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Marcos Cintra

Entrevista: Carga tributária pode aumentar 40% para muitos setores de serviços

Segundo Marcos Cintra, o longo período de transição tira a urgência e a sensação de gravidade das decisões que estão sendo tomadas pelo Congresso.

Por: Jorge Priori

Conversamos com o economista, professor da FGV e ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, sobre o impacto da Reforma Tributária no setor de serviços.


Como estão ficando as empresas de serviços na Reforma Tributária?

O impacto de uma reforma tributária precisa ser analisado através de uma técnica que os economistas chamam de equilíbrio geral. Não faz sentido você analisar o impacto de uma reforma tão profunda como essa dentro de um arcabouço de equilíbrio parcial, imaginando que todas as outras coisas vão permanecer constantes enquanto se muda o preço de um setor. Não é assim.

Eu fiz um estudo no qual eu usei a tabela de recursos e usos do IBGE, a TRU, que abre os dados de 128 setores da economia, além de outros 12 setores, o que me permitiu utilizar 140 setores para medir o impacto da reforma tributária nesse sistema de equilíbrio geral.

Muitos setores de serviços vão ter aumentos de carga tributária que podem chegar a 40%. No caso de segurança, que não foi beneficiado, mas que é um dos que mais emprega a população de baixa renda e de baixo nível de instrução, o aumento será de 44%. Os setores de saúde e educação, apesar do tratamento privilegiado com um abatimento de 60% da alíquota modal, vão ter um aumento de carga, mas que não será tão elevado quanto os aumentos de outros setores de serviços.

Em média, o setor de serviços vai ter um aumento de 8,8%, mas temos que considerar que esse número é afetado pela menor tributação dos setores de educação e saúde.

Como o setor de serviços vai ser bastante prejudicado pelo aumento de carga tributária e como ele presta serviços para empresas em outros setores, esse problema vai contaminar o preço dos outros setores. É por isso que a indústria, que é a maior compradora de serviços, está preocupada, da mesma forma que o governo, que é o maior comprador de serviços de mão de obra terceirizada. Esse problema fez com que o governo criasse uma alíquota diferenciada para compras governamentais.

Quando se diz que, independente da totalidade do imposto, a empresa se credita do que pagou aos fornecedores e paga apenas o valor agregado, isso é muito peculiar para o setor de serviços. Eu conversei sobre esse assunto com o senador Izalci Lucas, do PL-DF, e quando expressei a minha preocupação com o setor de serviços, ele me relatou que a equipe econômica lhe havia garantido que, como esse setor vai passar a creditar os elos posteriores da cadeia, o que não acontece hoje, ele não será impactado pela Reforma Tributária, a não ser no caso dos serviços prestados diretamente ao consumidor final.

Eu fiquei abismado com isso e fiz uma argumentação técnica mostrando ao senador que isso não é verdade e que se trata de uma incoerência, que está sendo repassada no inconsciente popular, que diz que o crédito neutraliza o imposto, quando, na verdade, ele apenas evita que você pague duas vezes o imposto, ou seja, que você pague imposto sobre imposto, já que o imposto que é pago está embutido no preço do produto. Assim, se a empresa não conseguir passar esse imposto para a frente, ela vai ser obrigada a absorver parte dele.

Vamos imaginar uma empresa que presta serviços para um banco e que teve um aumento de imposto que vai encarecer seus serviços em 20%. Essa empresa diz ao banco que ele não precisa se preocupar, pois ele será creditado e que poderá repassar essa diferença para os seus correntistas, os consumidores finais. O problema é que na medida em que o preço aumenta para o consumidor final, ele reduz a sua demanda, o que contamina toda a cadeia para trás, fazendo com que a perda de margem ocorra na cadeia inteira, e não apenas no elo final do consumidor final.

Esse impacto não é muito simples de ser explicado, pois o crédito tributário que poderia atenuar a cumulatividade não existe no setor de serviços, já que 70% do seu custo é mão de obra, que é valor agregado, o que faz com que a sua tributação seja final.

O aumento de carga tributária do setor de serviços será superada apenas pelo aumento de carga tributária do setor financeiro. O Brasil será o único país do mundo que vai aplicar um IVA (Imposto de Valor Agregado) a uma operação financeira, sendo que uma operação financeira não possui uma cadeia de produção. Mesmo assim, uma típica operação financeira, sendo que a mais típica delas é uma operação de crédito, passará a ser tributada por uma tributação típica de uma produção industrial. São tantas improvisações, muletas e hipóteses, que isso está virando uma loucura. Com esse tributo de produção, a tributação das operações financeiras sofrerá um acréscimo de 20% em relação ao que é tributado hoje. Logicamente, eu não estou falando de imposto de renda.

