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Marcos Cintra

A marcha do Imposto Único


A polêmica acerta do Imposto Único, diferentemente do corrido logo após o lançamento do projeto em janeiro de 1990, não está mais envolta em questões conceituais acerca de sua eficiência e de seus impactos alocativos e distributivos. Em realidade o debate hoje se encontra muito mais capacidade arrecadatória do Imposto Único, e nos riscos envolvidos por se tratar de uma experiência inovadora em todo mundo.


Para uma visão clara da evolução do debate em torno do Imposto Único, indico a leitura do livro Tributação no Brasil e o Imposto Único, editado pela Makron Books em maio de 1994, onde procurei organizar os principais artigos a favor e contra o projeto. O texto poderá confirmar que questões como a equidade do Imposto Único, e o perigo de que possa causar desintermediação bancária, verticalização da produção, dificuldades no setor exportador, ou causar o retrocesso institucional para o escambo e para formação de sistemas paralelos de compensação de pagamentos, foram todas superadas pelo debate. Ficou claro que muitas críticas eram infundadas, ou exageradas. Por outro lado, foram sugeridas providências administrativas na regulamentação e aplicação do Imposto Único capazes de solucionar adequadamente os principais problemas detectados durante o debate.


A crítica que gostaria de abordar neste texto refere ao temor com a alíquota de 1% não seja capaz de gerar receita suficiente para financiar o Estado de forma não-inflacionária. Alguns críticos estima em US$ 130 bilhões a arrecadação necessária com o Imposto Único. Afirma-se também que a experiência do IPMF “prova” que a alíquota de 1% do Imposto Único não é capaz de produzir a receita esperada. Abordarei também a crença generalizada de que a carga do Imposto Único torna-se mais pesada com inflação baixa.


1.       A alíquota de 1% não tem propriedades místicas


Inicialmente, cumpre retificar a interpretação da alíquota de 1% do Imposto Único evidenciada em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/07/1994 pelo auditor fiscal José Rui Gonçalves Rosa. Ela nunca foi definida por nós como a que seria necessária para garantir “financiamento não-inflacionário” do setor público. Muito menos para financiamento não-inflacionário tão absurdamente elevado, US$ 130 bilhões, um valor que o setor público brasileiro jamais sonhou em arrecadar.


Em realidade, tal expressão, ou equivalente, jamais foi utilizada em nossos estudos. Não se procurou descobrir, nem provar, qualquer qualidade transcendental neste 1%, o qual, obviamente é apenas um balizamento que poderá ser alterado para mais, ou para menos, em função das metas de política econômica do governo.


É surpreendente que sequer se possa imaginar a existência de uma alíquota que intrinsecamente pudesse possuir tão extasiante propriedade: a de ser não-inflacionária. Afinal, o “financiamento não-inflacionário” não depende exclusivamente da alíquota tributária, mas sim, da relação entre esta alíquota (que define a taxa de extração de recursos do setor privado), e o nível de gastos realizado pela administração pública.


Despretensiosamente, a alíquota de 1% sempre foi definida pelos defensores do Imposto Único com aquela capaz de garantir neutralidade arrecadatória frequente à tendência mais recente na receita tributária. Nada mais do que isto.


Hoje, a carga tributária está sendo violentamente elevada. Trata-se de ajuste fiscal equivocado, pois não redimensiona o tamanho, as funções e a ineficiência do setor público. Apenas oferece mais alimento pra ser devorado pelo monstro burocrático. Partindo do cerca de 23% tradicionais nos últimos vinte anos, a atual administração pretende chegar a 29% do PIB em 1994. É evidente que este brutal aumento de impostos não poderia ser concretizado, no caso de vigência do Imposto Único, com a mesma alíquota de 1%.


Não faz o menor sentido, portanto, julga-se a alíquota de 1% pelo critério de ser, ou não, inflacionária; muito menos pelo de ser capaz de arrecadar absurdos US$ 130 bilhões para “zerar o déficit operacional”, ou de ser, ou não , compatível com a “estabilização da economia brasileira”, como afirmado por críticos do Imposto Único.


2.       A arrecadação que o Imposto Único deseja substituir


As discrepâncias nas estimativas do produto nacional do IBGE, do Banco Central e do Banco Mundial são acentuadas. Dependendo do órgão de pesquisa, as estimativas do PIB situavam-se entre US$ 350 bilhões e US$ 450 bilhões. Hoje, as estimativas são ainda mais voláteis, podendo chegar, segundo o Banco Mundial e o FMI até a US$ 750 bilhões, levando-se em conta o poder de compra interno. Nesse sentido a afirmação usualmente aceita de que durante a década de 80, a carga tributaria bruta situou-se entre 22% e 25% do PIB era apenas indicativa.


