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A ALCA E O COMÉRCIO DE SERVIÇOS BRASILEIRO:
NORMATIVA E INTERESSE
Mário Marconini
1. Introdução
1.1. Definição e conceito
Apesar de heterogêneos entre si, setores de serviços têm em comum a invisibilidade e a intangibilidade , aspectos que sempre dificultaram o trabalho de analistas econômicos, a começar por ninguém outro que o economista clássico Adam Smith, que em 1776 escreveu:
“O trabalho de um empregado doméstico... não agrega nada a valor algum... O valor de algumas das mais respeitadas classes de nossa sociedade é como o de empregados domésticos, improdutivos de qualquer valor, e não determina ou resulta em qualquer objeto permanente ou mercadoria vendável que dure depois de executado o trabalho. Nessa mesma classe, devemos incluir clérigos, advogados, artistas, palhaços, músicos, cantores de ópera, etc.”
O pensamento clássico, portanto, não julgava atividades outras que não agricultura e indústria relevantes para a contemplação econômica. Já que o trabalho de advogados, por exemplo, não era percebido como produtor de algo que pudesse ser armazenado, nenhuma riqueza podia tampouco advir desse trabalho; conseqüentemente, advocacia e atividades igualmente invisíveis e intangíveis não deveriam integrar a teoria econômica – regia a lógica de Adam Smith. Até Karl Marx concordava com tal apreciação, e não foi há pouco tempo que países outrora socialistas começaram a revisar seu conceito do setor terciário de forma a poder incluí-lo em suas contas nacionais.
O esforço para dar ao setor sua devida importância no cenário econômico começou no século passado, mas ainda existe um caminho a percorrer. Reconhecido inicialmente pela Escola Histórica Alemã como sendo o último estágio do desenvolvimento econômico , o setor de serviços não seria visto dessa forma no presente século por aqueles que argüiriam que uma maior demanda por serviços ocorre também nos primeiros estágios desse desenvolvimento – devido à entrada, nesses estágios, de novos produtores no mercado. Esse tipo de ênfase faria necessário classificar serviços de acordo com sua relação com o processo produtivo, o que ajudaria a determinar quais atividades especificamente integrariam o setor. De qualquer forma, o resultado de mais de cem anos de reconhecimento da importância de atividades de serviços para o desenvolvimento econômico foi a caracterização do setor como um setor terciário – ou seja, que segue-se na ordem econômica aos setores primário e secundário. Apesar de ajudar, o termo terciário pode ainda nos nossos dias significar atividades distintas para analistas distintos. A normativa da OMC veio ajudar também nesse ponto, como veremos abaixo.
No contexto internacional, o cerne do debate sobre o comércio de serviços refere-se à questão da vantagem comparativa e sua aplicação ao setor, nos moldes convencionados como neoclássicos. A noção, aceita para o comércio de bens pela teoria neoclássica, de que diferenciais em custos comparativos e disponibilidade de fatores de produção determina vantagens comparativas entre países é de fácil aceitação para setores cujos elementos determinantes são claros e evidentes – como a abundância de capital físico e infra-estrutura no caso de serviços de transportes. Para alguns setores, no entanto, as correlações não são tão simples, dadas importantes diferenças entre bens e serviços. Serviços profissionais e financeiros, por exemplo, têm como característica um custo fixo relativamente alto e um custo marginal relativamente baixo devido à importância do aprendizado e da transmissão do conhecimento especializado nesses setores – algo que difere bastante do caso de bens e que dificulta o estabelecimento de paralelos sobre vantagens comparativas e/ou competitivas entre bens e serviços. A discussão sobre vantagens no comércio internacional de serviços vem, portanto, forçosamente evoluindo para uma metodologia de análise abrangente, que leva em consideração elementos dos mais variados na composição da estrutura de competitividade do setor.42
As estatísticas disponíveis constituem um outro fator complicador para a análise do comércio nacional ou internacional de serviços.43 A começar pela disponibilidade heterogênea de setores nas contas nacionais dos países, as definições dos setores também oscilam entre as nações. O registro de atividades de serviços depende do meio de comunicação e até mesmo do tipo de transação – transações infrafirma, por exemplo, não são captadas por nenhuma rubrica da balança de pagamentos. Outra fraqueza das atuais estatísticas é a de não registrar serviços que são incorporados a bens no processo produtivo, conquanto se estima que três quartos do valor de qualquer produto manufaturado hoje em dia referem-se a atividades de serviços como desenho industrial, vendas e publicidade.44 Estudos recentes revelam também que de 60 a 80% das exportações totais de bens de países de alta renda são de fato relativas a serviços (20% no caso de países de baixa renda).45 Problemas de classificação também existem dependendo da organização da produção: um programa de computador exportado como resultado de uma encomenda específica para um cliente individual registra-se como uma exportação de um serviço comercial, enquanto a comercialização en masse de um programa (por exemplo,
Windows 98) é registrada como uma exportação de bens.46 e 47
2. Parte I
2.1. A normativa internacional
Não foi até meados da década dos noventa, cinqüenta anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, que o conceito de comércio internacional se viu ampliado do ponto de vista normativo pela inclusão do comércio de serviços na pauta de temas compreendida pelo sistema multilateral de comércio. Até então, o comércio internacional fora entendido como o comércio de produtos, visíveis, tangíveis e transportáveis entre distintos territórios nacionais. Prova disso é que o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o GATT, e as sete primeiras rodadas de negociações promovidas em seu âmbito, versaram sempre sobre disciplinas relativas ao comércio de bens, ampliando o âmbito normativo de forma a captar todas as medidas afetas a esse comércio, porém sem que nesse processo abarcassem o universo regulatório relativo ao setor terciário da economia mundial.48
42 Para um panorama da literatura econômica sobre o comércio de serviços, ver HOEKMAN, Bernard &
PRIMA BRAGA, Carlos A. Protection and Trade in Services: A Survey, Policy Working Paper, no 1747,
International Trade Division, The World Bank, Washington D.C., abril de 1997, e SAPIR, André &
WINTER, Chantal. “Services Trade” em Surveys in Intemational Trade, David Greenaway e L. Alan Winters, editores, Washington D.C., 1991.
43 Ver UNCTAD. Liberalizing International Transactions in Services: A Handbook, publicação das Nações Unidas, Genebra, 1993, p. 9-20.
44 THE ECONOMIST, Survey “The World Economy”, Londres, 28 September 1996.
45 FRANÇOIS, Joseph & REINERT, Kenneth, "The Role of Services in the Structure of Production and Trade: Stylized facts from a Cross-Country Analysis", Asia-Pacific Economic Review, vol. 2, p. 35-43.
46 CEPAL, op.cit, p. 3.
47 Para mais sobre o tema de definição e conceito de serviços e comércio de serviços, ver MARCONINI,M. A OMC e o Comércio de Serviços: Normativa Multilateral e Interesse Brasileiro, Livro a ser publicado no segundo semestre de 2001 pela Editora Aduaneiras.
48 O primeiro sinal dos tempos surgiu, quando o Trade Act, de 1974, nos Estados Unidos, dispôs que toda normativa que se referisse a comércio exterior deveria ser entendida como inclusiva do comércio de serviços – e não apenas do tradicional comércio de bens. Com base nisso, os Estados Unidos lograriam incluir a palavra serviços no Código de Compras Governamentais e no Código de Normas, ambos
Apesar das negociações do NAFTA terem começado depois das negociações da Rodada Uruguai do GATT, o NAFTA foi o primeiro instrumento internacional a entrar em vigor com disposições aplicáveis ao comércio de serviços. Um ano depois, em 1995, entraria então em vigor o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços, o GATS, como parte integrante do maior pacote de negociações jamais negociado na história da política comercial internacional: até mesmo o terceiro pé do tripé originalmente previsto para o sistema de Bretton Woods seria criado – a Organização Mundial do Comércio (OMC). Desde então, vários acordos lograram introduzir disciplinas sobre serviços em seu âmbito, dentre eles o próprio MERCOSUL. A ALCA nesse sentido não se apresenta inovadora, sendo seu principal destaque o fato de constituir um primeiro instrumento potencial de disciplinamento das transações de serviços no Hemisfério americano como um todo.
Para entender melhor o que se pretende para o comércio de serviços com a ALCA, portanto, é imperativo compreender a lógica da normativa existente sobre o assunto. O GATS afigura-se como um bom começo por ser de fato o instrumento mais geral e global em sua aplicação, refletindo em suas disposições, como nenhum outro instrumento, as variadas e intricadas diferenças políticas, econômicas e regulatórias existentes no mundo atual. No que segue abaixo, o GATS será abordado primeiro e de forma mais completa e detalhada, de maneira a permitir referências e comparações posteriores entre suas disposições e as de acordos negociados e concluídos nas Américas.
2.2. O multilateralismo da OMC
Dez anos atrás, o sistema multilateral do comércio começava a se preparar para o que seria o primeiro grand finale, da Rodada Uruguai.49 As negociações que haviam começado em 1986 em Punta del Este tinham como data máxima o final do ano de 1990. Dos assuntos que mais preocupavam negociadores e seus respectivos governos, certamente o comércio de serviços destacava-se pela falta de perspectiva de uma conclusão satisfatória para todos. Não era de surpreender. O comércio internacional no setor terciário afinal houvera sido a causa de bastante truculência e hesitação, o que explicava o porquê de sua separação formal de outros assuntos tratados pela oitava rodada de negociações do GATT.50 Hoje, seis anos depois da entrada em vigor da Organização Mundial do Comércio (OMC) e seus acordos, o mundo está em plena rodada de negociações sobre o comércio de serviços. Paradoxalmente, a inclusão do comércio de serviços na pauta de negociações não é sequer questionada, já que o tema é um dos poucos para os quais já existe um mandato de negociação – uma built in agenda que previa, para o ano 2000, o começo de uma nova rodada de liberalização.51
negociados durante a Rodada Tóquio – rodada que precedeu a Rodada Uruguai e teve lugar entre 1973 e 1979.
49 A Declaração de Punta del Este estabelecia que a Rodada duraria quatro anos, e que, portanto,terminaria no final de 1990, em reunião ministerial na cidade de Bruxelas, Bélgica. A reunião teve de fato
lugar, porém, constituiu um fracasso já que não foi possível obter-se acordo, sobretudo nos temas de agricultura e têxteis. O tema serviços, ainda que contasse com um acordo-quadro incompleto, poderia ter sido finalizado (a agenda de unfinished business seria certamente bastante grande nesse caso). A segunda tentativa de terminar a Rodada foi quando o então diretor-geral, Arthur Dunkel, circulou seu draft contendo projetos de acordo para todos os temas da Rodada, no final de 1991. A Rodada só terminaria no final de 1993, já então sob o comando de Peter Sutherland, que havia assumido como diretor-geral do GATT no começo do mesmo ano.
