotas aplicadas. Sabidamente os tributos cumulativos são mais simples, menos tecnocráticos, e assim propiciam menos sonegação. Além disso, por sua própria natureza, possuem bases de incidência expressivamente mais amplas do que os tributos sobre valor agregado. Por essas razões, para uma dada meta de arrecadação, necessitam de alíquotas significativamente mais reduzidas do que as de valor agregado, e portanto, sob este prisma, tendem a gerar menos distorções no funcionamento da economia.
A Tabela 3, elaborada a partir das matrizes insumo produto do IBGE, compara as cargas tributárias setoriais dos tributos indiretos declaratórios convencionais (ICMS, IPI, ISS e as contribuições patronais ao INSS) em 2006 com um Imposto sobre Movimentação Financeira com alíquota de 1,49% no débito e no crédito dos lançamentos bancários. Em ambos os casos a arrecadação é a mesma, ou seja, 12% do PIB.
Nota-se uma significativa redução na carga tributária setorial em cerca de 80% com a aplicação de um imposto não declaratório sobre movimentação financeira, ao mesmo tempo em que a arrecadação mantém-se constante. Enquanto no sistema tradicional a carga tributária setorial causada pela incidência tributária varia de 19,88% a 65,17%, a introdução de um IMF faz esse impacto cair para uma faixa entre 3,61% e 13,14%. O desvio padrão em relação aos preços livres de tributos, que mede a alteração nos preços relativos, foi de 8% no sistema tradicional e de apenas 2,76% com a adoção de um IMF.
Os dados da simulação mostram que um tributo cumulativo com alíquota baixa pode ser preferível a um sistema tradicional onde predominam tributos sobre valor agregado com alíquotas elevadas (no modelo tradicional apenas o ISS é cumulativo). Segundo Martin Feldstein, “são as alíquotas marginais dos tributos que determinam o custo da eficiência – i.e., as perdas da carga do sistema tributário”. O estímulo à sonegação diminui e o impacto sobre os preços relativos da economia é muito menor com um tributo cumulativo sobre movimentações financeiras comparado aos impostos sobre valor agregado. Além disso, a visão de que os tributos cumulativos representam um elevado custo tributário ao final das cadeias produtivas não se sustenta.
No geral, há um grande mito a ser desmascarado: o de que os impostos sobre valor agregado são eficientes e os cumulativos são sempre ruins e indesejáveis.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, afirmei que:
Se a primeira meta de qualquer sistema tributário é arrecadar, decorre ser preciso que todos paguem, ou seja, que a incidência tributária seja universal. É evidente que, satisfeita a primeira condição, a de arrecadar de toda a sociedade, deve-se buscar um sistema tributário mais simples, mais barato, e que tenha um padrão de incidência socialmente aceitável.
Mas, se essa condição (de arrecadar de forma universal) não for satisfeita, a sobrecarga sobre os contribuintes efetivos se tornará insuportável, a evasão será estimulada e a arrecadação será comprometida. É como se um grupo de dez amigos saísse diariamente para almoçar e a conta fosse paga sempre pelos mesmos quatro ou cinco convivas. Sem dividir a conta por todos, a situação fica insustentável; os que pagam a conta passarão a se recusar a arcar com as despesas. Esse é o caminho que será trilhado pelo Brasil se não se reformar o sistema tributário de modo a ampliar o universo de contribuintes.
A questão da cumulatividade tributária foi abordada em importante estudo da Receita Federal, do qual foi extraído o trecho abaixo:
A discussão acerca da cumulatividade tem estado presente na mídia nos últimos anos. Em geral, argumenta-se que a cumulatividade traz todos os malefícios possíveis em termos de política tributária: onera preços, reduz a competitividade, impacta negativamente sobre as exportações, incide regressivamente, etc.
Entretanto, o que não se percebe, pois matéria tributária não é óbvia, é que isso não é consequência típica da cumulatividade: mesmo um imposto sobre valor agregado, se mal concebido e implementado, pode apresentar tais defeitos, ou até mesmo piores distorções. Ademais, não se deve apenas olhar para o desenho do sistema de modo a julgar suas qualidades. Um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) pode não ser solução superior a um imposto em cascata se permitir ampla sonegação, admitir quebra de cadeia, possuir alíquotas efetivas distintas entre setores e produtos, e conferir maior complexidade à sua administração.
Feitas essas considerações, que são relevantes e reais em países de fraca tradição tributária, é certo que, teoricamente, um IVA apresenta vantagens em relação à tributação cumulativa. Portanto, é o caminho a ser seguido por uma reforma tributária viável, desde que se tenha muito claro para que tipo de IVA pretende-se migrar.
No entanto, a transição, no caso brasileiro, deve ser lenta e monitorada, pois haverá impactos em vários aspectos econômicos relevantes. O primeiro deles é o impacto sobre a inflação, pois, seguramente, haverá efeitos diferenciados na formação de preços das cadeias produtivas. O problema é que os prejudicados repassarão integralmente para os preços de seus produtos os custos decorrentes desse impacto, mas, provavelmente, os beneficiados aumentarão seus lucros, não rebaixando os preços na medida requerida. O efeito conjunto, portanto, seria uma elevação generalizada de preços.
O segundo é o impacto sobre a regressividade do sistema ou a justiça fiscal. Estudo recente realizado pela SRF mostrou que a tributação cumulativa da Contribuição para o PIS e da Cofins incide proporcionalmente, com leve progressividade nas últimas faixas de renda, contrariamente ao ICMS, que tem comportamento errático entre as faixas, mas com tendência regressiva. Há que se tomar cuidado, assim, com falsos mitos, pois abandonar a cumulatividade em prol do valor agregado não é garantia de melhoria da justiça fiscal do sistema.