Portanto, não há sentido em calibrar a alíquota do Imposto Único para meta percentual relativamente do PIB (qual deles?). Faria ainda menos sentido fixar-se como meta o financiamento “não-inflacionário” do setor público pois este ainda dependeria, além da receita, dos níveis de gastos realizados.


Daí se estabelecer como meta os montantes absolutos que vinham sendo arrecadados no período, entre US$ 80 bilhões e US$ 09 bilhões. Buscou-se a alíquota do IUT capaz de obter, com certa folga , arrecadação de US$ 85 bilhões.


O Imposto Único visa eliminar os impostos e contribuições existentes, mantendo-se apenas aqueles com características predominantemente extrafiscais. Permanecem as taxas pela prestação de serviços, e as contribuições pessoais e associativas, como o FGTS, o PIS-PASEP, os recolhimentos ao SESC, SENAI etc. Assim, somando-se a arrecadação tributária do governo federal com a receita do ICMS, tem-se um valor que representa a virtual totalidade das receitas tributárias do país.


As receitas próprias dos municípios, ISS e IPTU se aproximam de 3% da carga tributária bruta brasileira, ao passo que o ICMS representa mais de 90% das receitas estaduais. Assim, a receita de impostos da União, as arrecadações previdenciárias e as receitas tributárias que se pretende substituir com a adoção do Imposto Único.


O quadro abaixo mostra as magnitudes destes valores ao longo dos últimos dez anos, e mostra que US$ 85 bilhões é valor suficiente para uma política econômica compatível com a estabilidade monetária e com o controle do déficit público, desde que dentro de um programa coerente de ajuste fiscal.



A permanecer a fúria arrecadatória da atual administração, desacoplada de esforços sérios para ajustar o setor público, a carga tributária de 29% que o Executivo deseja atingir em 1994, poderá logo vir a ser julgada insuficiente pela atual administração, que buscará elevá-la para 35% ou 40% do PIB. Neste caso a alíquota de 1% não será suficiente, o que não implica critica ao Imposto Único, mas sim ao desatino dos governantes que buscam ajustar o governo sempre pelo lado do aumento da arrecadação, e raramente pelo lado da busca de eficiência.


1.       Os efeitos do Imposto Único independem da inflação


Mais indigente ainda é a afirmação de que o peso do IUT aumenta com a queda na inflação.

Tomemos o caso de uma aplicação financeira de 100 unidades monetárias, com correção monetária de 30% e juros reais de 10%. Ao final do período o capital corrigido é de 130, e a remuneração de 13, perfazendo um crédito total de 143. A alíquota de 1% do IUT implica arrecadação de 1,43, que pode ser distribuída entre o valor original (1% de 100), a correção (1% de 30), e os juros reais (1% de 13). No total, a operação líquida de imposto rendeu 141,57, ou seja, um retorno de 8,9% no período.


Se a inflação fosse zero, o crédito bruto da operação seria de 110, o imposto atingiria 1,1, e o retorno líquido seria de 108,9, ou seja um rendimento real de 8,9%, exatamente o mesmo que com inflação de 30%.


Creio que com o auxilio deste exemplo os críticos, acometidos pelo conhecido mal da “ilusão monetária” causada pela inflação, poderão relembrar as conhecidas propriedades distributivas da multiplicação que todos aprendemos na escola primária, e que mostra que com inflação zero, mil, ou um milhão, o peso do Imposto Único será sempre o mesmo.


Que fique claro, portanto, o que se pretende com o Imposto Único. Substituir os impostos predominantemente fiscais por um imposto único capaz de arrecadar o que eles geram hoje de receitas para o governo: US$ 85 bilhões. Qualquer outra estimativa do que seria necessário é da responsabilidade de cada um. Receita de US$ 130 bilhões implica brutal elevação da carga tributária, que joga o custo do ajuste fiscal exclusivamente sobre os contribuintes. Não concordamos com esta forma de ajustar o setor público brasileiro, mas esta é uma outra discussão.


2.       A arrecadação do Imposto Único frente à do IPMF


Questiona-se o potencial de arrecadação do Imposto Único, tomando por base a atual arrecadação do IPMF. Na crítica, o IPMF é tido como um espelho do Imposto Único, quando em realidade, as coincidências são apenas aparentes. Entre eles há diferenças substanciais. Não se trata apenas da diferença conceitual básica entre os modelos de unicidade e de multiplicidade tributária. Há distinções operacionais profundas entre os dois impostos, já apontados no artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/02/1994, embora ambos sejam impostos sobre lançamentos bancários.