50 O tema serviços foi incluído na Parte II da Declaração de Punta del Este, como forma de separá-lo de outros assuntos e não prejulgar o futuro das negociações sobre questões institucionais. 51 Art. 19, do GATS, § 1o.
2.3. Do GATT ao GATS
São muitas as semelhanças entre o GATS e o GATT. Como o GATT, o GATS é um acordo geral que se aplica ao comércio como um todo, com regras, princípios e até procedimentos gerais para a solução de controvérsias. Como o GATT, o GATS é um acordo bastante análogo a um contrato vinculante entre governos, e não meramente um criador de obrigações de melhores esforços. Como o GATT, países-membros (doravante, membros) aceitam as mesmas regras e princípios, têm, cada um, um voto e podem retirar-se com apenas um aviso de seis meses. Como o GATT, o contrato é de prazo indeterminado e membros aceitam os processos de consultas, arbitragem, solução de controvérsias e execução como vinculatórios. Como o GATT, regras só podem ser alteradas por consenso entre todas as partes e as obrigações assumidas por um membro representam um direito adquirido por um outro. Como o GATT, membros aceitam como um pacote os resultados do processo multilateral, plurilateral e bilateral de negociações sobre compromissos de liberalização.
O GATS encontra-se alicerçado em três pilares. O primeiro é o quadro geral de obrigações, um conjunto de vinte e nove artigos, divididos em seis partes, a saber: âmbito e definição, obrigações e disciplinas gerais, compromissos específicos (de liberalização), liberalização progressiva, disposições institucionais e disposições finais. O segundo pilar refere-se aos anexos setoriais (transporte aéreo, serviços financeiros e de telecomunicações) que tratam das particularidades de setores específicos, de suas “características de natureza técnica, econômica ou... regulatória”. O terceiro pilar trata das listas de compromissos de liberalização assumidos pelos membros, mais de duas mil e seiscentas páginas de obrigações detalhadas individualmente por setor, os quais são também anexados ao GATS e dele formam parte integral.54 No que se segue, e sempre tendo presente os três pilares do GATS, as principais características do acordo serão abordadas.
O GATS tem uma cobertura universal de medidas “que afetam o comércio de serviços”, assim como de setores de serviços. Além de tratar de todos os tipos de medidas e setores de serviços, o GATS logrou incluir todas as formas de comercialização, ou, no jargão gatsiano, modos de prestação, de serviços conhecidos no mercado internacional. Assim, o comércio cujo serviço cruza fronteiras, o tipo de comércio que é de fato análogo ao comércio de bens, também conhecido como transfronteiriço e característico de setores, tais como, os de transportes ou telecomunicações, é o primeiro modo a constar do rol de modos de prestação – a prestação transfronteiriça. Desde então, o GATS inova com relação ao GATT tradicional, e abrange também o comércio de serviços que ocorre quando o consumidor é quem se move – o consumo no exterior, o caso de serviços de turismo que requerem que o consumidor (turista) vá ao serviço (Taj Mahal), e não vice-versa. Outra inovação, esta até mesmo bem mais complexa e objeto de grande controvérsia durante os oito anos de negociação, refere-se à inclusão da comercialização através da presença de uma pessoa jurídica do prestador estrangeiro num determinado mercado nacional – a presença comercial, o caso do Citibank, por exemplo, que presta serviços ao Brasil e a brasileiros a partir de agências de sua subsidiária estabelecidas no próprio país. Finalmente, o GATS inova ao incluir também a prestação de serviços através da presença de pessoas físicas em mercados outros que os seus de origem – a presença de pessoas físicas, o caso de operários de construção ou advogados, por exemplo, que cruzam fronteiras nacionais para prestar serviços no exterior.
Os princípios de liberalização do GATS são semelhantes aos do GATT, porém também vão além desses em alguns aspectos importantes. O regime também é baseado no princípio da não-discriminação e prevê que, como regra, membros envidem esforços para não discriminar entre nacionais e estrangeiros (tratamento nacional – art. 16), nem tampouco entre outros membros (nação-mais-favorecida – art. 2o). O acordo define também o que é o princípio de acesso a mercados (art. 15), através de um artigo específico que o ancora nos modos de prestação. Uma grande inovação nesse contexto é que os princípios aplicam-se não apenas a serviços – o que seria análogo ao GATT. No GATS, os princípios aplicam-se a serviços e a prestadores de serviços, aqui compreendidos tanto pessoas físicas quanto jurídicas. Assim, tratamento nacional deve estender-se não apenas a um serviço tal como a concessão de um financiamento desde um banco nos Estados Unidos, porém potencialmente também a uma subsidiária desse banco que tenha estabelecimento no Brasil.
Um aspecto importante que ajuda a explicar porque o GATS conseguiu ter a adesão de tantos países que inicialmente se opuseram veementemente a sua criação é o seu mecanismo de liberalização. Apesar de conter princípios claramente tendentes à liberalização, o GATS não obriga, nem tampouco induz, membros a abrir completamente todos os setores de serviços. A liberalização, através da aplicação dos princípios de acesso a mercados e tratamento nacional, deve ser progressiva, rege o Acordo, e membros mantêm o direito de comprometer-se apenas em setores que resolvam (como resultado de um processo de negociações com seus parceiros) incluir em sua chamada Lista de Compromissos Específicos. Outro aspecto importante de como o GATS liberaliza mercados refere-se ao princípio da nação-mais-favorecida: o princípio foi mantido, porém membros tiveram, ao final da Rodada Uruguai, a oportunidade de especificar exceções onde gostariam de seguir discriminando a favor de determinados parceiros comerciais.
O sucesso do GATS deve-se também à forma como foi capaz de reconhecer certas realidades do comércio de serviços e adaptá-las à normativa multilateral. Assim, para setores, tais como os setores de serviços profissionais, o Acordo reconhece que medidas, critérios e procedimentos adotados por associações ou conselhos de classe que visam assegurar certos níveis de formação acadêmica e/ou profissional e a qualidade na prestação de serviços são necessárias e não constituem barreiras ao comércio de serviços per se – mediante o cumprimento de certos critérios especificados pelo Acordo. Outro objetivo, o do desenvolvimento econômico nacional, é reconhecido em várias partes do Acordo, além de seu preâmbulo.
Outro reconhecimento importante constante do GATS foi o de que certos setores de fato exibiam características que mereciam especial atenção. Assim, o Acordo tem alguns anexos setoriais – transporte aéreo, serviços financeiros, serviços de telecomunicações, cujo objetivo principal não é o de substituir o mecanismo de liberalização do Acordo-Quadro, mas, sim, o de esclarecer a aplicação de algumas de suas disposições a esses setores.
2.4. O regionalismo nas Américas
Desde que o NAFTA entrou em vigor em 1994, tornando-se o primeiro acordo de livre-comércio no mundo a conter disposições sobre o comércio de serviços, outros catorze acordos foram concluídos nas Américas que seguem, de alguma forma, o seu exemplo e ampliam o universo de comércio exterior na região para incluir o setor terciário. Assim, todos os trinta e quatro países que participam das negociações da ALCA são membros de pelo menos um acordo sobre o comércio de serviços no Hemisfério, sendo todos também membros da OMC e sujeitos aos direitos e obrigações do GATS.
A conclusão de acordos sobre o comércio de serviços no Hemisfério coincidiu em grande medida com um processo bastante saliente na região de abertura de mercados no setor – em particular através de privatizações e concessões de serviços públicos. Seria, no entanto, uma falácia atribuir aos acordos concluídos a façanha de haver promovido a abertura dos mercados regionais. O que os acordos têm proporcionado até agora é uma forma de congelar níveis existentes de abertura de maneira a impedir que países recuem em suas tendências aberturistas. O caso do Brasil é bastante ilustrativo. O nível de compromisso assumido pelo Brasil nos acordos da OMC ou do MERCOSUL sobre serviços, conforme refletido em listas específicas de compromissos, é claramente inferior à realidade da abertura ocorrida nos últimos anos, confirmando que a liberalização foi resultado das próprias iniciativas autônomas do governo brasileiro e não de alguma pressão sofrida em negociações de acordos de comércio.
Os dois acordos mais importantes do Hemisfério americano na área de bens também o são na área de serviços: o NAFTA e o MERCOSUL. Enquanto o NAFTA entrou em vigor em 1994, o Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços do MERCOSUL foi firmado em dezembro de 1997, sendo que o processo de implementação previsto em suas disposições ainda não foi formalmente iniciado. Os dois acordos têm mecanismos distintos de liberalização, o que faz com que representem duas alternativas para o processo a que se dispõe um futuro acordo sobre serviços na ALCA. Enquanto o Protocolo de Montevidéu reproduz, aprimora e aprofunda a estrutura e metodologia inerentes ao GATS, o NAFTA opta por outra estrutura e metodologia.
2.5. NAFTA
As negociações para a conclusão de um Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (abreviado NAFTA, em inglês) tiveram lugar no começo da década de noventa. Já em agosto de 1992, os governos do Canadá, México e Estados Unidos anunciavam a conclusão das negociações que produziram um acordo que, como no caso de seu predecessor entre o Canadá e os Estados Unidos, incluía disposições sobre o comércio de serviços em vários de seus capítulos. Assim, o capítulo 11 trata da questão de investimento; o capítulo 12, do comércio transfronteiriço de serviços; o capítulo 13, de telecomunicações; o capítulo 14, de serviços financeiros; o capítulo 14, da entrada temporária de pessoas de negócios. Outros capítulos, marcadamente os relativos a medidas relativas a normas, compras governamentais, propriedade intelectual e política de concorrência, monopólios e empresas estatais, também incorporam referências a temas afetos ao comércio de serviços.
Não são todos os capítulos sobre o comércio de serviços do NAFTA, contrariamente ao que se esperaria, que logram induzir o livre-comércio no setor. Em alguns casos, setores inteiros de serviços são virtualmente excluídos do âmbito de aplicação do acordo: os casos de serviços de transporte aéreo, de telecomunicações básicas e de transportes marítimos. Em outros casos, as disposições limitam a aplicação de um determinado tema, o melhor exemplo disso sendo o movimento temporário de pessoas, que se limita a certas classes de pessoas físicas (business persons). Já em alguns casos, o NAFTA foi além do que o acordo predecessor entre o Canadá e os Estados Unidos, dispondo sobre abertura para setores tais como o de transportes terrestres (excluído no acordo bilateral) ou para temas tais como o de propriedade intelectual. Finalmente, o verdadeiro ímpeto livre-cambista do acordo se revela em particular com relação ao setor de serviços financeiros.