Um terceiro aspecto relevante é o investimento em treinamento de pessoal e administração do sistema, pois a tributação cumulativa é indubitavelmente mais simples do que a incidente sobre o valor agregado. A migração requererá cautela e monitoramento administrativo, de modo que o sistema mantenha níveis de arrecadação compatíveis com o esperado. Vale notar que a arrecadação da contribuição para o PIS e da Cofins, em 2001, foi de R$ 56,5 bilhões, o equivalente a 20,2% da arrecadação total da União.
É importante também mencionar que, no que tange à tributação da renda, a cumulatividade tem sido escolhida eletivamente por cerca de 90% dos contribuintes (optantes do Simples e do regime do Lucro Presumido), justamente por se tratar de apuração simplificada de impostos e contribuições. Portanto, é preciso ter claro que a migração para o regime do valor agregado acabará por tornar a apuração dos impostos e das contribuições, necessariamente, mais complexa. Nesse sentido, a apuração por valor agregado deveria atingir, primariamente, os contribuintes do Lucro Real, continuando a ser oferecida aos pequenos e médios contribuintes uma tributação simples e de baixo custo administrativo.
Não obstante tantas evidências a favor de tributos sobre movimentação financeira, há quem acredite que sua cumulatividade o inviabiliza como uma opção para compor uma reforma tributária, e que, portanto, defenda os impostos sobre valor agregado (IVA) acreditando em sua neutralidade, equidade e eficiência.
Vale repetir que a neutralidade não se encontra em nenhuma espécie de imposto. Todos provocam alterações nos preços relativos. A alegação de que o IVA provoca menos distorção nos preços relativos é verdadeira apenas sob rigorosas condições, dentre elas a hipótese de sonegação zero. Ou seja, teoricamente, a aplicação do IVA será vantajosa frente a um tributo cumulativo se, ceteris paribus, todos os contribuintes recolherem todos os tributos devidos, com absoluta isonomia operacional.
Entretanto, essas hipóteses não são observadas na prática. A sonegação é generalizada, e a aplicação de um sistema de cobrança sobre o valor agregado, ao demandar uma alíquota mais elevada, irá incentivá-la. O valor agregado não representa uma base imponível suficientemente ampla para permitir uma alíquota baixa que desestimule a sonegação e a informalidade. Pelo contrário, mantida a mesma base de incidência, a substituição do ICMS, IPI, PIS/Cofins, INSS das empresas e ISS por um IVA, como propõe o governo em suas reiteradas propostas de reforma tributária, exigiria uma alíquota em torno de 35%, o que ampliaria a clandestinidade na economia.
A sonegação gera um sistema injusto, com péssimo padrão de incidência, onde quem paga imposto tem de compensar pelos que sonegam, e onde uma empresa eficiente pode não ser competitiva frente a outra com custos mais elevados, mas que sonega.
No tocante às distorções nos preços relativos, outra simulação prevê o impacto sobre os preços de 42 setores de um imposto sobre movimentação financeira (IMF) comparativamente a um sistema com ICMS, IPI, INSS e ISS, utilizando a matriz insumo-produto do IBGE. Vale ressaltar que se está comparando um IMF com alíquota de 2,65% (que é a alíquota necessária caso houvesse um imposto único no país e que substituiria todos os tributos arrecadatórios nos três níveis de governo, cerca de 35% do PIB), contra quatro tributos que geram apenas cerca de 12% do PIB. Mesmo assim, os resultados favorecem a tributação sobre movimentação financeira.
Vale notar que a alíquota usada nesta simulação foi calculada com uma base mais ampla do que a da CPMF, uma vez que considera a extinção de benefícios fiscais e tributa em dobro os saques e depósitos em dinheiro. Essa base ampla é a que seria aplicável caso o Imposto Único fosse implantado no país, segundo as recomendações originais de seus proponentes, com uma alíquota de 2,65% nos débitos e nos créditos bancários. Reunindo os setores em cinco grandes grupos, vê-se na Tabela 4 que o impacto de
um IMF, com alíquota de 2,65% no débito e no crédito de cada lançamento bancário, faz os preços pós-impostos se distanciarem dos preços sem impostos entre 11,3% e 18,5%. Já no sistema tradicional, as elevações vão de 32,0% a 50,9%.
Analisando os desvios nos preços relativos setoriais causados por cada um desses dois modelos, nota-se que foram de 4,4% no caso do IMF e de 8% no sistema tradicional.
Conclui-se que a cumulatividade não implica introduzir maiores distorções, já que as distorções nos preços relativos provocadas por um IMF são bem menores do que as causadas pelo sistema tradicional. A meta na reforma tributária deve ser o combate à sonegação, a redução do custo operacional e a ampliação da base tributária imponível. Nesse sentido, é preferível um imposto cumulativo a um modelo predominantemente sobre valor agregado, como visto na simulação.
Cumpre lembrar que, operacionalmente, o IVA funciona melhor em países unitários e onde a ética tributária prevaleça. Mas há poucos exemplos, quase todos malsucedidos, de aplicação de IVAs sob responsabilidade de governos subnacionais em países federativos. Impostos sobre valor agregado têm natureza nacional, pois a cadeia de débito e crédito faz com que a decisão de um estado contamine a economia dos outros. Estes impostos devem ser unos, de competência federal, mas no Brasil sua competência foi delegada aos estados. Guerra fiscal, insegurança jurídica, acumulação de crédito, multiplicidade de regras e “passeio” de notas fiscais são exemplos de distorções decorrentes da equivocada outorga.
