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Fernando Rezende

O nariz do camelo

Fernando Rezende

Folha de S. Paulo, 23/11/91


Especialistas em orçamento público estão familiarizados com a artimanha conhecida como o "nariz do camelo". Trata-se de assegurar a aprovação de um projeto monstruoso, mal concebido, de graves proporções e graves defeitos, revelando, inicialmente, apenas uma minúscula faceta de seu conteúdo. Após o nariz haver conquistado o seu espaço (na versão orçamentária, o nariz pode ser a aprovação de uma verba para a realização de estudos de viabilidade relativos a um projeto faraônico que, se inteiramente conhecido, seria imediatamente rechaçado) ficaria mais fácil, posteriormente, abrir o caminho necessário ao avanço lento, porém seguro, de todo o animal.


O noticiário recente da imprensa dá conta de que os defensores da esdrúxula proposta do imposto sobre transação bancária (ex-único) pretendem adotar a mesma artimanha para conseguir aprovar sua proposta em um território distinto - o da tributação. Conforme noticia a Folha, na edição do dia 15 de novembro, um grupo de 140 deputados - a maior parte integrante do Bloco da Economia Moderna, o BEM - vai apresentar uma emenda à Constituição criando um imposto sobre transações bancárias de 0,1%. Pergunto: em que país conhecido pela modernidade de sua economia existe um imposto sobre transações bancárias? Que motivos levam os novos adeptos da proposta a acreditar que a alternativa sugerida seja preferível em comparação com as medidas encaminhadas pelo governo ao Congresso?


Relembremos os fatos. A principal crítica ao projeto tributário encaminha- do pelo governo ao Congresso foi a de que ele penalizaria de modo excessivo a classe média. 1ão forte foi a repercussão dessa advertência que já no dia seguinte ao anúncio das medidas o próprio governo apressou-se em rever sua posição. Quiçá a alternativa apresentada no âmbito do Imposto de Renda das Pessoas Físicas ainda não seja a mais satisfatória e possa ser aperfeiçoada no Congresso. Mas qual a justificativa para derrubar inteiramente um projeto, cujo maior defeito era penalizar a classe média, para sugerir um substituto que irá penalizar, em maior medida, a grande maioria dos trabalhadores de baixa renda? Por que trocar um projeto que se propunha corrigir distorções na tributação da renda - de efeitos conhecidos - por uma alternativa cujo impacto final sobre o preço das mercadorias e serviços consumidos pela grande maioria da população brasileira é certamente perverso, embora não inteiramente conhecido?


Que não se iludam os incautos. A suposta magia do imposto sobre transações bancárias está no fato de que a população não consegue perceber o tamanho do imposto que onera o preço dos produtos consumidos. A sua virtude, do ponto de vista do fisco, está na facilidade de cobrança e na falta de transparência. O seu vício, do ponto de vista da sociedade, está na ausência de qualquer possibilidade de os contribuintes terem uma noção aproximada do montante que lhes é exigido, compulsoriamente, para o financiamento do Estado. A modernidade tributária reclama o fortalecimento dos vínculos de coresponsabilidade entre o cidadão contribuinte e o Estado que provê bens e serviços demandados pela sociedade. Nesse sentido, a idéia do imposto sobre transações é um notável retrocesso.


É no mínimo curiosa a atual inversão de posições. Quando o governo, numa atitude prudente, propõe alterações tributárias que fogem ao fácil caminho da elevação das alíquotas dos impostos e contribuições sociais que sufocam a produção, inibem os investimentos, gravam as exportações e oneram em mais de 30% o custo da cesta básica de alimentos do trabalhador brasileiro - caminho este bastante percorrido nos últimos anos -, obedecendo aos limites estabelecidos pela Constituição, é do Congresso que partem sugestões para emendar a Constituição, a fim de acolher uma medida que propõe substituir a tributação da renda e do lucro por mais um imposto cumulativo sobre a produção e comercialização de mercadorias e serviços. A vingar mais essa investida dos adeptos do imposto sobre transações estaria cumprida uma triste profecia: o que era para ser um imposto único tornar-se-ia o qüinquagésimo nono tributo do amplo universo de impostos, taxas e contribuições que infernizam a vida do brasileiro.


O nariz do camelo não dá a mínima ideia do real tamanho do bicho, nem da sua deformidade. O mesmo se passa com respeito à proposta do imposto sobre transações. Uma alíquota minúscula é apenas a abertura do caminho para que aumentos sucessivos sejam posteriormente requeridos, sempre que as previsões otimistas de arrecadação não se concretizarem e/ ou quando o apetite fiscal encontrar menor resistência para refrear as conhecidas tendências de expansão dos gastos públicos (é bom recordar o exemplo do Finsocial).


Esqueceram-se os devotos da tese de uma dado importante. Ao manter-se dentro dos limites da legalidade constitucional, o projeto do governo dividiria os acréscimos de arrecadação com os Estados e municípios, abrindo espaço para uma melhor negociação em torno da questão prioritária de redução do ICMS que onera a cesta básica do trabalhador, uma vez que os Estados de base econômica essencialmente agrícola, como os do Centro-Oeste, teriam as perdas de ICMS compensadas pelo acréscimo de transferências à conta do Fundo de Participação. No caso do imposto sobre transações bancárias não haveria nenhuma partilha. Toda a arrecadação seria incorporada ao orçamento federal.


Convém insistir na tese de que a correção das conhecidas distorções do sistema tributário brasileiro requer uma criteriosa avaliação de uma complexa rede de interesses conflitantes, cujo equacionamento depende de um difícil processo de negociação. Não basta reunir profissionais competentes para formular propostas salvadoras. A reforma tributária tem de ser construída com base na prévia negociação de princípios, diretrizes e objetivos, que não pode ser conduzida no tempo requerido para a adoção de medidas de emergência. O projeto elaborado pelo governo teve o mérito de reconhecer esta preliminar, deixando, para uma etapa posterior, a apresentação de proposições que digam respeito a uma profunda reformulação do sistema tributário brasileiro. 

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