De forma resumida, algumas das principais características das disposições do NAFTA que tratam do comércio de serviços são as seguintes:
− Aplicação de princípios tradicionais de liberalização e não-discriminação: tratamento nacional, nação-mais-favorecida e acesso a mercados;
− Possibilidade de estabelecer reservas com relação a medidas que não se conformem com os princípios de liberalização dispostos no acordo;
− Obrigação de listar medidas não-discriminatórias que, no entanto, restrinjam o número de prestadores de serviços ou as suas operações num determinado mercado;
− Mecanismo de catraca através do qual medidas de abertura aplicadas por um país-membro autonomamente serão automaticamente aplicadas ao comércio intrazona;
− Obrigação de eliminar dentro de dois anos quaisquer requisitos de cidadania ou residência permanente para o licenciamento ou certificação de prestadores de serviços profissionais;
− Obrigação de evitar abusos burocráticos na concessão de licenças ou certificados para profissionais;
− Estabelecimento de critérios para o desenvolvimento de normas para o exercício de profissões;
− Incentivo, por parte dos governos, de acordos de reconhecimento mútuo entre entidades de classe pertinentes nos respectivos países-membros;
− Acesso adequado e não-discriminatório a redes públicas de telecomunicação;
− Liberalização de serviços financeiros através de um standstill e da aplicação dos princípios de liberalização do acordo, sempre reservada a possibilidade de aplicação de medidas que assegurem a integridade e estabilidade do sistema financeiro (medidas prudenciais);
− Facilitação da entrada de pessoas de negócios, sem que isso implique a abertura indiscriminada do mercado de trabalho ou a flexibilização indevida das leis de imigração; entendidas como categorias de pessoas de negócios as seguintes: visitantes de negócios, comerciantes e investidores, transferências intrafirma e certos tipos de profissionais minimamente qualificados.
Uma característica importante do acordo do NAFTA que se introduz como opção nas atuais negociações da ALCA é o tratamento único que se dispensa no acordo ao tema investimentos – seja ele referente a investimentos em setores produtivos de bens (automotivo, por exemplo) ou em setores prestadores de serviços (telecomunicações, por exemplo). Disciplinas sobre o investimento direto estrangeiro são reunidas num mesmo lugar: o capítulo 11 sobre investimentos.
2.6. MERCOSUL
O Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços do MERCOSUL, de dezembro de 1997, foi resultado de um processo de negociações que teve lugar de forma intensiva a partir de 1996 – apesar de um Grupo Ad Hoc sobre Serviços ter sido criado por Decisão do Conselho do MERCOSUL em Ouro Preto, já em dezembro de 1994. No entanto, discussões sobre temas afetos ao comércio de serviços não tiveram de esperar a criação do Grupo Ad Hoc ou a própria firma do Protocolo de Montevidéu para ocorrer. Desde a entrada em vigor do próprio Tratado de Assunção em 1991, o MERCOSUL vem tratando de uma série de setores de serviços, tais como, entre outros, os de transporte terrestre e marítimo. Subgrupos especializados diretamente vinculados ao Grupo Mercado Comum (GMC) têm desde então funcionado como órgãos de assessoramento técnico e levado propostas relativas ao tratamento de certos setores de serviços, no contexto do processo de integração disposto no Tratado de Assunção. O Protocolo de Montevidéu seria, no entanto, o primeiro instrumento negociado pelo bloco de aplicação geral a todos os setores de serviços, e cujo principal objetivo seria a liberalização irrestrita intrazona para esses setores.59
O próprio Tratado de Assunção já previa a liberalização de serviços, no contexto do objetivo máximo de se alcançar um mercado comum que implicasse a
“livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente”.60
A ênfase do Tratado, portanto, é, na livre circulação de serviços entre os países, o que revela mais uma intenção de estabelecer uma área de livre-comércio para serviços do que propriamente um mercado comum em serviços, onde a um espaço econômico único agrega-se uma barreira externa comum. Prova disso é que o trabalho do Grupo Ad Hoc sobre Serviços também optou por seguir essa linha ao se basear no paradigma do GATS, cujo objetivo básico é o de criar uma estrutura normativa e um mecanismo para a liberalização de serviços entre os Estados-Partes da OMC. O Protocolo de Montevidéu vem preencher então um espaço negociador que se equipara ao chamado período de transição que teve lugar para o comércio de bens dentro do MERCOSUL, entre 1991 e 1994: completar a zona de livre-comércio intrazona, através da eliminação de gravames e restrições aplicadas ao comércio recíproco entre os quatro Estados-partes.
Stephenson, ed., Brookings Institution Press & General Secretariat/Organization of American States
(OAS), Washington D.C., 2000, p. 139-153.
59 Ver MARCONINI, M. “A OMC, o MERCOSUL e o Comércio de Serviços: Aspirações Regionais naEra Pós-GATS”, capítulo em O Direito do Comércio Internacional, Observador Legal Editora, São Paulo, 1997, p. 49-58.
60 Art. 1o do Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991.
Importantes premissas do acordo do GATS da OMC foram incorporadas ao projeto final do Protocolo de Montevidéu, a começar pela definição do comércio de serviços baseada em quatro modos de prestação assim como a cobertura setorial universal e a aplicação de princípios tradicionais de liberalização. Vale ressaltar que, apesar de se assemelhar em grande medida ao GATS, o Protocolo de Montevidéu necessariamente vai além do GATS em algumas disposições e deverá necessariamente resultar em níveis de liberalização claramente mais altos do que os níveis alcançados pela aplicação das disposições do acordo modelo da OMC. Ocorre que o GATS, em forma análoga ao GATT, dispõe sobre o imperativo de que acordos regionais de integração eliminem substancialmente barreiras ao comércio de serviços, para que possam ser justificados perante o sistema multilateral de comércio. Como o art. 24 do GATT, o art. 5o do GATS exige que os países que entrarem em acordos de integração demonstrem que o fazem para avançar a causa do livre-comércio e não para se proteger do livre-comércio e erigir fortalezas que transformem mercados regionais ou sub-regionais em mercados cativos para países-membros. Esse potencial conflito é o conflito mais primordial da história da relação entre multilateralismo e regionalismo; não poderia ser diferente no tocante ao comércio de serviços.
O Protocolo de Montevidéu inovou em termos de regras e disciplinas aplicáveis ao comércio de serviços, construindo sobre terreno familiar do GATS e, em alguns aspectos, indo além do GATS na aplicação de certas disposições. Ainda que pouco avançado em seu processo de negociação de compromissos e implementação dos mesmos, o Protocolo de Montevidéu já representa um acervo respeitável de normas, estruturas e mecanismos cuja aceitação por outros países do Hemisfério americano poderá determinar o futuro da normativa da ALCA relativa ao comércio de serviços.
Algumas das principais características do emergente regime de serviços no MERCOSUL são as seguintes:
− Aplicação de princípios tradicionais de liberalização e não-discriminação, tais como o tratamento nacional, a nação-mais-favorecida e o acesso a mercados;
− Cobertura universal de setores de serviços;
− Possibilidade de negociar e consolidar os setores e subsetores de serviços, que constarão em listas de compromissos de liberalização, sendo que os setores não incluídos estariam isentos de qualquer obrigação de abertura ou tratamento não-discriminatório;
− Possibilidade de estabelecer reservas com relação a medidas que não se conformem com os princípios de liberalização dispostos no Acordo, para setores ou subsetores incluídos nas listas de compromissos dos Estados-partes (e não para os outros setores);
− Compromisso, por parte dos governos, de incentivar entidades públicas ou privadas dos paísesmembros a buscar acordos de reconhecimento mútuo e de critérios para o exercício de profissões nos respectivos países-membros;
− Obrigação de evitar abusos burocráticos na concessão de licenças ou certificados para profissionais;
− Estabelecimento de critérios para o desenvolvimento de normas para o exercício de profissões;
− Cumprimento de anexos setoriais que esclarecem a aplicação de instrumentos já existentes, tais como, os referentes ao setor de transportes terrestres e marítimos;
− Reiteração do Acordo sobre Serviços Aéreos Sub-Regionais, firmado em 17 de dezembro de 1997, que prevê o livre-comércio para o tráfego sub-regional – um dos mais ambiciosos acordos já negociados para o setor de serviços de transportes aéreos no mundo.
A característica mais contundente do Protocolo de Montevidéu refere-se ao compromisso de realização de uma plena área de livre-comércio de serviços entre os quatro Estados-partes, num prazo máximo de dez anos, desde a entrada em vigor do instrumento. Até agora, o processo de liberalização tem sido mínimo entre os quatro países, o que parece se explicar mais por falta de empenho dos Estados-partes do que propriamente por razões de fundo que militem contra a abertura dos mercados nacionais – em particular, o brasileiro. Essa constatação é tanto mais grave quando se constata que o que se propõe na ALCA é algo que facilmente poderia ser mais ambicioso na prática do que o MERCOSUL se propõe a fazer internamente na letra do Protocolo de Montevidéu.
2.7. Outros acordos
Além do NAFTA e do MERCOSUL, a Comunidade Andina aplica a Decisão no 439, de junho de 1998, para o comércio de serviços dentro da comunidade; o México negociou um número de acordos baseados no NAFTA que cobrem serviços62; o Chile fez o mesmo com o Canadá e a América Central, a República Dominicana tem um acordo com a América Central e com a Comunidade e Mercado Comum Caribenho (CARICOM) e o próprio CARICOM tem um protocolo dedicado ao Estabelecimento, Serviços e Capital, desde 1997.
2.8. ALCA: Regimes em confluência ou conflito?
As negociações da ALCA sobre o comércio de serviços se inserem num contexto normativo já bastante variado na região e no mundo. Contrariamente às negociações sobre o tema no NAFTA ou na Rodada Uruguai, as negociações hemisféricas não deverão reinventar a roda. Nesse sentido, a ALCA representa uma oportunidade para que todas as estruturas, mecanismos e procedimentos existentes voltem à mesa de negociação, desta vez como alternativas ou opções de paradigmas para a liberalização de serviços.
De uma forma geral, as diferenças dos instrumentos vigentes se resumem no distinto grau de liberalização resultante de cada conjunto de disposições. Estruturas, mecanismos e procedimentos em alguns casos podem implicar um processo de liberalização mais rápido e fluido, enquanto o oposto ocorre em outros casos. Grande parte dessa batalha se trava entre adeptos do paradigma NAFTA e adeptos do paradigma MERCOSUL (o que corresponde por sua vez ao paradigma GATS), em torno tanto do efeito real de mercado das disciplinas correspondentes como da percepção que se tenha desse efeito. Nas Américas, as preferências estão divididas na prática, sendo que elementos híbridos dos dois principais regimes existentes despontam nos variados acordos entre os países da região.63
2.9. A gênese
Os objetivos das negociações sobre o comércio de serviços no contexto da ALCA foram explicitados na Declaração de San José, de março de 1998:
Stephenson, ed., Brookings Institution Press & General Secretariat/Organization of American States (OAS), Washington D.C., 2000, p. 154-168.