O Brasil precisa aprender com os erros de economias como a europeia, que procuram soluções para os graves problemas encontrados com seu IVA; e com os Estados Unidos, um país federativo que jamais entrou nessa aventura. Insistir em criar um IVA nacional poderá ser, como alertava o saudoso Roberto Campos, uma frustrante “tentativa de aperfeiçoar o obsoleto”.
O exemplo do PIS/Cofins não cumulativo
A luta contra a cumulatividade originou duas formas de cobrança do PIS/Cofins, uma cumulativa e outra não cumulativa. Tal fato acabou se transformando em um dos mais tumultuados incidentes tributários vistos no país.
O tempo vem comprovando, até mais rapidamente do que era esperado, a tese que venho defendendo há anos: a de que, nas circunstâncias sociais, econômicas e culturais do Brasil, a substituição dos tributos cumulativos por incidências não cumulativas é um equívoco.
O incidente PIS/Cofins levou o jornal Valor Econômico a afirmar, em editorial do dia 27/02/2007, que “poucas situações poderiam ser mais emblemáticas de como funciona – mal – o sistema tributário no país: os próprios contribuintes querem voltar ao processo anterior de pagamento da Cofins (cumulativo) porque as medidas que iriam resolver uma distorção acabaram por aumentá-la”.
Os defensores da não cumulatividade, profundamente decepcionados com os resultados práticos da adoção das medidas que vinham preconizando há tanto tempo, rapidamente deslocaram o eixo do debate para a questão do exagero na fixação das alíquotas dos novos PIS e Cofins, que multiplicaram as alíquotas cumulativas por um fator igual a 2,53. Pretendem com isso fazer crer que a meta da não cumulatividade é correta e que o erro se situa na ganância do governo que pretende aumentar sua arrecadação a qualquer custo.
Embora não se possa desqualificar o argumento sobre as intenções da Administração, é preciso esclarecer que as alíquotas não cumulativas atuais são equivalentes às alíquotas cumulativas anteriores, fazendo-se a devida correção para garantir a mesma base de incidência, como demonstrado em estudo da Receita Federal. O aumento da arrecadação, segundo o documento, ocorreu porque o novo PIS/Pasep passou a gravar as importações, como aliás não poderia deixar de acontecer se aceita a tese de que no comércio internacional a tributação deve ocorrer sempre no destino.
A decisão de tornar parte do PIS/Cofins não cumulativo foi estimulada por uma visão convencional, e no caso brasileiro, equivocada, presente no pensamento empresarial. Trata-se de “psicose anti-cumulatividade”.
Acabar com os tributos em cascata virou palavra de ordem e, como tal, esse conceito perdeu significado concreto. Em entrevista, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, pregou o fim da cumulatividade tributária, na mesma oportunidade em que defendeu a alteração dos mecanismos de financiamento do regime geral da Previdência mediante uma nova tributação sobre faturamento. A contradição é gritante, pois a tributação sobre faturamento é tão cumulativa quanto a CPMF ou o antigo PIS/Cofins.
Roberto Campos certa vez se referiu à intrigante distinção feita no Brasil entre dois tipos de cascatas. Uma, tida como maligna, incluía os odiados CPMF e parte do PIS/Cofins. Contra eles são disparadas as mais violentas críticas.
Por outro lado, existem tributos cumulativos unanimemente aplaudidos e tidos como notáveis contribuições brasileiras à ciência tributária. São eles o Simples e o Imposto de Renda das empresas tributadas pela modalidade do lucro presumido, que são impostos em cascata tanto quanto as criticadas CPMF (extinta) e parte do PIS/Cofins. Cumpre observar que nesses dois casos a opção é exclusivamente das empresas, e que ao fazerem esta escolha estão reduzindo suas obrigações tributárias.
Contradições como essas são produto de uma campanha de massificação de mitos patrocinada por grupos de interesses. Preconceitos se difundem por “slogans”, pela rotulação que inibe e ilude a opinião pública, confinando-a aos interesses de determinados grupos. O debate sobre a atual reforma tributária está contaminado por preconceitos que escondem conflitos entre lobbies de todas as espécies. O imbróglio resultante, não raro, leva seus principais interlocutores a afirmações contraditórias, conforme o momento ou o imposto específico em discussão.
De fato, tais contradições podem ser encontradas não apenas nas declarações oficiais de representantes do governo, mas principalmente nas manifestações das principais lideranças empresariais.
Em sua Nota Técnica n. 6/2003, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro descreve o resultado de pesquisa de opinião sobre a reforma tributária realizada entre empresários do setor. Os resultados demonstram que a mais importante fonte de descontentamento em relação ao sistema tributário brasileiro é o grande número de tributos, mencionada por 79,9% dos entrevistados. Em segundo lugar, com 51,8% das opiniões negativas surge a presença de tributos cumulativos/cascata, seguido de tributação sobre folha de salários (45,2%), complexidade do atual sistema (38,8%) e desigualdade na carga tributária entre os vários setores (36,1%), entre outros fatores de menor importância relativa.
Quando questionados acerca dos piores tributos para a empresa, causadores dos maiores transtornos à competitividade, os entrevistados mencionaram em primeiro lugar um tributo não cumulativo, o ICMS, com 71,9% dos registros, seguido das contribuições ao INSS, não cumulativo (54,8%); Cofins, cumulativo (42,5%); à extinta CPMF, cumulativo (32,8%); IPI não cumulativo (23,1%); IRPJ, não cumulativo (18,7%); PIS, cumulativo (13%); e CSLL, não cumulativo (6,7%).
