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Roberto Campos

Roberto Campos: Não há perigo de melhorar

"As leis são como as salsichas. É melhor não ver como são feitas" Chanceler Bismarck

Roberto Campos

É comovente o esforço de vários meses da comissão especial de reforma tributária, da Câmara dos Deputados, para produzir uma reforma fiscal. Comovente e inútil, porque o Brasil precisa de uma revolução conceitual e não de remendos fiscais. O projeto de Mussa Demes introduz, na era do jato, aperfeiçoamentos tecnológicos numa carroça. A proposta do governo, tardiamente apresentada, é um ligeiro melhoramento. Unifica a coleta do IVA e preserva o IMF com alíquota simbólica, para facilitar o controle da evasão. Fabrica uma carruagem. Ambos são trabalhos artesanais na idade da eletrônica e da internáutica.

Se a globalização financeira e a explosão do comércio pela Internet tornam obsoletos os impostos clássicos, por que não foram ainda eletronificados os sistemas fiscais dos países líderes? A explicação é simples. Nesses países, os contribuintes preservam razoável ética fiscal, não há déficits escandalosos, e a taxa de corrupção fiscal é tolerável. Prevalece então o ditado prudencial: "If it ain't broken, don't fix it" (se não está quebrado, não vale a pena consertar). No Brasil, tudo é diferente. Temos apenas uma "tapera fiscal", cheia de goteiras e roída por cupins. Em vez de consertá-la, é melhor construir um edifício inteligente. A inovação, para outros países, é facultativa. Para nós, imperativa.

O Brasil já foi capaz de inovações ousadas, consideradas perigosas à época e depois largamente imitadas. Uma foi o FGTS, que permitiu fusões e incorporações de empresas, inviabilizadas pelo passivo trabalhista da era getulista. Outra foi a implantação do sistema do "valor adicionado" nos impostos de consumo (ICM) e de produção (IPI). Isso foi feito em 1966 pela emenda constitucional nº 18, muito antes que os europeus implantassem o TVA como padrão no mercado comum.

A falta de criatividade, tanto no Congresso como no Executivo, se traduz em remendos fantasiados de reforma. Outra coisa não foi a reforma previdenciária, que meramente adia o colapso no sistema de repartição, em vez de transformar a seguridade social em alavancagem de poupança, por meio do sistema de capitalização individual, já adotado em países vizinhos. E nenhum dos dois projetos de reforma fiscal -o do relator Mussa Demes e as sugestões do Executivo-, apesar de simplificarem um pouco o sistema, pela absorção no IVA de vários impostos, corrige quatro defeitos fundamentais: 1) A praga do sufixo nasal "ão" - elisão, evasão, sonegação e corrupção; 2) Os encargos diretos da contratação de mão-de-obra; 3) O altíssimo custo de arrecadação; 4) A crescente informalização da economia e a distorção da competitividade em favor das empresas sonegadoras.

A primeira praga é decorrente dos impostos clássicos, de tipo "declaratório", num ambiente de ética fiscal degradada. Revoltado contra a magra contrapartida de serviços, a complicação burocrática do sistema e a corrupção dos fiscais, o contribuinte brasileiro tende a subdeclarar quer a renda quer as vendas quer a prestação de serviços. Além disso, na economia globalizada e informatizada, a capacidade extrativa dos impostos clássicos fica cada vez menor. As empresas poderão deslocar a geração de lucros para os países de fiscalidade benigna, buscar paraísos fiscais ou fatiar os serviços via Internet. O mesmo acontece com a escolha de componentes nas fábricas globais, que cada vez mais se concentrarão em países de mansa tributação. Em futuro não-distante, a tributação tenderá a se confinar a dois momentos da cadeia produtiva - um financeiro e outro físico: a transação financeira e a compra de produtos e insumos básicos, felizmente, ambos atingíveis por tributação automática. É o que sugeriram 200 deputados que apoiaram a emenda constitucional nº 8 (baseada em textos dos deputados Luiz Roberto Ponte e Marcos Cintra), infelizmente não votada na comissão especial. Essa emenda elege dois tributos básicos: o IMF sobre transações financeiras e o Imposto Seletivo sobre grandes produtos e serviços (combustíveis, eletricidade, veículos, telecomunicações, bebidas e cigarros), cobráveis na fonte, independentemente de declaração e segundo medidas de vazão eletrônica. O custo de arrecadação (calculado hoje em pelo menos 5% do PIB) baixaria dramaticamente, a produtividade daria um salto pela eliminação de custos burocráticos e os tributos seriam universalizados, evitando-se a injusta vantagem competitiva que têm hoje os sonegadores. E a taxa global de corrupção, hoje inquietante para investidores e financiadores, se tornaria menos indecente.

Infelizmente, ignorando essas perspectivas, tanto o projeto de Demes como o do governo, mantêm o IVA como principal imposto declaratório, sujeito a todas as deformações do sufixo "ão" e mantendo intactas três burocracias: a do contribuinte, a do exator e a do contencioso fiscal. E isso em três níveis: municipal, estadual e federal, sem falar no fisco trabalhista e previdenciário.

A modernização do sistema fiscal exige uma lavagem cerebral de vários preconceitos. Um deles é a condenação indiscriminada dos impostos em cascata, como o IMF. Há cascatas benignas e malignas. Um imposto em cascata, insonegável e desburocratizado e com alíquotas pequenas, é preferível, por exemplo, a um ICMS com alíquotas altas.

Outro preconceito é que a autonomia política dos Estados e municípios exige também autonomia para criar tributos e manter custosas máquinas fiscais, como fonte de poder político e distribuição de empregos. Mas a verdadeira autonomia está no acesso rápido e automático aos recursos captados pela via mais econômica e na liberdade para escolher os gastos prioritários. A emenda constitucional nº 8, que poderá ser ressuscitada em plenário, se houver um impasse entre as propostas atuais, federaliza a tributação, para torná-la eletrônica e insonegável, mas garante critérios de partilha automática a Estados e municípios, que cobrariam suas alíquotas diretamente dos bancos e das agências arrecadadoras dos impostos seletivos.

O único consolo que me resta nesse confuso debate entre artesãos e eletrônicos é que as reformas previstas não conseguirão piorar nosso manicômio fiscal. Mas, como dizia um engraxate da Câmara, "não há perigo de melhorar".


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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