62 Grupo de Três (com Colômbia e Venezuela), Bolívia, Chile, Costa Rica, Nicarágua e o Grupo doTriângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras).
63 Vale ressaltar que a preferência de um ou outro país ou grupo de países por um ou outro tipo de acordonão revela apenas a percepção de cada um sobre o lugar da liberalização de serviços em seus planos econômicos: até mesmo o fato de que burocracias inteiras estão já treinadas, habituadas e organizadas para implementar um ou outro tipo de disciplina conta como fator central na determinação de preferências.
− Estabelecer disciplinas para liberalizar progressivamente o comércio de serviços, de modo que permita alcançar uma área hemisférica de livre-comércio, em condições de previsibilidade e transparência;
− Assegurar a integração das economias menores no processo da ALCA.
O mandato para o Grupo de Negociações sobre serviços, acordado por vice-ministros, faria referência também ao desenvolvimento de uma estrutura que incorporasse direitos e obrigações e identificasse normas setoriais complementares, quando assim fosse adequado. Ou seja, entre a declaração ministerial e o mandato vice-ministerial, as negociações da ALCA sobre serviços se viram fundamentadas por princípios e objetivos característicos das negociações que resultaram na conclusão do GATS durante a Rodada Uruguai (posteriormente adotados também pelo Protocolo de Montevidéu): liberalização progressiva, transparência, tratamento de países em desenvolvimento ou com níveis diferenciados de desenvolvimento, equilíbrio entre direitos e obrigações e possíveis disciplinas setoriais.
Durante um período preparatório que se estendeu de março de 1995 a março de 1998, foram acordados seis elementos de consenso que deveriam ser abordados, de alguma forma, nas discussões sobre serviços na ALCA: cobertura setorial, tratamento da nação-mais-favorecida, tratamento nacional, acesso a mercados, transparência e negação de benefícios. Tais elementos foram então abordados nas discussões que se seguiram de junho de 1998 a novembro de 1999 e, durante o ano de 2000, um projeto de capítulo sobre serviços foi elaborado, conforme mandatado por ministros em Toronto, Canadá, em dezembro de 1999.
O texto do projeto de capítulo sobre serviços está totalmente em colchetes, o que indica a falta quase absoluta de acordos sobre o conteúdo das possíveis disciplinas a serem incluídas. O projeto divide-se em oito artigos, um anexo sobre serviços profissionais e uma referência a exceções gerais. Os oito artigos correspondem aos temas abordados desde o período preparatório (1995-1998), mais um artigo sobre alcance ou âmbito de aplicação e outro sobre definições. O texto do projeto inclui também um anexo de “temas para discussões adicionais”, cujo teor refere-se apenas ao processo de negociações ainda em curso.
A quantidade de colchetes no texto reflete grandes diferenças de posicionamento entre os países participantes – marcadamente, entre o MERCOSUL e os países-membros do NAFTA. Como os dois maiores blocos do Hemisfério já têm instrumentos sobre o comércio de serviços, não é fora de propósito supor que acordos serão mais fáceis em aspectos que coincidem nos dois instrumentos e mais difíceis em aspectos que implicam diferenças substantivas de aplicação. No que se segue, as confluências e os conflitos entre as duas alternativas de disciplinamento serão examinados como forma de facilitar o vislumbramento de um futuro capítulo sobre o comércio de serviços da ALCA.
2.10. Fundamentos em comum
Todos os acordos existentes no Hemisfério sobre o comércio de serviços dispõem sobre os princípios básicos de liberalização não-discriminatória definidos no GATS e, de certa forma, herdados do próprio GATT: o tratamento da nação-mais-favorecida e o tratamento nacional. Todos incluem também o princípio de acesso a mercados, definido pela primeira vez no GATS e sem disposição correspondente no GATT. Existem diferenças importantes, no entanto, com relação à aplicação desses princípios. O MERCOSUL e a Comunidade Andina, por exemplo, são mais ambiciosos na aplicação do princípio do tratamento nacional e da nação-mais-favorecida, já que não permitem que qualquer reserva seja feita – o que ocorre no caso do próprio GATS e do NAFTA. Ou seja, o Protocolo de Montevidéu é menos tolerante quanto à discriminação entre nacionais e estrangeiros ou entre países-membros do Acordo do que o GATS ou o NAFTA.
Outro elemento em comum entre todos os acordos no Hemisfério é a inclusão de uma disposição sobre a transparência. Todos dispõem sobre a necessidade de publicar medidas pertinentes afetas ao comércio de serviços, assim como a obrigação de notificar mudanças na regulação existente. Todos dispõem também sobre a necessidade de se estabelecer pontos de contato que possam fornecer informações solicitadas sobre o comércio de serviços nacional e exterior. O NAFTA vai além do MERCOSUL ao dispor sobre o direito dos Estados-membros de comentar propostas de mudanças de regulação – portanto, o direito de comentário sobre mudanças na regulação antes mesmo que estas entrem em vigor.
Outros elementos em comum entre os acordos no Hemisfério referem-se a disposições herdadas do GATS, ainda que com distinções específicas em sua aplicação. Disposições sobre regulamentação doméstica, reconhecimento mútuo de licenças e certificados profissionais, restrições quantitativas, subsídios, negação de benefícios e exceções gerais são todas de alguma forma presentes nos textos oficiais do MERCOSUL, NAFTA e outros acordos na região. Algumas distinções importantes figuram no contexto de reconhecimento de licenças e certificados, sendo que o NAFTA dispõe sobre a eliminação de requisitos de nacionalidade e/ou residência para profissionais em dois anos, a partir da entrada em vigor do acordo, enquanto outros apenas incitam governos a estimular e aceitar o resultado de negociações sobre o reconhecimento mútuo. Outra diferença importante é o fato de que apenas o MERCOSUL se comprometeu a elaborar disciplinas sobre subsídios em serviços, enquanto outros acordos, a começar pelo NAFTA, são omissos nesse aspecto.
2.11. Metodologia diferenciada
A maior diferença entre os acordos sobre o comércio de serviços existentes no Hemisfério diz respeito ao mecanismo de liberalização – ou seja, a forma como cada acordo dispõe sobre o processo de abertura. Essencialmente, o debate centra-se na distinção entre mecanismos baseados em listas positivas ou negativas de setores, subsetores ou medidas afetas ao comércio de serviços. Essas listas são, afinal, as listas que determinam onde as disciplinas de liberalização, acesso a mercados e tratamento nacional, serão ou não aplicadas.
A distinção é simples. Uma lista positiva é uma lista que contém setores, subsetores ou medidas que um país lista positivamente: listar positivamente significa listar setores ou subsetores onde incide um princípio ou uma obrigação de liberalização. Inversamente, listar negativamente significa listar setores ou subsetores onde não incide nenhum princípio ou obrigação. Assim, se um país inclui o setor de serviços financeiros em uma lista positiva, ele estará se comprometendo a submeter esse setor ao processo de liberalização implícito nas disposições do acordo em questão. Inversamente, se um país inclui o setor de telecomunicações em uma lista negativa, ele estará indicando que aquele setor permanecerá fora do âmbito das disposições de liberalização do acordo. Uma lista positiva, portanto, indica setores ou subsetores sujeitos à liberalização, enquanto uma lista negativa indica setores ou subsetores isentos de qualquer obrigação de abertura.
O acordo do NAFTA dispõe sobre um processo de liberalização através de listas negativas de setores: a liberalização só não incidirá sobre os setores ou subsetores incluídos na lista; qualquer setor não mencionado na lista de um país estará então plenamente sujeito à liberalização. Já o Protocolo de Montevidéu, assim como o GATS, dispõe sobre um processo de liberalização através de listas positivas: a liberalização só incidirá sobre os setores ou subsetores incluídos na lista; qualquer setor não mencionado na lista de um país estará então livre de qualquer obrigação de liberalização.
A distinção pode parecer análoga à distinção entre um copo meio cheio e um copo meio vazio. No entanto, a implicação da distinção entre listas positivas e negativas é muito mais do que perceptiva ou interpretativa. Para países cujo regime regulatório ainda é incompleto ou encontra-se em pleno processo de transformação, a obrigação de listar todos os setores ou subsetores que deveriam ficar fora do processo de liberalização (lista negativa) implica uma série de dificuldades, entre as quais:
− É difícil saber de antemão quais são as medidas que devam permanecer no sistema regulatório, mesmo uma vez liberalizado o mercado; assim, ao não listar alguma medida, setor ou sub-setor, o país já se compromete a uma abertura menos criteriosa do que poderia ser, caso não houvesse essa obrigação;
− No caso de países em desenvolvimento, a obrigação de listar tudo o que deve ser preservado do processo de liberalização representa uma enorme tarefa; se o sistema regulatório em um determinado setor é pouco desenvolvido e não foi ainda submetido às exigências regulatórias inerentes ao processo de abertura, a inclusão desse setor numa lista negativa implicaria que o país não tem mais o direito de regulamentar o setor no futuro, mesmo que a própria liberalização exija um novo conjunto de medidas para adaptar o setor às novas condições de mercado.
A lista negativa, portanto, exige que países conheçam a fundo seus regimes regulatórios e tenham a capacidade de discernir entre as medidas que necessitam manter por objetivos de política nacional e as que podem ou desejam deixar de fora e assim submeter automaticamente ao processo de liberalização. Como os regimes regulatórios de países como o Brasil estão em plena fase de mutação, inclusive por razões de rerregulamentação no contexto da abertura resultante de privatizações, concessões de serviços públicos e a entrada de outras formas de investimento direto estrangeiro, as listas positivas fazem mais sentido: o país mantém margem de ação em setores não incluídos na lista, sempre podendo aumentar a lista gradativamente, na medida em que a situação regulatória de cada setor evolua e se torne cada vez mais clara e definida.
Vale ressaltar, no entanto, que mecanismos positivos ou negativos não são o fator determinante para o processo de liberalização que resulta de um acordo sobre o comércio de serviços. Com efeito, uma percepção bastante comum, porém equivocada, é que o mecanismo de listas negativas seja mais conducente à liberalização, ao forçar países a serem plenamente transparentes sobre sua situação regulatória e assim colocá-los em posição supostamente mais tendente a fazer concessões ou ceder a demandas de parceiros comerciais. A própria história do NAFTA confirma o equívoco já que as listas de seus estados-partes contêm setores inteiros que depois de sete anos ainda não foram retirados e submetidos às disposições de liberalização do acordo, apesar das listas serem negativas e incluírem apenas setores, subsetores e/ou medidas não sujeitos a quaisquer obrigações.