Nota-se, portanto, que não prevaleceu a correspondência entre as características formais dos tributos, de serem ou não cumulativos, e a ordenação dos piores tributos segundo a avaliação dos empresários.
São duas as principais críticas à cumulatividade que, teoricamente, se tentou corrigir com o novo PIS/Cofins: o estímulo à excessiva verticalização da produção e a impossibilidade de desoneração das exportações e de oneração das importações.
Em artigo publicado na Gazeta Mercantil, Luiz Zottmann e eu sugerimos ter sido pouco provável que a cumulatividade do PIS, Cofins e da extinta CPMF tenha gerado distorções na alocação de recursos ou que tenha levado as empresas a um processo de verticalização da produção. As evidências empíricas brasileiras desmentem essa possibilidade, principalmente analisando-se a indústria siderúrgica, supostamente a mais fortemente afetada pela cumulatividade do sistema tributário nacional.
Quanto à questão do comércio externo, a eliminação da cumulatividade é apresentada pelo governo como conditio sine qua non para desonerar as exportações. Isso não é procedente. As Leis n. 9.363, de 16/12/1996, e 10.276, de 10/09/2001, já vinham desonerando as exportações do PIS e da Cofins.
Em geral, os fatos não comprovaram as previsões de que tributos cumulativos, como o IPMF/CPMF (extintos), teriam efeitos danosos à economia brasileira.
A tese de que um tributo “em cascata” prejudica a competitividade do produto nacional ao “exportar imposto”, uma vez que é impossível apurar quanto há de tributo embutido no preço dos produtos exportados, não é verdadeira. É possível desonerar as exportações e onerar as importações para garantir igualdade de condições entre a produção interna e a externa. Os órgãos reguladores do comércio internacional admitem o rebate ou isenção de tributos indiretos nas exportações. Como exemplo, no IVA, a China “não isenta de tarifas suas exportações, porém permite o rebate com tarifas fixas em uma base presumível, com diferentes tarifas para diferentes produtos”.
Para calcular os rebates fiscais, basta utilizar como mecanismo a matriz insumo-produto calculada pelo IBGE. Uma vez conhecida a carga tributária por setor, o governo poderia criar pautas de rebate fiscal para os exportadores.
Diz Luis Roberto Ponte afirma que:
Segundo as regras da OMC, os tributos que não podem ser abatidos nas exportações são os chamados impostos diretos, como o Imposto de Renda (IR) e as contribuições ao INSS. Além disso, o IR converte-se em um clássico imposto em cascata, com a mesma base da Cofins, o faturamento. Quando calculado sobre o lucro presumido, e, ainda assim, 90% das empresas preferem essa forma de incidência em “cascata”, em vez da incidência sobre o lucro real, que, teoricamente, não é cumulativa.
Em resumo, o impacto da Lei n. 10.833, de 29/12/2003, que alterou a Cofins tornando-a uma contribuição não cumulativa, foi exaustivamente analisado e repudiado por praticamente todos os setores.
O mais surpreendente é que a não cumulatividade da Cofins atendeu a insistentes reivindicações de alguns setores empresariais que instrumentalizaram outras representações sindicais patronais para transferir impostos para os segmentos que mais empregam mão de obra, os prestadores de serviços, que eram tidos, equivocadamente, como beneficiários de uma carga tributária mais leve. Descobriu-se, em seguida, que as perdas foram generalizadas, que a vantagem da não cumulatividade é um mito, e que há necessidade de urgentes medidas corretivas.
O impacto das alterações que criaram o PIS/Cofins não cumulativo tem sido preocupante. Além da enorme complexidade legislativa e burocrática do tributo, que levou a grandes esforços de treinamento e capacitação de técnicos públicos e privados para desentranhar as áreas de desentendimentos e contradições da legislação deste sistema híbrido de tributação, as incertezas jurídicas ainda produziram impactos duradouros e altamente distorcivos em termos de informações e decisões econômicas.
Após quase uma década de discussões com o Fisco nos tribunais, grandes empresas viram subitamente seus lucros melhorarem em 2006 devido a uma decisão que reverte provisões feitas há anos relacionadas com questionamentos à Lei n. 9.718, de 27/11/1998. O desfecho dos processos ocorreu em 2007 e foi responsável por 11,5% do lucro líquido de 26 companhias abertas que divulgaram seu balanço no primeiro trimestre de 2007. Outros casos certamente ocorrerão e demonstram que a complexidade do atual sistema tributário, além de altos custos de conformidade, ainda pode gerar significativas ineficiências econômicas a partir de informações equivocadas na contabilidade fiscal e empresarial, corrigidas agora por tardias decisões judiciais.
Pateticamente, o governo permitiu que, para atenuar os recém-descobertos males da não cumulatividade, alguns setores de “alto interesse social” pudessem permanecer no sistema cumulativo, que, de odiado, passou a ser objeto de desejo de vários setores produtivos. Educação, saúde, comunicação, informática, agronegócios, entre outros, passaram a ter regimes especiais, cheios de exceções e perigosos precedentes. A burocracia se aproxima das vítimas com seu abraço de afogado e promete novas medidas corretivas, como a desoneração da folha de salários das empresas, para compensá-las por viverem em um mundo não cumulativo.
A tão elogiada não cumulatividade tributária não passou de um engodo, exigindo compensações. E o governo é forçado a oferecer como paliativo o que sempre considerou ser o veneno: a opção de continuar com o sistema cumulativo. A ironia dessa situação seria risível se não fosse trágica em suas danosas consequências sociais e econômicas.