O IPMF tributa cumulativamente as transações financeiras, ao passo que o IUT tributa os rendimentos reais; o IPMF contém incontáveis imunidades e isenções, ao passo que o IUT é universal; o IPMF não tributa a movimentação de numerário, ao passo que o IUT sobretaxa saques e depósitos em moeda. Finalmente, o IUT não induz à sonegação, uma vez que a economia de 0,25% da movimentação bancária – um valor que a experiência mostrou ser quase irrisória –, mas pelo “efeito dedo-duro”.


O IPMF está sendo utilizado pela Receita Federal como um mecanismo de controle da arrecadação dos demais tributos. Os custos implícitos nas formas de evasão do IPMF são elevados, desestimulando s sonegação. No caso do IPMF, contudo, há vantagens inequívocas, pois a economia tributária se situa na casa de dezenas de pontos percentuais que compõem a atual carga tributária bruta brasileira. Em realidade, o IPMF pode ser causa de exposure ao Fisco pelo montante da carga tributária bruta teórica que no Brasil se situa em mais de 50% do PIB, como apontado por Antoninho Tresivan.


Estas diferenças entre IPMF e o IUT respondem pelas discrepâncias observadas nas previsões da receita do IUT frente ao realizado pelo IPMF. As imunidades constitucionais são expressivas, pois incluem representações diplomáticas, sindicatos, entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, fundações, papel de imprensa, editoras de livros, associações de classe e muitas outras que em seu conjunto representam grande parcela das atividades econômicas. Basta lembrar que grandes setores da economia acham-se fora da alçada do IPMF por terem entidades mantenedoras sem fins lucrativos, como o setor de educação e de saúde. Grandes fundações ligadas a conglomerados econômicos e financeiros de porte, também estão isentos.


Vale dizer ainda, que o IPMF é um imposto recolhido sem qualquer esforço de fiscalização por parte do governo, uma evidente lacuna a ser preenchida no caso de implantação do Imposto Único.


Feitas as ressalvas e alertas acerca do que ocorre com a arrecadação atual do IPMF, não há razoes para acreditar que os números previstos para a arrecadação do Imposto Único estejam incorretos. A experiência do IPMF não é bom indicador da receita do IUT. Quando muito, serve para mostrar os erros que estão sendo cometidos, e aponta para a necessidade de total universalização da incidência tributária sobre os fluxos bancários, bem como para a necessidade de mecanismos formais de fiscalização nos sistemas de informática bancaria. Sem isto, o IPMF, apesar de altamente produtivo, poderá continuar sendo fortemente comprometido em seu potencial arrecadador e em sua credibilidade.


Reafirmamos que com alíquotas de 1% o IUT irá gerar arrecadação de US$ 100 bilhões, que, dentro de uma necessária, sempre prometida e nunca cumprida reforma fiscal, deverá ser mais do que suficiente para a manutenção de um aparato público capaz de exercer suas funções precípuas de forma produtiva e eficiente. Supera-se, com folga, a meta prevista de US$ 85 bilhões.


As estimativas apresentadas representam dados diretamente observados dentro do sistema bancário, e mostram com maior fidedignidade a movimentação bancaria no Brasil do que os reflexos da arrecadação do IPMF, já maculado por serias falhas de implantação. Acreditamos serem levianas as comparações entre o IUT e o IPMF sem as ressalvas mencionadas acima, e que buscam cotejar situações e experiências que sabidamente exigem ajustes profundos para tornarem-se comparáveis.


Nesta discussão, uma coisa fica clara. O eixo da polemica não está mais centrado nas características intrínsecas do Imposto Único, como as que definiriam a eficiência, equidade, custo, e robustez do tributo.


Hoje, a polêmica se situa em pontos circunstanciais e acessórios: se a alíquota mais adequada deve ser 1%, 0,8%, ou 1,2%, dependendo da meta que deseja obter quanto ao “financiamento não inflacionário” do setor público e seu impacto na “estatização da economia brasileira”. O IUT, como ademais todos os outros impostos, não possui uma alíquota mágica e imutável. É apenas um método eficiente e barato de arrecadar recursos para o Estado.


Cumpre apontar ainda, que, com a estabilidade monetária introduzida pelo real, a arrecadação do IUT aumentaria ao invés de cair como erroneamente muitos acreditam. O IUT sobretaxa os saques de numerário do sistema bancário, e com o aumento do volume de moeda Manuel em circulação haveria reforço na arrecadação. A queda no giro financeiro bancário afeta negativamente a receita do IPMF, pois este as tributa de forma cumulativa, mas não afetaria em nada o IUT, pois este tributa apenas os ganhos reais, e portanto, independentemente do giro das movimentações financeiras bancárias.

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