O que tem se tornado cada vez mais claro na experiência acumulada de quase uma década sobre modalidades e mecanismos de liberalização de serviços no Hemisfério é que o ritmo de liberalização não é determinado por listas negativas ou positivas, e sim, por compromissos relativos a objetivos e prazos. O NAFTA não contém nenhum compromisso com relação à total abertura dos setores de serviços de seus membros, nem sequer sobre um período de tempo dentro do qual a liberalização, seja ela parcial ou total, deva ocorrer. Nesse sentido, apesar de ser baseado no mecanismo de listas negativas, o NAFTA é menos ambicioso do que o Protocolo de Montevidéu, cujo mecanismo é o de listas positivas de setores66: enquanto o NAFTA não diz nada sobre nível e prazos de liberalização, o Protocolo de Montevidéu estipula que a total abertura do mercado intrazona de serviços deverá ter lugar dez anos depois da entrada em vigor do instrumento.67
3. Parte II
3.1. Serviços no Brasil: parâmetros gerais
A característica principal relativa a serviços e ao comércio de serviços no Brasil continua sendo a falta de informações e a má qualidade das informações disponíveis. Essa, na verdade, é a causa central de uma série de problemas e deficiências que vão desde a definição do termo para fins de políticas públicas até o desconhecimento de certas realidades de mercado que acabam por atropelar os melhores esforços de regulamentação por parte do poder público. Aliás, a falta de informações precisas faz com que a regulamentação seja necessariamente anacrônica e, em alguns casos, subjetiva e corporativista.
3.2. Uma economia de serviços
O Brasil é um país que, apesar da precariedade de certos índices sociais, pode considerar-se uma economia de serviços. Dependendo do critério utilizado, observa-se que a participação do setor de serviços no PIB brasileiro gira em torno de pelo menos 60%. O que se destaca no caso brasileiro é a alta participação de serviços administrativos públicos, com quase
16%. O setor financeiro que até antes do processo de restruturação respondia por até 15% do PIB hoje é responsável por apenas 7%, reflexo claro do enxugamento e aumento de produtividade do setor nos últimos anos.
Em termos de crescimento, o setor de serviços que mais demonstrou dinamismo foi o setor de comunicações, onde se inserem as telecomunicações, setor que cresceu quase 15% em média anual no período entre 1993 e 1996 e mais do que 21% no ano de 1999. Em termos relativos, o setor de construção foi um dos setores cuja participação no PIB nacional mais cresceu, passando de 7,12% para 10,26%, entre 1991 e 1998.
A participação de serviços no PIB brasileiro (61,1%, em 1999) equipara-se à participação de países de renda média alta (60%), sendo mais baixa do que o valor correspondente para o mundo (63%), assim como para países de renda alta, tais como, os Estados Unidos (71%), França (74%) ou Austrália (72%). A parte de serviços no PIB, no caso brasileiro, no entanto, foi a que mais cresceu entre 1980 e 1999, passando de 45% para os 61% do PIB no período – um crescimento de mais de 35% na parte que serviços ocupam na economia. O Brasil seguiu também a tendência de vários países de crescer mais em serviços do que na produção nacional em geral. Na década de noventa, contrariamente ao Brasil, o mundo teve a mesma taxa de crescimento para o PIB que para serviços (2,5%), o que reflete o baixo crescimento de serviços nos países de renda alta (1,9%), em contraste com o crescimento de países de renda média alta (3,6%), de renda média (3,6) e de renda baixa (4,7%).
Em termos de emprego, 33,4 milhões dos sessenta milhões de trabalhadores brasileiros em 1998, ou 55,8% do total, atuaram em setores de serviços. Os setores mais intensivos em mão-de-obra foram os setores de comércio e serviços prestados às famílias, ambos com 15% da força de trabalho para uma contribuição ao PIB de 7%.
Outro indicador do envolvimento do setor na economia nacional é uma análise da configuração de grupos e empresas brasileiras. Os três maiores grupos nacionais em 2000 foram de origem terciária (Bradesco, Itaú e Telefônica) e dos vinte maiores grupos, onze foram originários de variadas atividades de serviços. Em termos de empresas, o setor está também muito bem representado no contexto de qualquer critério de análise adotado. Em termos de patrimônio, dezesseis das vinte maiores empresas em 2000 foram as de serviços. Em termos de valor adicionado, onze das vinte maiores empresas são as de serviços, enquanto, em termos de emprego, a proporção é de doze para vinte.
Uma das características mais marcantes da configuração empresarial em serviços é a alta incidência de empresas estatais, prestadoras de serviços públicos entre as maiores empresas de serviços do Brasil. Em termos de patrimônio, por exemplo, onze das vinte maiores eram estatais prestadoras de serviços públicos em 2000. Em termos de valores adicionados, o número correspondente é oito. Apenas no critério emprego as estatais não são tão numerosas, a proporção aqui sendo de quatro para vinte.
Dentro do próprio setor de serviços, observa-se que as maiores empresas não-financeiras por critério de vendas são empresas que atuam na área de comércio e/ou comércio varejista – portanto, distribuidoras de petróleo e supermercados, respectivamente. Ao incluir bancos e adotar o critério de patrimônio líquido, observa-se que as maiores empresas vendedoras de serviços (maiores por critério de vendas) não constam entre as vinte maiores, dando lugar para uma série de empresas prestadoras de serviços públicos. Bancos só começam a figurar na lista a partir da nona colocação. Nenhuma empresa de seguros aparece na lista das vinte maiores por patrimônio líquido.
3.3. Um comércio exterior inexpressivo
O Brasil foi o trigésimo quinto maior exportador e vigésimo oitavo maior importador de serviços comerciais (serviços que podem ser prestados à distância sem a presença de prestadores e que constam no Balanço de Pagamentos) do mundo no ano de 2000. Suas exportações representaram em 2000 menos de 1% (0,5%) e suas importações 0,9% (1,4% em
1998) do total mundial correspondente. Por muito tempo, as exportações brasileiras de serviços comerciais não superaram a marca de 10% do valor das exportações de bens em qualquer ano. De 1994 para 1999, no entanto, houve um aumento dessa proporção que chegou em 1999 a 17%.
Déficits em todos os itens da balança de serviços comerciais têm sido comuns nas últimas seis décadas. Os únicos subsetores que tiveram momentos de superávit foram os setores de fretes e seguros, ambos relacionados ao transporte marítimo nacional, ambos na década de 1980, quando o Brasil ainda tinha uma frota nacional considerável e até 22% dos gastos de transporte com nosso comércio exterior eram apropriados por empresas e navios de bandeira nacional. Hoje apenas 6% de nosso comércio exterior é transportado em navios de bandeira nacional, claro reflexo da inexistência de navios nacionais para suprirem a demanda existente.
Os maiores déficits registram-se há algum tempo no setor de transportes, porém o crescimento nos déficits foi generalizado. Em termos de receitas, o subsetor que mais cresceu foi o setor de serviços diversos, rubrica que engloba uma série de serviços dos mais variados e que sofre graves problemas de classificação. Entre outros, a rubrica indica vendas externas brasileiras de serviços profissionais (subitem honorários), serviços técnicos, serviços bancários e serviços de telecomunicações.
3.4. Uma presença comercial expressiva
É importante fazer valer que o que ocorre no Brasil hoje em dia, em termos dos modos de prestação do próprio acordo do GATS, é uma expressiva abertura e liberalização no modo de prestação presença comercial. Os próprios dados sobre o investimento estrangeiro direto já o demonstram: 73% do fluxo de IED em 2000 (85% em 1999) deu-se no setor de serviços, nível comparável ao ano de 1996 – 76%, que também já era bastante alta a nível internacional. O estoque de IED no Brasil em serviços é agora de 68%.
Existe falta de sintonia entre a regulamentação de alguns setores e a aplicação que se dá a normas relativas à entrada de prestadores estrangeiros. O caso mais saliente disso é o do setor financeiro, onde a regulamentação, inclusive consolidada no GATS e no Protocolo de Montevidéu, reflete um nível de restrição que não condiz com a verdadeira realidade de mercado existente no Brasil. Na área bancária, e ao mesmo tempo em que ocorre um processo bastante profundo de restruturação, entidades estrangeiras têm tido acesso ao mercado brasileiro tanto no contexto das privatizações quanto na própria compra de entidades financeiras de grande porte e valor de mercado. Em seguros, a presença comercial já está aberta há algum tempo, devido a uma interpretação bastante liberal dada a uma importante disposição transitória constitucional.
A privatização tem sido crucial no processo de abertura a prestadores estrangeiros, com uma certa freqüência aliada ao término de monopólios na prestação de importantes serviços públicos, tais como, telecomunicações e transportes. As implicações de todo esse processo para as negociações internacionais em vários foros sobre o tema de serviços são significativas e devem integrar qualquer estratégia de negociação. Outro tema relacionado à presença comercial é o das concessões pelas quais prestadores estrangeiros ganham acesso ao mercado de serviços nacional.
3.5. Classificações pouco esclarecedoras
O Brasil não é o único país do mundo a ter estatísticas referentes ao setor de serviços que variam entre absolutamente inexistentes ou pobres e relativamente abundantes porém pouco esclarecedoras.
O exemplo mais marcante diz respeito às estatísticas sobre os chamados serviços diversos da Balança de Pagamentos que apresentam uma lista enorme de subitens, muitos dos quais parecem ter apenas uma relação precária com o tema de serviços e o comércio de serviços. Assinatura de jornais ou direitos autorais, por exemplo, são temas que não deveriam talvez figurar numa lista que pretende retratar o comércio transfronteiriço de serviços. Vale dizer que tais serviços não constam de nenhum item da Classificação Central de Produtos das Nações Unidas, adotada como base para a própria lista de classificação da Organização Mundial do Comércio (a “W/120”).
Os problemas que existem com relação às Contas Nacionais são semelhantes aos problemas com a Balança de Pagamentos: falta de séries históricas, definições não claras, níveis de desagregação pouco conformes, etc. Seria importante que órgãos envolvidos na coleta, processamento e compilação de dados estatísticos começassem a dar mais ênfase ao setor de serviços para que uma maior harmonização entre critérios nacionais e internacionais pudesse ocorrer. Além disso, a nível internacional, existem grupos que se reúnem especificamente para tratar do tema estatísticas em serviços e que deveriam contar com a
participação de peritos brasileiros. O Grupo Voorburg, por exemplo, que congregava peritos do FMI, Banco Mundial, OCDE, OMC, UNCTAD, EUROSTAT e administrações nacionais que se interessassem foi o responsável pelo trabalho que vem sendo incorporado em novas edições do Manual de Balança de Pagamentos do Fundo Monetário Internacional.