Algumas simulações e conclusões
A experiência brasileira de tributação da movimentação financeira iniciou-se em 1993, com a criação do Imposto Provisório sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (IPMF), que, posteriormente, foi substituído pela Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF — extinta). De início, as críticas ao imposto foram grandes, com a previsão de que seus efeitos seriam deletérios à economia. Falou-se em aumento generalizado de preços, volta da inflação a níveis pré-Plano Real, redução das transações intermediadas por instituições financeiras e dolarização da economia, sem mencionar as críticas já conhecidas quanto à tributação cumulativa e toda a celeuma jurídica em torno do sigilo bancário.
Sua implementação, iniciada em 1993, com algumas breves interrupções, comprovou que nenhuma das críticas se mostrou verdadeira. A contribuição tornou-se uma receita relevante para o ajuste fiscal brasileiro e não gerou qualquer efeito catastrófico sobre a economia. A contribuição apresentou níveis de produtividade elevados, especialmente se comparados com outros países que também implementaram imposto semelhante. Quanto a ser um ônus adicional aos custos de transação, isso é tanto verdade para a CPMF quanto para qualquer outro imposto, que sempre irá onerar a transação econômica e, consequentemente, os preços finais.
Quando analisada sob o enfoque da reforma tributária, nota-se que a CPMF foi um instrumento arrecadatório que não deveria ter sido eliminado. Seu benefício, em termos de arrecadação gerada, foi alto frente ao baixo custo de administração, sem mencionar que é um imposto não declaratório, sem ônus acessório para os contribuintes. Enquanto instrumento de fiscalização, essa contribuição deveria ter se tornado permanente, até porque é o único tributo a captar operações da economia subterrânea e a alcançar operações da nova economia, como aquelas relativas ao comércio eletrônico.
A reforma tributária que a sociedade brasileira almeja deverá manter a carga tributária global constante (ao menos em um primeiro momento) e, ao mesmo tempo, tentar reduzir a carga tributária para os atuais contribuintes, já sufocados pelo peso dos tributos que recolhem. Isso implica identificar um sistema capaz de universalizar a base de contribuintes e, assim, deslocar a atual carga dos atuais pagadores de impostos para onerar os que sonegam e os que se ocultam na informalidade. Isso só será possível mediante uma nova composição tributária que abra maiores espaços aos tributos não declaratórios, como os impostos sobre movimentação financeira.
O estudo da Receita Federal mencionado acima traz valiosa e prudente reflexão acerca dos rumos da reforma tributária no Brasil. Tratando dos modelos alternativos de reforma, afirma o estudo que:
(...) Não apenas à economia deve um sistema tributário ser adequado, é necessário que ele seja concebido em conformidade com as circunstâncias culturais do país no qual ele for aplicado. Em outras palavras, a mera importação de soluções adotadas internacionalmente não é garantia de medida bem-sucedida. Muito pelo contrário, a probabilidade de um resultado negativo é alta.
Há que se considerar as características culturais da sociedade, isto é, se os contribuintes, de modo geral, preferem soluções mais simples e menos exatas ou mais complexas e calibradas. Esses são trade-offs, ou dilemas, a serem escolhidos e que são bem conhecidos na teoria econômica, como a escolha entre eficiência e equidade. É justamente isso que ocorre, continuamente, em tributação. Ademais, é preciso que o desenho do sistema leve em conta a própria atuação da administração tributária e os instrumentos dos quais ela dispõe a seu favor no cumprimento de sua missão.
Assim, há países de forte tradição tributária, onde a consciência social em relação ao pagamento de impostos é alta, onde ser sonegador é sinônimo de vergonha e exclusão social, onde há educação e cidadania tributária, e onde o fisco tem poderes fortíssimos, mas também deveres que são monitorados pela sociedade. Por outro lado, há países de fraca tradição tributária, onde o pagamento de impostos se inscreve na lógica da cultura do desrespeito, onde o sonegador é visto como inteligente e esperto, e onde a administração tributária é continuamente surpreendida com liminares que geram um clima de insegurança jurídica.
O Brasil é um país de fraca tradição tributária e, portanto, a própria formulação das soluções tributárias deve prevenir, desde sua concepção, a evasão fiscal. Do contrário, a chance de ocorrerem vazamentos tributários aumenta consideravelmente. A construção de uma tradição tributária forte se inscreve no contexto geral de amadurecimento institucional do país e de consolidação de seus valores – algo desejável, mas inexequível a curto prazo. Enquanto isso não acontece, não reconhecer que o país tem fraca tradição é apenas caminhar rapidamente para a sonegação generalizada, perda de arrecadação e enfraquecimento das instituições tributárias.
Tais considerações são de extrema importância, considerando-se o mimetismo econômico que acomete o pensamento tributário nacional. Em geral, o discurso caminha na direção da desoneração da produção e no reforço da tributação pessoal. Assume-se, portanto, que essa conformação estrutural torna possível aumentar a progressividade do sistema, reduzir custos, simplificar os mecanismos burocráticos e combater a evasão. O que muitas vezes não é percebido pelos proponentes desses modelos é que há flagrante inconsistência entre o modelo proposto e as qualidades desejadas do sistema tributário, além da inviabilidade prática da adoção de tais modelos frente à tradição tributária brasileira.
Tais propostas de reforma tributária elogiam e recomendam um “novo” sistema tributário que, em última análise, é um velho sistema travestido de novas roupagens, como é o caso dos impostos sobre movimentação financeira.
Considerações finais
A receita total do setor bancário com a CPMF era estimada em R$ 4 bilhões anuais. Caso houvesse algum desconto sobre o lucro em decorrência da devolução do imposto, ele seria de R$ 10 bilhões em dez anos. Na prática, esses valores seriam muito baixos quando comparados com o impacto da CPMF sobre a economia brasileira.