Nós vamos ter um período de profundas incertezas, ajustes à nova realidade, equívocos e judicializações. Essa reforma vai nos jogar em um mar de incertezas, pois está havendo uma tentativa de se ajustar um figurino que não se adequa a realidade econômica de um país como o Brasil. O impacto na carga tributária do setor de serviços e financeiro será muito forte. Os outros setores vão ficar, mais ou menos, na mesma situação.


O Congresso está ciente dessa situação?

Essa é uma pergunta interessantíssima. Toda vez que converso com um parlamentar isoladamente, a preocupação é gigantesca, já que muitos deles são profissionais liberais e empregadores do setor de serviços. Eu sinto um grande desconforto quando se fala do setor de serviços. Quase todos eles dizem que esse é um problema que precisa ser resolvido.

O problema é que no processo decisório do Congresso, o que vale é a posição do partido, e nós sabemos a força que as emendas parlamentares têm hoje nesse processo. A negociação é feita de uma maneira muito pouco transparente, o interesse público não é a única moeda de troca, e existe o interesse dos partidos na troca de benesses entre executivo, emendas e os parlamentares.

Além disso, um fator que desmobiliza a preocupação dos parlamentares, e que talvez seja o mais importante, é que o período de transição é de 10 anos. Com isso, o parlamentar pode votar o que for, já que o impacto negativo do que está sendo votado hoje somente vai começar a acontecer daqui a três ou quatro anos, sendo que o impacto final acontecerá em 2033. Até lá, o parlamentar já não vai mais responder por um ato que tomou 10 anos antes. Esse longo período de transição tira a urgência e a sensação de gravidade das decisões que estão sendo tomadas hoje.


Não está havendo uma simplificação excessiva da situação das empresas de serviços?

Sem dúvida, mas isso não é só referente ao setor de serviços. Na minha avaliação, nós passamos por um processo de lavagem cerebral, onde a grande imprensa, as grandes empresas e os bancos apoiaram integralmente esse projeto. Tudo patrocinado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), que foi o grande articulador do projeto. Isso acabou convencendo a sociedade de que esse projeto é bom.

A pressa e a pouca transparência com que ele foi aprovado não deram nem tempo para uma reflexão mais profunda. Todo mundo acabou entrando no oba-oba de que esse é um projeto moderno, que nós vamos ter o IVA mais aperfeiçoado do mundo e que ele vai melhorar a situação tributária brasileira, quando, na realidade, isso pode não acontecer, ou pelo menos não na medida da expectativa gerada.

O ponto é que a ficha está começando a cair e eu estou vendo muitos setores preocupados. O setor de utilities (saneamento, água, luz e  eletricidade) é fundamental e vai ter um aumento de mais de 15% da carga tributária. Ele está fazendo páginas inteiras de jornais manifestando essa preocupação. Como se pode querer universalizar o saneamento básico no Brasil aumentando a carga tributária, sendo que hoje esse setor é isento?

Como se está jogando o atual sistema tributário no lixo e substituindo tudo por um sistema novo, na medida em que se está sendo obrigado a entender a complexidade da economia, da sociedade, da política e a desigualdade entre os vários segmentos da sociedade, nós temos um projeto que nasce quase tão complexo quanto o sistema que ele pretende substituir.

O Parlamento não deveria tomar qualquer decisão de maneira pouco transparente, açodada e apressada da forma como tem acontecido, mas o presidente da Câmara já declarou que quer aprovar os PLPs (Projeto de Lei Complementar) 68 e 108 até o fim do ano, sendo que o PLP 108 foi aprovado na semana passada na Câmara. Ninguém conseguiu avaliar e entender os impactos desse PLP, que possui 500 artigos. Enquanto isso, o presidente do Senado quer que os dois projetos sejam aprovados dentro de 60 dias. Não há como a sociedade avaliar o salto no escuro que estamos sendo obrigados a dar com este procedimento que está sendo imposto pelo governo.


O fato de a representação do setor de serviços ser tão pulverizada não está atrapalhando a articulação do setor como um todo?