3.6. Regulamentação pouco uniforme
A regulamentação de serviços no Brasil não só varia bastante em conteúdo de setor para setor, o que é bastante normal dada a heterogeneidade dos setores envolvidos, como também varia muito em nível de detalhamento e aprofundamento entre as atividades terciárias. Discernir uma tendência única para todos os setores é, portanto, muito difícil, com a significativa exceção do tratamento do capital estrangeiro, que, desde a Emenda no 6 da Constituição, tornou-se um tema muito menos delicado do que era o caso anteriormente.
Tendências mais localizadas e setoriais são certamente discerníveis.
3.7. Regulamentação restritiva/Mercado aberto
O caso de serviços bancários, por exemplo, ilustra uma tendência importante para os propósitos de negociações internacionais. Nesse setor, assim como em outros, existe uma regulamentação que a priori é restritiva, mas cuja aplicação implica uma situação regulatória de facto liberal. Trata-se de um caso sui generis na regulamentação nacional de serviços, dado que uma situação de plena vedação à instalação no País de novas agências de instituições financeiras domiciliadas no exterior foi flexibilizada para casos relativos a “autorizações resultantes de acordos internacionais, de reciprocidade, ou de interesse do governo brasileiro”. A partir de então (1995), o Presidente da República, através de decreto, passou a poder autorizar o estabelecimento de instituições bancárias no Brasil quando as autorizações em questão fossem, entre outras coisas, “de interesse do governo brasileiro”, o que era bem mais permissivo na prática do que uma vedação, porém bem menos permissivo em termos regulatórios do que um mero processo de autorização pelo Banco Central.
Essa flexibilização, através do parágrafo único do art. 52 do “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, se estenderia também para a questão do acesso do capital estrangeiro ao processo de saneamento dos bancos oficiais, através do programa de privatizações conduzido pelo Banco Central e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A participação do capital estrangeiro provou ser um importante complemento aos processos de extinção, profissionalização e transformação dos bancos estaduais, que teve lugar, em muitos casos, com a aquisição do controle acionário ou o financiamento, por parte da União, prévios à privatização propriamente dita.
Em termos da normativa internacional, o fato que o Sr. Presidente da República tenha de autorizar, por decreto, o estabelecimento de uma instituição bancária no mercado nacional não é visto com bons olhos, dado o grau de discricionariedade que isso pode representar para investidores interessados. No entanto, seria difícil argüir que o Brasil se apresenta fechado ao setor financeiro internacional, quando todos os principais bancos já estão presentes no mercado brasileiro. Esse conflito entre regulamentação e prática pode ser fonte de difíceis negociações com os demandeurs de maiores níveis de abertura para o setor financeiro. No entanto, a situação de facto brasileira deveria também contribuir seu peso específico na medida em que na prática não existem problemas reais de acesso para bancos estrangeiros.
3.8. Regulamentação restritiva/Mercado desorganizado
Nessa tendência enquadra-se a maior parte dos serviços profissionais. Com algumas exceções, a regulamentação de serviços profissionais no Brasil parece estar bastante antiquada ou pelo menos inadequada para enfrentar os desafios que se apresentam no mercado e nas transações internacionais de serviços. Vale ressaltar que isso se aplica tanto para nacionais como para estrangeiros.
O fato de existir a exigência de um registro no conselho ou ordem específica não constitui uma restrição. O processo de revalidação de diplomas, de exigência de um exame de capacitação e até mesmo de proficiência na língua portuguesa não constitui necessariamente formas de discriminação contra estrangeiros já que o mesmo é exigido de candidatos a profissionais brasileiros. É conhecida, no entanto, a dificuldade que é conseguir, por exemplo, a revalidação de um diploma estrangeiro.
Em alguns setores, alguns inclusive que já constam da lista de compromissos específicos do Brasil perante a OMC (contabilidade, publicidade, etc.), existem restrições próprias referentes à forma de estabelecimento, associação, cessão de nome da empresa e relação de sociedade. No geral, no entanto, em termos da oferta que se poderia fazer na OMC ou no MERCOSUL, não existiriam grandes obstáculos, já que a normativa do GATS e do Protocolo de Montevidéu permitem que cada país mantenha sua regulamentação profissional e simplesmente não abuse, aplicando critérios de forma que não seja condizente com o enunciado no art. 6o do GATS.
Uma certa cautela deve ser exercida, no entanto, com relação a situações que possam requerer, além de uma reforma e atualização geral da regulamentação, ajustes pontuais em áreas abordadas pelas disciplinas multilaterais e/ou regionais. Por exemplo, a atuação de profissionais estrangeiros é algo que apesar da regulamentação, ou falta de regulamentação, existente ocorre com bastante liberalidade no mercado nacional. Com efeito, um dos assuntos mais abordados por autoridades das diversas áreas profissionais é precisamente a presença crescente de profissionais clandestinos no mercado e uma suposta necessidade de fiscalização e controle que alguns estimam impossível (apesar de desejável).
Se os setores profissionais pensam em regulamentar com mais clareza a atuação de profissionais estrangeiros no Brasil, isso é da maior urgência, dadas as pressões dos diversos foros internacionais para uma maior liberalização dessas atividades. Vale salientar que, em alguns desses setores, o Brasil poderia também ter uma postura mais agressiva nas negociações, dada a competitividade de nossos profissionais. Para isso, no entanto, é necessário regulamentar aspectos negligenciados da atuação de profissionais estrangeiros no Brasil o quanto antes para que se possa definir com maior exatidão a fronteira entre nossas possíveis demandas e ofertas.
O que fez recentemente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao regulamentar a atividade de consultores em direito estrangeiro no Brasil, um sub-setor dentro da advocacia ou do setor de serviços legais cujo âmbito é claramente atrativo para profissionais estrangeiros, mas que apesar disso seguia sem regulamentação, é algo que parece estar ainda fora do âmbito de consideração de alguns conselhos profissionais. Um outro exemplo de tema específico que requer um certo cuidado regulatório é o da atividade de biólogos estrangeiros na área de biodiversidade.
Mais do que aberto, portanto, mercados como o de serviços profissionais no Brasil parecem estar desorganizados já que os limites de atuação entre profissionais e entre nacionais e estrangeiros não foram em muitos casos definidos. Seja pela iminência das negociações internacionais, seja pela necessidade de ser claro e previsível sobre o âmbito de atividades profissionais oferecidas no mercado brasileiro, um esforço mais concentrado por parte das autoridades profissionais é necessária.
3.9. Regulamentação inexistente/Mercado aberto
Em várias atividades de serviços não existe regulamentação sobre a prestação de serviços por pessoas, físicas ou jurídicas, estrangeiras. Atividades como serviços de informática ou serviços de pesquisa e desenvolvimento, por exemplo, não contêm disposições sobre a atuação de profissionais estrangeiros ou empresas estrangeiras – além das conhecidas disposições horizontais relativas ao movimento de pessoas físicas e ao investimento estrangeiro direto. Enquanto isso, o mercado já está na prática aberto para a presença estrangeira.
As autoridades oficiais que lidam com esses setores não descartam a possibilidade de vir a regulamentar alguns aspectos da atividade de estrangeiros. No entanto, esclarecem que a intenção não seria de necessariamente restringir o acesso de estrangeiros ao mercado nacional, mas que faria sentido definir um pouco melhor áreas e formas de atuação por estrangeiros. A diferentes versões da lei de informática examinadas no Congresso Nacional não dispunham sobre nada que parecesse interferir com a atuação de estrangeiros no Brasil. Na verdade, basta uma empresa de capital estrangeiro ter sede e administração no Brasil que ela também poderá beneficiar-se dos dispositivos da nova lei. O novo projeto, no entanto, refere-se em todas suas disposições relevantes a bens e serviços.
Serviços relacionados ao meio ambiente também enquadram-se na categoria de uma regulamentação ausente sobre a questão da atuação de estrangeiros no Brasil e um mercado de facto aberto. Serviços relacionados à agricultura, caça, reflorestamento e pesca também não exibem restrições a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras.
Setores cuja regulamentação é inexistente não devem ser interpretados como candidatos a futuras restrições à prestação de serviços por entes estrangeiros. No entanto, é importante estar atento à evolução da regulamentação relativa a esses setores para evitar que restrições sejam introduzidas de forma a negligenciar os limites dados pela normativa internacional. Em princípio, o tipo de regulamentação que parece faltar no Brasil em vários setores de serviços poderia facilmente enquadrar-se nos parâmetros dados pelo art. 6o do GATS. Isso exige, no entanto, um cuidado todo especial com a forma de dispor sobre temas de interesse na legislação pertinente.
3.10. Regulamentação restritiva/Mercado fechado
Em alguns setores, tais como o de serviços de saúde e de serviços postais a regulamentação é bastante clara: vedação à participação de capital estrangeiro em certas áreas. Em ambos os casos, a vedação emana da própria Constituição Federal.
Casos como esse obviamente requerem cautela. Porém a normativa nacional tende a evoluir mesmo nesses setores, como atesta o de serviços postais, considerado um dos próximos candidatos à quebra do monopólio e abertura para prestadores privados.
3.11. Um tratamento nacional quase irrestrito
Na negociação da Rodada Uruguai foi muito importante para países como o Brasil e a Índia que uma distinção fosse estabelecida entre o acesso a um determinado mercado e o tratamento que um prestador de serviços poderia vir a ter dentro daquele mercado.
Com a Emenda Constitucional no 6, de 1995, a distinção entre acesso a mercados e tratamento nacional deixou de ter tanta importância do ponto de vista da regulamentação nacional. Em princípio, seria plenamente possível imaginar que, uma vez detalhadas quaisquer medidas relativas ao acesso a mercados na lista de compromissos, o Brasil pudesse, quase sem exceção, inserir nenhuma na coluna referente a tratamento nacional. As exceções presentemente parecem existir, se existirem, nas condições que são impostas a empresas concorrentes em editais de privatização. Sujeito a exame mais aprofundado, mesmo em editais parece não haver com freqüência discriminação entre empresas nacionais e estrangeiras.
Esse é um ponto bastante interessante da regulamentação atual do Brasil, algo que poderá ser levado em consideração com presteza pelo menos nas consolidações que o Brasil possa vir a fazer nas negociações do MERCOSUL.