A CPMF foi de fato um imposto impopular, mas sua contribuição à formação do ajuste fiscal, mesmo que de forma indireta, foi relevante. Sua contribuição não deve ser esquecida e não deve servir apenas para abrir espaço a uma eventual forma de contribuição que leve em conta a base tributária mais abrangente e as vantagens que este tributo não declaratório trouxe ao sistema tributário.
Na teoria econômica, a eficiência econômica e a equidade social são duas qualidades desejadas para um sistema tributário ideal, e o imposto sobre movimentação financeira pode contribuir para ambas, desde que bem desenhado e calibrado. A experiência da CPMF demonstra que é possível obter receitas substanciais sem grandes custos adicionais, o que aponta para a importância desse tributo em um novo sistema tributário brasileiro, buscando sempre o equilíbrio entre eficiência e equidade.
O estudo da Receita Federal mencionado acima também corrobora a importância de uma análise cuidadosa e contextualizada na formulação de políticas tributárias, reconhecendo as características culturais e institucionais do país e a necessidade de um sistema que favoreça a conformidade e a justiça tributária.
Estudo de renomada empresa de consultoria compara o que pode ser chamado de modelo brasileiro com sistemas tributários de 34 países em todo o mundo73. Os dados mostram com enorme clareza que a tributação no Brasil passou por um processo de evolução e de aculturação ambiental típica de países com fraca tradição tributária, e que começa a ser aplicado em vários outros países com condições semelhantes, como a tributação sobre faturamento e sobre movimentação financeira.
Relata o estudo que “... as contribuições sobre receita bruta, tais como o PIS e a Cofins, já possuem seus similares em 35% dos países pesquisados”, e que “a CPMF [extinta] já não é mais peculiaridade de alguns países da América Latina. Ela é encontrada em 15% dos países da amostra”. Vale acrescentar que a Austrália, país não incluído na amostra, já vem aplicando tributação sobre movimentação financeira há algumas décadas.
Os principais resultados são reproduzidos no Quadro 1, e demonstram que a característica principal do modelo brasileiro é a conjugação de forte tributação sobre renda, forte tributação sobre produção e consumo, e com tributos complementares sobre faturamento bruto e movimentação financeira.
Na realidade, há no Brasil um sistema do tipo modelo europeu com reforços de tributos cumulativos, cujas características fundamentais se ajustam a economias com fraca tradição tributária, altos coeficientes de informalidade e baixos níveis de renda.
O que se depreende da análise comparativa é que não há como esperar alta participação da tributação pessoal na carga tributária se a economia tem renda per capita baixa e mal distribuída; não há como evitar tributação indireta em economias com forte predisposição à evasão e ao descumprimento da burocracia fiscal exigida pelos impostos declaratórios sobre valor agregado; e não há como evitar que países com fraca tradição tributária, como é o caso de vários dos países da amostra da Deloitte, deixem de lançar mão dos tributos não declaratórios sobre faturamento e movimentação financeira, usados com sucesso na experiência brasileira.
É lamentável que o Brasil retroceda em seu processo de evolução e especialização tributárias, tentando defender um discurso formal que aponta para o modelo americano, mas adota uma praxis típica do modelo europeu. Ao mesmo tempo, repudia sua bem-sucedida experiência com tributos inovadores como a CPMF (extinta). O resultado inevitável será a frustração com o discurso e o insucesso com a prática específica que não se coaduna com as tradições culturais e econômicas da economia brasileira.
Como pudemos demonstrar ao longo deste texto, algumas das críticas aos tributos sobre movimentação financeira mostraram-se desprovidas de razão, e outras foram amplamente contestadas pelos fatos. Críticas como risco de “remonetização” da economia, a fuga dos depositantes do sistema bancário, a verticalização da produção, a impossibilidade de desoneração das exportações e a regressividade não foram comprovadas. Ao mesmo tempo, a insonegabilidade de tributos sobre movimentação financeira tornou-se amplamente reconhecida, até mesmo pelos adversários de primeira hora.
Delfim Netto reflete essas conclusões em artigo no qual avalia o estudo da Receita Federal surgido em defesa da CPMF (extinta). Após um breve resumo do que chamou de “filosofia fazendária do governo”, o articulista afirma ter “uma certa simpatia com essa posição, apesar de achá-la muito nihilista”. Mas, apesar desta concessão, formula uma crítica aos impostos cumulativos como a CPMF, sendo este tema, provavelmente, o derradeiro item da polêmica que ainda não foi devidamente rebatido pelos defensores dos IMFs. Afirma ainda o articulista: “Esta discussão elide o verdadeiro problema, que é saber qual o papel da política fiscal no processo de desenvolvimento econômico, para prosseguir afirmando que a eficiência produtiva da economia de mercado é tão maior quanto menores forem as distorções introduzidas nos preços relativos determinados pelo livre funcionamento da oferta e da procura. ... é conhecido que a tributação em ‘cascata’ introduz distorções maiores do que sobre o valor agregado.”
Nesse sentido, é importante tentar avaliar o impacto dos modelos tributários alternativos (cumulativos versus IVAs) na formação dos preços relativos da economia.
Nos primeiros trabalhos sobre o Imposto Único, tentou-se avaliar o impacto dos impostos cumulativos na formação dos preços na economia. Foram utilizadas as matrizes de relações interindustriais do IBGE e suas atualizações, tendo-se chegado à conclusão de que, por exigirem alíquotas nominais sensivelmente mais baixas do que os IVAs e, consequentemente, por desestimularem a sonegação, os IMFs impactariam com menor intensidade os preços na economia em comparação com a situação limite de ausência de tributação.