O setor de serviços é disperso, não tem uma representação única e, às vezes, têm interesses até contraditórios. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) representa uma gama enorme desses setores. Os setores de educação, saúde e turismo conseguiram reduzir os impactos da reforma através da CNC, mas ela, literalmente, ignorou o pleito de outros setores, como mão de obra terceirizada. Esses setores vão acabar com uma carga tributária muito alta, pois não se organizaram e não tiveram uma voz unificada que representasse seus interesses.

O setor agropecuário temia muito uma elevação brutal da sua carga tributária, já que o projeto previa tributar um agricultor como se tributa uma indústria, o que, novamente, é uma loucura, já que 95% da produção agropecuária brasileira é familiar. Como esse setor é muito articulado e coeso, e possui a CNA e a Frente Parlamentar da Agricultura, que falam muito fortemente pelo setor, ele conseguiu um tratamento bastante diferenciado da proposta original, de tal forma que o impacto no setor vai ser até um pouco benéfico. Em média, o setor vai ter até uma pequena queda na carga tributária.


Se o atual presidente não for eleito para um segundo mandato, você acha possível que uma das bandeiras do próximo presidente seja rever a Reforma Tributária?

Não só eu acho que isso pode acontecer, como isso pode acontecer antes da eleição do próximo presidente através de iniciativas parlamentares. Por exemplo, o governador Ronaldo Caiado, que tem intenção de ser o representante do bloco mais conservador na próxima eleição presidencial, se for eleito, pode revogar a Reforma ou paralisá-la para exigir estudos mais aprofundados sobre o assunto. Isso porque ele tem dito, publicamente, ser radicalmente contra a Reforma Tributária, sendo o único governador que botou o pescoço para fora sobre esse assunto.

Todos os outros estão se amparando em um fundo de quase R$ 1 trilhão, que será totalmente custeado por recursos do Tesouro que ele não tem, mas que está na PEC 132/2023. Eu não sei o que o Governo Federal vai fazer para honrar esse compromisso, mas os governadores estão acreditando que não vão perder arrecadação porque esse fundo vai ser suportado pelo Governo Federal. Não vai, pois vai acontecer o que aconteceu na Índia.

A Índia fez uma coisa muito semelhante e quebrou a cara, já que o governo central indiano não conseguiu indenizar as perdas de arrecadação dos estados, o que está gerando um grande problema. O governador Caiado está desconfiado disso e acredita que a perda de autonomia tributária de estados e municípios prejudica o país, principalmente a mudança do princípio da origem para o princípio do destino, ou seja, a arrecadação do imposto sobre consumo não vai ficar na jurisdição do produtor, como é hoje, e sim na jurisdição do consumidor.

A economia de um Estado como Goiás, assim como outros estados como Mato Grosso, é caracterizada por uma forte produção agropecuária; alto valor agregado, pois exporta toda a sua produção agropecuária e uma população muito baixa em relação a sua área, o que faz com que muito pouco seja consumido no estado. A Reforma vai fazer com que a sua arrecadação seja perdida. Quem vai ganhar com isso são os estados do Nordeste, que não produzem, mas que são grandes consumidores. Dessa forma, estados produtores do Centro-Oeste, Norte e Sul vão perder as suas arrecadações.

O próximo presidente pode colocar, pelo menos, um pouco de areia no andamento da Reforma para desacelerá-la e mudar muita coisa. Eu não vejo isso como uma preocupação, pois isso será inevitável para que se possa evitar males maiores, de forma a que a sociedade brasileira não sofra de maneira mais profunda com o andamento dessa Reforma Tributária.

Faltou debate, discussão e chamar o setor privado e auditores e especialistas independentes para avaliar a Reforma Tributária. Nós precisávamos de um projeto que tivesse em vista o interesse nacional, e não um projeto que foi feito por uma organização qualquer que foi paga por um grupo de empresas, visando apenas interesses setoriais.


Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto à sua entrevista?

A grande preocupação é que o setor de serviço vai pagar a conta do custo dessa reforma tributária. Enquanto alguns setores vão ter uma redução de carga, o setor de serviços vai ter uma elevação muito grande de carga. Essa é a principal preocupação, mas que foi atenuada, como disse, por alguns setores, que são politicamente organizados, e que conseguiram se acomodar: Educação e Saúde.

O problema é que os setores desorganizados, que são muito numerosos e dispersos, estão muito preocupados, sendo que esses setores, são, justamente, os que mais empregam a população carente. A Reforma Tributária vai gerar aumento de carga tributária e desemprego, mas os maiores empregadores não estão conseguindo ser ouvidos, quem sabe, por falta de articulação política.


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