3.12. Poucos exportadores
A lista dos maiores exportadores de serviços do Brasil provavelmente não sofre grandes alterações já há algum tempo. As empresas brasileiras de maior sucesso nos mercados internacionais de serviços são as construtoras (construção e engenharia), a distribuidora de petróleo oficial (Petrobras), a Rede Globo e alguns bancos tais como o Itaú, que talvez sejam os maiores exportadores de serviços via presença comercial. Talvez a única novidade na lista sejam as empresas de informática/internet, tais como, a UOL, que já tem condições de ser uma das maiores, se não a maior, no seu ramo na América Latina. É lógico que as empresas de telecomunicações e de aviação também figuram como exportadoras, porém suas atividades são em grande medida internacionais por natureza (sem que seja necessário um grande esforço exportador).
Além da importante função que desempenham políticas públicas, tais como, financiamento à exportação, por exemplo, na alavancagem de vendas externas, vale ressaltar que o mercado internacional de serviços é um mercado bastante competitivo e tradicionalmente servido por grandes empresas transnacionais cuja área de atuação permite grandes economias de escala e escopo através de uma presença comercial em vários países. Competir com esses prestadores de serviços não é tarefa fácil e requer, além de muito trabalho e criatividade, uma atitude empresarial que leve ao estabelecimento de parcerias e acordos de cooperação – como formas de melhorar o acesso a redes de informação, distribuição e a mercados propriamente ditos – atitude essa ainda não muito comum em nossas empresas nacionais.
A atuação de empresas exportadoras de serviços têm se restringido à captura e à utilização de nicho de mercados – tais como o de financiamento do comércio exterior brasileiro por agências de bancos brasileiros no exterior. Para uma maior atuação nos mercados internacionais parece ser necessário um salto qualitativo para o setor empresarial de serviços do Brasil. Além da falta de demanda por serviços brasileiros que não possam ser prestados por empresas de outros países, a cultura exportadora de serviços também é incipiente no Brasil. Nesse sentido, o comércio de serviços sofre do mesmo mal que o comércio de bens em nosso país.
4. Conclusão
4.1. O Brasil e a ALCA em serviços
A negociação de qualquer instrumento internacional requer um definição nacional dos limites do exercício da soberania que se quer aceitar em troca da maior previsibilidade e melhor inserção no mundo (político, econômico, social, cultural, etc.) supostamente resultantes dessa negociação. Um capítulo sobre o comércio de serviços na ALCA não constituiria uma exceção a essa premissa. Com efeito, dada a heterogeneidade e vasto âmbito do universo que integra o comércio terciário, os objetivos nacionais cumpridos pela regulamentação do setor, dentre os quais a adequação do setor produtivo a padrões de competitividade internacionais, e o fato de que a ALCA passa por uma negociação bastante sui generis quanto ao rapport de force existente entre a maior potência mundial da atualidade e outros trinta e três países, um capítulo sobre o comércio de serviços evoca questões centrais de política econômica que dependem em grande medida da margem de atuação que se desejar e lograr preservar no instrumento que vier a ser negociado.
Três elementos – duas perguntas e uma constatação – são relevantes para a discussão de serviços no contexto da ALCA (ou de qualquer outro acordo internacional sobre o tema). As perguntas são as seguintes: em primeiro lugar, o quanto nos interessa destoar do consenso de nações, conforme expressado em acordos já existentes a começar pelo GATS na OMC? e qual seria o espaço que existe para atuar nesse sentido dadas as amarras já existentes na normativa internacional? A constatação refere-se ao entorno regulatório internacional: o tema serviços é sujeito a uma normativa internacional relativamente flexível, sendo uma de suas principais características a possibilidade de negociar níveis de abertura individuais para cada setor ou atividade e de preservar, quando necessário, restrições discriminatórias ou não-discriminatórias.
4.2. Reverter déficits: desejável? possível?
Uma conclusão preliminar sobre as transações internacionais de serviços captadas como serviços comerciais na Balança de Pagamentos é que a demanda por atividades de serviços estrangeiros parece atingir proporções estruturais no Brasil. A tendência em todo o período pós-guerra foi de importações crescentes em todos os itens. Até mesmo o setor de viagens, no qual se insere o setor de turismo, não conseguiu destoar dessa tendência, o que indica que a preocupação de reverter esse quadro talvez seja menos pertinente do que simplesmente estudá-lo mais a fundo para entender o porquê da demanda e como canalizá-la com vistas a obter o melhor resultado produtivo para o País.
Serviços, por sua natureza, são muito dependentes da formação dos potenciais prestadores. A capacitação de setores de serviços pode ocorrer muito mais rápido do que em outros setores da economia que exigem um aparato produtivo muito menos maleável. A preocupação em começar a exportar necessariamente passa por uma análise mais criteriosa de nossas importações. Isso porque com importações de serviços, valioso know-how é transferido, como em casos da prestação de serviços profissionais por estrangeiros e firmas de reconhecida qualidade mundial.
Uma abertura para o mundo em serviços pode representar o fim de empresas prestadoras de serviços nacionais. No entanto, isso depende da forma como tal abertura for conduzida. Como serviços são intensivos em conhecimento e capital humano, a abertura do mercado certamente maximizará ganhos, se for acompanhada de instrumentos, tais como, parcerias, joint ventures e acordos de cooperação entre empresas, que permitam às empresas nacionais ter acesso a redes de informação e infra-estrutura internacionais, assim como aos próprios mercados internacionais, através de redes de distribuição e venda de serviços já estabelecidas.
Dependendo da avaliação que se faz da necessidade de preservar uma capacidade doméstica de serviços e do lugar que pode ou deve ocupar a competitividade de empresas estrangeiras em nosso mercado, a ALCA pode se tornar um instrumento mais ou menos interessante. Vale ressaltar, no entanto, que a ALCA só pode ser um instrumento e que a competitividade do setor produtivo brasileiro e a qualidade na prestação de serviços no País dependem de um conjunto de instrumentos. Sendo ou não sendo desejável ou possível reverter déficits, a questão que se coloca é como fazer o melhor uso possível da ALCA ao mesmo tempo em que se preserve outras políticas relevantes para o desenvolvimento nacional.
4.3. O efeito da abertura
O Brasil passou por uma verdadeira revolução na área de serviços durante a última década. O processo de privatizações, aliado à abertura do mercado de serviços através de concessões e licitações, mudou significativamente a paisagem do setor, internacionalizando-o como nunca antes o fora. Essa primeira geração de abertura em serviços precisa ser avaliada. Os ganhos em eficiência são conhecidos e o exemplo do setor de telecomunicações é emblemático nesse contexto. No entanto, importantes questões permanecem sem resposta (relação eficiência/tarifas, por exemplo) e necessitam ser abordadas para que o valor do processo de abertura ou de uma maior abertura no médio e longo prazo ao qual se propõe um capítulo sobre serviços na ALCA possa ser apurado.
4.4. O lugar da regulamentação
Uma das mais importantes características da regulamentação de atividades de serviços no Brasil e no mundo é que muitas das razões que justificam medidas, apesar de afetarem o comércio internacional de serviços conforme definido desde o advento do GATS, têm sua origem em preocupações essencialmente nacionais, tais como, a preservação da qualidade na prestação e, portanto, na defesa do consumidor, a garantia de acesso a serviços essenciais para o bem-estar geral, a garantia de acesso a informações relativas a serviços específicos e a preservação de valores cívicos e/ou culturais. Proteção no sentido econômico, característica de políticas como a de indústrias nascentes, muito comum até a década de oitenta, hoje raramente integram os cardápios de políticas públicas à disposição de governos, devido à evolução do mercado internacional, que exige inserção e parcerias e não-proteção e auto-suficiência.
A regulamentação do setor de serviços no Brasil é bastante heterogênea. Não poderia deixar de ser, é lógico, dada a heterogeneidade entre as próprias atividades de serviços e os objetivos de política nacional cumpridos pela regulamentação específica. No entanto, existe também grande heterogeneidade no nível de regulamentação: o que foi visto acima sobre o quão regulamentado é ou não é um determinado setor, se falta regulamentação, se sobra regulamentação.
O aspecto regulatório é central para as negociações sobre serviços – na ALCA ou alhures. Não só o comércio de serviços entre países não é sujeito a tarifas de importação ou barreiras na fronteira (isso simplesmente não é factível) como as verdadeiras limitações a esse comércio se dão na regulamentação específica de cada setor, com freqüência inclusive de forma não-discriminatória entre serviços ou prestadores de serviços nacionais e estrangeiros. As negociações internacionais nesse sentido são puramente sobre a regulamentação do setor e nesse sentido a situação regulatória de um país é central, sobretudo porque a normativa internacional já existente e a que está por vir não se limita a medidas que discriminam contra interesses estrangeiros em mercados nacionais.
O que se observa no caso brasileiro é que a regulamentação nacional não está adequada a padrões internacionais em muitos casos e que isso necessita ser corrigido. Essa correção, no entanto, não deve ser entendida como uma desculpa para restringir o acesso de empresas ou prestadores estrangeiros. O que ocorre é que, em muitos casos, como o de serviços profissionais, a falta de regulamentação resulta em situações excessivamente permissivas que acabam afetando a qualidade e previsibilidade do serviço prestado. Regulamentar nesse caso não significa restringir e sim introduzir ordem onde ordem resulta em eficiência e qualidade.
Em alguns casos, a falta de regulamentação pode, de fato, ser negativa para o País, caso um acordo como a ALCA congele níveis existentes (ou não existentes) de regulamentação.
Processos de abertura não se dão apenas através de uma desregulamentação. Talvez até mais importante do que a desregulamentação seja a re-regulamentação que deve se dar uma vez contemplada a abertura. O caso de agências regulatórias, por exemplo, exemplifica eloqüentemente essa premissa. Assim, ganhar tempo para avaliar, decidir e implementar uma segunda geração de liberalização em serviços pode ser altamente relevante para os interesses nacionais. Em termos da ALCA, a forma de ganhar tempo para resolver o problema regulatório (ou re-regulatório) é o de privilegiar mecanismos que permitam flexibilidade na aplicação de disciplinas de liberalização – na modalidade (princípios e listas) e no tempo (prazos).
4.5. Como obter crédito
O Brasil é prova que até mesmo justificativas tradicionais para a regulação de serviços, tais como a noção de monopólios naturais, estão rapidamente cedendo seu lugar para versões flexíveis que delineiam os limites do monopólio e concedem a prestadores privados o direito de prestar serviços (os processos de privatizações e de concessões). Enquanto telecomunicações e transportes já estão bastante avançados nesse processo, o setor de energia começa a despontar como o próximo candidato cuja história no Brasil tem sido caracterizada pela propriedade pública e estatal. A rápida evolução nesse nível da regulamentação nacional tem importantes implicações para o grau de abertura do setor e sua competitividade internacional.