Cumpre agora avaliar o impacto de tributos cumulativos nos preços relativos, como mencionado por Delfim Netto. As simulações, descritas nas tabelas abaixo, tentam medir este efeito.
Sabidamente, todos os impostos introduzem distorções nos preços relativos. Contudo, passou-se a acreditar que o efeito cumulativo dos IMFs poderia causar alterações mais intensas. Acreditava-se que os IVAs seriam menos distorcivos, já que a carga tributária na composição final dos preços teoricamente poderia ser controlada pelo formulador da política econômica. O que esses argumentos deixaram de considerar é que a evasão é um fato marcante da realidade tributária brasileira e que os IVAs estimulam a sonegação por conta de suas altas alíquotas.
Não obstante, a superioridade dos IVAs relativamente aos tributos cumulativos seria parcialmente verdadeira se duas condições fossem satisfeitas. A primeira é a ausência de sonegação, e a segunda, a existência de alíquotas uniformes por todos os setores e produtos. Como sabidamente nenhuma dessas duas hipóteses é verdadeira, a afirmação conclusiva de que os IVAs introduzem menos distorções do que os IMFs não pode ser aceita a priori.
Ademais, os impactos nos preços relativos dependem não apenas do tipo de tributo, mas também da intensidade de seu uso, ou seja, de suas respectivas alíquotas. Como, para um dado nível de receita, os IMFs necessitam alíquotas significativamente mais baixas do que os IVAs, percebe-se imediatamente a fragilidade das afirmações de que os tributos cumulativos necessariamente introduzem distorções mais fortes nos preços relativos.
A presença de alíquotas diferenciadas e a existência de sonegação significativamente mais elevada nos IVAs fazem com que os impactos nos preços da economia sejam tão incontroláveis, aleatórios e não intencionais quanto no caso de IMFs.
Possivelmente, as distorções geradas pelos IVAs sejam até mais fortes do que nos IMFs, já que a sonegação é um fenômeno intensamente volátil, mutável, imprevisível e camuflado. Nos IMFs, a variabilidade de seus impactos nos custos de produção setoriais decorre de alterações nas funções de produção, que ocorrem apenas no médio e no longo prazo. Isso faz com que os IMFs, mesmo tendo padrões de incidência não intencionais e não controláveis, possuam mais estabilidade do que os IVAs. A sonegação é geralmente instável, mesmo a curtíssimo prazo, tornando os efeitos alocativos dos IVAs ainda mais mutáveis e imprevisíveis do que nos IMFs.
As simulações apresentadas a seguir tentarão mostrar que:
Supondo-se sonegação zero, os IMFs, por terem alíquotas mais baixas, implicarão menores distorções nos preços relativos do que nos modelos tributários baseados nos IVAs; e
Com a possibilidade de maiores taxas de sonegação no uso de IVAs, a incidência desses tributos na formação de preços torna-se ainda mais distorciva, superando em muito as distorções causadas pelos IMFs.
Trata-se de um exercício de estática comparativa no qual os modelos tributários do IMF (cumulativo) e do IVA (valor agregado) serão comparados com uma situação heurística de ausência de tributação, que supostamente deveria ser o preço de equilíbrio competitivo. Nesse sentido, quanto mais os preços setoriais se distanciarem dos preços livres de tributos (que no modelo foram igualados à unidade), maior será o impacto distorcivo que demonstram ter na formação das cargas tributárias setoriais.
A seguir, para cada hipótese de simulação, será montada a matriz dos preços relativos setoriais, e a distância de cada preço relativo do valor unitário medirá a distorção causada pelo respectivo modelo tributário no preço relativo daquele determinado par de setores. A medida de distorção global é dada pelo desvio padrão dos preços relativos da matriz em relação à unidade. Em todas as simulações, a base de incidência utilizada é a aplicável à CPMF em 2006 (R$ 8,4 trilhões).
A Simulação n. 1, cujos resultados estão na Tabela 5, compara o impacto nos preços relativos de um imposto sobre movimentação financeira – IMF – relativamente com um modelo tributário convencional do tipo IVA, composto pelo ICMS, IPI e INSS patronal. Em ambos os casos, a arrecadação é a mesma, ou seja, 11,4% do PIB em 2006.
A simulação incorpora apenas os tributos indiretos, não incluindo a receita gerada pelos tributos lançados sobre o patrimônio (IPTU, IPVA, ITR etc.), pelo Imposto de Renda, pelos impostos sobre o comércio externo e por tributos com características de extrafiscalidade. Vê-se que o desvio nos preços relativos no caso do IMF foi de 2,65%, ao passo que no caso do modelo convencional atingiu 8,17%. Comprova-se assim a inveracidade da afirmação de que necessariamente os tributos cumulativos geram maiores distorções nos preços relativos. Não se pode afirmar a priori que isto ocorra ou deixe de ocorrer. Contudo, pode-se afirmar que nas circunstâncias da economia brasileira a crítica não se revelou verdadeira.
afirmação de que necessariamente os tributos cumulativos geram maiores distorções nos preços-relativos. Não se pode afirmar a priori que isto ocorra, ou deixe de ocorrer. Contudo, pode-se afirmar que nas circunstân-cias da economia brasileira a crítica não se revelou verdadeira.
Outra interessante variante das simulações realizadas diz respeito à alternativa proposta pelo IPEA de eliminação das contribuições sociais cumulativas. O resultado das simulações é reproduzido na Tabela 6.
A eliminação da Cofins e do PIS/Pasep tornaria necessária a elevação das alíquotas dos tributos indiretos atuais (ICMS, IPI, INSS patronal e ISS) em 59% em relação ao seu nível atual para manter a arrecadação constante.
Por si só, essa elevação seria inviável, pois representaria um forte estímulo à evasão tributária. Mas, supondo que isso não ocorra, o que é altamente improvável, os desvios nos preços relativos se elevariam dos 8,17% verificados na Simulação nº 1 para 9,39%, agravando ainda mais as fortes distorções nos preços relativos da economia. O desvio nos preços relativos causado pelo IMF seria de 4,04%, ou seja, 57% mais baixo do que no caso da eliminação das contribuições sociais dentro de um modelo convencional do tipo IVA. Em ambos os casos, a arrecadação seria de 19,1% do PIB.
A simulação dos efeitos da sonegação e seu impacto nas distorções dos preços relativos é outro caminho interessante para pesquisa futura. A hipótese é que a sonegação introduz fortes elementos de instabilidade, volatilidade e aleatoriedade nos preços relativos de uma economia.
Na Simulação nº 3, foi incluído o ISS, um tributo cumulativo. O objetivo do exercício é comparar o IMF com o atual sistema tributário, que é um misto de cumulativo e não cumulativo.
Na Tabela 7 foram utilizados os mesmos parâmetros da Simulação nº 1, mas com a introdução do elemento "sonegação". Para tanto, foram utilizadas as alíquotas dos impostos constantes na Simulação nº 1 ajustadas pelas estimativas sobre o peso do setor formal nas estatísticas do Valor da Produção do IBGE. Com isso, as alíquotas efetivas foram alteradas em relação às alíquotas formais de cada setor. Por exemplo, enquanto na indústria do açúcar 100% do setor atua na formalidade, na agricultura 93,1% estão na informalidade. Utilizando essas informações para os 42 setores usados nas simulações, foram feitos os ajustamentos equivalentes nas alíquotas tributárias setoriais, com exceção da alíquota do IMF, por ser insonegável mesmo para as empresas que atuam na informalidade. A expectativa é que, logicamente, o desvio nos preços relativos do modelo do IMF permanecerá constante (igual ao da Simulação nº 1), pois não houve alteração de alíquota. Mas espera-se, pelas razões mencionadas acima, que o desvio do modelo convencional fosse mais alto do que os 8,17% verificados na Simulação nº 1.
Na medida em que se admite a existência da sonegação, estimulada pelas altas alíquotas dos tributos convencionais, a queda nas alíquotas efetivas implicará perda de arrecadação. Para fazer a correção, as alíquotas nominais dos tributos convencionais foram aumentadas numa proporção dada pela relação entre a soma das alíquotas nominais e a soma das alíquotas efetivas. A expectativa é que, com essa correção, esteja se fazendo a compensação dos efeitos da sonegação na arrecadação tributária pelo aumento das alíquotas nominais.
Em segundo lugar, as simulações comprovam um fato que já pudemos observar anteriormente: as distorções nos preços relativos dependem de dois fatores — o nível nominal das alíquotas e sua dispersão ou variabilidade. Ao introduzirmos a sonegação em nosso modelo de simulação através de uma queda nas alíquotas efetivas dos impostos, reduz-se automaticamente o desvio nos preços relativos, pois as alíquotas efetivas caem. Nesse sentido, ocorreu o esperado, já que, antes da correção no nível das alíquotas, o desvio do modelo convencional caiu de 8% para 7,8%. Em outras palavras, o efeito redutor dos desvios provenientes da queda nas alíquotas foi mais intenso do que o efeito amplificador dos desvios causados pela correção generalizada das alíquotas nominais para compensar a perda de arrecadação causada pela sonegação.
Em terceiro lugar, há uma outra explicação estritamente numérica. Para fazer a compensação das alíquotas e neutralizar a queda de arrecadação causada pela sonegação, utilizou-se como indicador o fato de que a soma das alíquotas efetivas foi apenas 10% mais baixa do que a soma das alíquotas nominais. Ou seja, as alíquotas nominais foram aumentadas em 10% de forma generalizada. Cumpre dizer que, por falta de dados, não foi possível ponderar essa queda pela importância relativa de cada setor na economia brasileira, como seria mais adequado. Trata-se de uma limitação metodológica séria, que deverá ser corrigida no futuro. Assim, a correção necessária poderia ter sido maior do que a realizada, mas não há informações que comprovem ou desmintam essa possibilidade, dado o caráter aleatório dos padrões de sonegação tributária.
Uma quarta explicação é de caráter conceitual. Como já afirmamos antes, o teorema do "second best" nos ensinou que, na ausência de condições competitivas perfeitas, as distorções podem se compensar, de tal forma que a presença de duas fontes de distorções pode gerar uma situação mais próxima da eficiência competitiva do que a presença de apenas um elemento de distorção. Nesse sentido, não há como saber a priori se uma dada situação é mais ou menos eficiente do que outra. Apenas uma análise empírica será capaz de proporcionar respostas adequadas.
O que pode ter sido representado na Simulação nº 3 é exatamente esse fenômeno, ou seja, as distorções causadas pelos índices de sonegação utilizados no modelo podem ter gerado compensações cruzadas, de tal forma a reduzir, ao invés de aumentar, as distorções nos preços relativos da economia.
Pode-se dizer que esse resultado confirma a inadequação das afirmações peremptórias e incondicionais feitas por vários críticos e estudiosos da cumulatividade acerca de seus efeitos distorcivos nos preços relativos da economia.
REFERÊNCIAS:
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