O processo envolvendo privatizações, concessões de serviços públicos e um clima bastante positivo e convidativo ao investimento estrangeiro direto emanante da própria Constituição Federal é algo que representa uma concessão unilateral brasileira importante. A situação do setor financeiro que também passou por grande processo de liberalização é também representativa de uma concessão que não foi ainda reciprocada em nível internacional. É lógico que esperar reciprocidade dos Estados Unidos, por exemplo, em termos de acesso a seu mercado financeiro talvez não seja algo que tenha concreto valor comercial para os bancos ou instituições financeiras nacionais. No entanto, crédito negocial pode ser obtido através da liberalização já feita não apenas com fins de exigir concessões estritamente recíprocas, no mesmo setor. Negociações como a da ALCA e as da OMC são negociações onde trocas inter-setoriais podem definir em grande medida o nível de abertura a ser oferecido por um país na mesa de negociação – sobretudo um país cujo poder de negociação é relativamente pequeno, quando comparado com os grandes parceiros comerciais. Assim, uma liberalização financeira unilateral pode servir tanto para diluir exigências norte-americanas, por exemplo, nesse mesmo setor, quanto para fortalecer pedidos brasileiros em outros setores – de serviços, agrícolas ou industriais.
Será importante, portanto, continuar refletindo sobre como fazer valer concessões unilaterais ou liberalizações autônomas nos foros internacionais e exigir algo em troca. Alguns autores abordam esse tema e sugerem algumas alternativas para inclusão na ALCA e em acordos de integração.
4.6. O vínculo com investimentos
Um dos pontos de divergência nas negociações da ALCA em serviços tem sido a questão do tratamento do tema investimentos. A divergência advém do fato de que os instrumentos que tratam do comércio de serviços no Hemisfério abordam, de forma distinta, a questão do investimento em serviços. No caso do NAFTA, existe um capítulo específico dedicado a investimentos, tanto em bens quanto em serviços. No caso do MERCOSUL, investimentos em serviços são tratados separadamente de investimentos em bens, através do Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços – ou seja, o instrumento do MERCOSUL que trata de todas as transações intrazona de serviços. No Protocolo, um dos quatro modos de prestação refere-se à presença comercial de prestadores de serviços, o que corresponde à questão do investimento direto estrangeiro no setor.
Que no mundo real a questão de investimentos é intimamente ligada à questão do comércio de serviços, não existe a menor dúvida. Que no mundo dos acordos de integração as duas questões necessitem estar juntas ou não, já é uma questão a ser avaliada, dependendo do objetivo nacional a ser atingido por essa ou aquela preferência. Para avaliar essa questão, o que se deve ter claro é o impacto de uma ou outra modalidade sobre a relação entre dois objetivos: o de atrair capitais estrangeiros de longo prazo e o de ter ingerência sobre o perfil do investimento e sua função no mercado. Apesar do segundo objetivo estar em desuso nos últimos tempos, dada a grande concorrência mundial para a atração de investimentos estrangeiros, a relação entre a atração e a ingerência continua tendo sua relevância em setores cruciais da economia, tais como, o de telecomunicações. O conteúdo dos editais de privatização, nesse contexto, podem revelar importantes elementos balizadores para uma análise mais criteriosa dos rumos a trilhar na regulamentação de investimentos estrangeiros em serviços.
O MERCOSUL tem-se oposto a tratar investimentos em serviços num capítulo dedicado ao tema investimentos como um todo, preferindo manter o tema no âmbito de um futuro capítulo sobre todos os tipos de transações em serviços. A escolha até agora tem sido mais tática/negociadora do que propriamente econômica ou inspirada em realidades de mercado. O tema é delicado e claramente não é do interesse do Brasil ser percebido como obstrucionista. Afinal, um dos pontos a favor da própria ALCA é a de servir como cartão de visita para investidores que vejam em sua adesão uma confirmação de um tipo de inserção no mercado internacional que privilegia a conciliação e não o confronto com interesses externos.
No entanto, até que ponto ceder? Por outro lado, aceitar que investimentos em serviços saiam do âmbito do capítulo de serviços dificulta a obtenção de outras concessões e é algo que deverá continuar presente na negociação – pelo menos até o momento em que ocorrerem as verdadeiras trocas de concessões que definirão o perfil do acordo como um todo.
4.7. Preservar o MERCOSUL?
Apesar do Protocolo de Montevidéu ainda não ter propriamente contribuído para a abertura dos mercados intrazona do MERCOSUL, a questão que se coloca é se vale ou não a pena promover uma liberalização mais profunda na sub-região do que no mercado hemisférico. Essa avaliação depende do conceito que se adotar sobre o próprio futuro do MERCOSUL e do seu lugar nas prioridades estratégicas brasileiras. Se a premissa fundacional do MERCOSUL continuar prevalecendo, é de se esperar que o regionalismo aberto do MERCOSUL mantenha algum espaço para maiores aprofundamentos na sub-região como forma de ir fortalecendo o bloco com vistas a torná-lo um sistema regional viável e de peso no cenário internacional.
Nesse contexto, aprofundar o livre-comércio de serviços entre os quatro Estados-partes como forma de alcançar um mercado comum afirma-se como elemento crucial e a questão de como preservá-lo em face da ALCA pode ser importante.
O Protocolo de Montevidéu tem elementos que já o tornam um esquema de liberalização mais profundo em serviços do que o NAFTA e outros acordos no Hemisfério. O Protocolo aplica a não-discriminação, seja em termos de nação-mais-favorecida ou tratamento nacional, a todos os setores de serviços, de forma incondicional – o que representa um compromisso bastante importante e mais profundo do que o seu correspondente do NAFTA, que permite a cada país-membro estabelecer condições ou manter restrições, bastando que o país em questão as inscreva em sua lista nacional. Outro elemento importante é a falta de prazo para a realização plena do livre-comércio intrazona no NAFTA, enquanto que o Protocolo de Montevidéu dispõe sobre um prazo máximo de dez anos a partir da entrada em vigor do instrumento. Outros exemplos de aprofundamentos possíveis para o MERCOSUL referem-se a temas setoriais, vários dos quais já contam com âmbitos negociais na forma de subgrupos especializados e subordinados diretamente ao Grupo Mercado Comum.
AS NORMAS TRABALHISTAS E AMBIENTAIS NA AGENDA DE NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS
Pedro da Motta Veiga
1. Introdução
Na área de negociações comerciais, nenhum tema terá gerado tanta controvérsia, ao longo da década de noventa, quanto a conveniência (ou a inconveniência) de incluir na agenda multilateral de negociações a questão das relações entre, de um lado, o comércio internacional, e de outro, as normas ambientais e trabalhistas.
Mais importante ainda, a controvérsia sobre esta questão gerou forte polarização Norte-Sul, opondo governos de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento e da polêmica participam ativamente representantes empresariais, sindicatos e ONGs de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Assim, por um lado, a questão das relações entre comércio e normas ambientais e trabalhistas inscreve-se na linha direta do paradigma de agenda comercial inaugurado pela Rodada Uruguai – em que temas envolvendo políticas domésticas e as divergências nacionais em matéria de políticas não-comerciais adquirem crescente importância. Por outro lado, no entanto, ela expressa a emergência de uma nova política das negociações comerciais, ao envolver intensamente organizações não-governamentais e ao mobilizar debates que não se podem reduzir à tradicional oposição entre liberais e protecionistas. Ao se situar na convergência da agenda de harmonização de políticas – de origem liberalizante – e da agenda de emergência de uma nova ordem pública internacional e de um sistema de governance da globalização – de origem regulacionista e seguramente não-liberal – o tema das relações entre comércio e normas trabalhistas e ambientais expressa, de forma exemplar, as tensões que atravessam o sistema de comércio mundial neste início de século.
A polarização Norte-Sul e a resistência dos governos dos países em desenvolvimento à inclusão do tema nas negociações multilaterais não significaram, no entanto, que a questão permaneceu exterior à agenda de comércio. De fato, através de acordos comerciais preferenciais, de medidas unilaterais adotadas por países desenvolvidos, de iniciativas não mandatórias envolvendo governos, empresas, sindicatos de trabalhadores e ONGs – tanto do Norte quanto do Sul – e até mesmo de organismos multilaterais, o tema das relações entre comércio e normas ambientais e trabalhistas já vem sendo tratado. E isto de tal forma que é possível afirmar que o debate atual envolve antes o como e onde tratar do que o se e por que tratar tais questões.
Por outro lado, a evolução dos debates levou a uma situação em que os temas comércio/meio ambiente e comércio/normas trabalhistas foram tratados separadamente, cada um descrevendo uma trajetória específica. O tema ambiental gerou acordos multilaterais que prevêem sanções comerciais e entrou no radar da OMC, com a criação de um comitê sobre comércio e meio ambiente, ao final da Rodada Uruguai, enquanto o tema trabalhista ficou de fora da OMC, mas evoluiu intensamente na OIT, em acordos regionais e em polícias comerciais dos países desenvolvidos.
O Brasil é reconhecidamente vulnerável ao debate: sua pauta exportadora é intensiva em recursos naturais (e ambientais) e o trabalho infantil é relevante em alguns setores da economia, inclusive em setores direta ou indiretamente exportadores. Aqui também o tratamento da questão evoluiu, embora a posição oficial do governo seja claramente de recusa da vinculação entre as regras de comércio e o cumprimento de normas ambientais e trabalhistas. O MERCOSUL acaba de concluir um acordo-quadro muito genérico na área ambiental e idéias como a elaboração de uma carta social não saíram no plano das intenções de alguns atores sociais da sub-região. Ainda assim, empresas, associações empresariais, ONGs e sindicatos de trabalhadores têm iniciativas nestas áreas, que correm à margem das posições oficiais.
Este trabalho descreve, na seção 2, o tratamento concedido às relações entre comércio e normas ambientais e trabalhistas nas negociações internacionais – direta ou indiretamente comerciais – nas políticas comerciais de diversos países e em iniciativas não mandatórias, ao longo dos últimos anos. Na seção 3, analisa-se a emergência do tema das relações entre comércio internacional e normas ambientais e trabalhistas, identificando as principais questões que estão na origem da aproximação entre a regulação do comércio internacional e o estabelecimento e enforcement de normas trabalhistas e ambientais, em âmbito nacional e internacional. Discutem-se, ainda, as principais tendências de evolução do tratamento dado ao tema em fóruns internacionais, nos últimos anos. A seção 4 traz a discussão para o caso do Brasil, buscando posicionar o País no debate internacional em curso e fazendo referência a iniciativas de enfrentamento da questão, geradas no âmbito privado. Finalmente, a seção 5 apresenta as principais conclusões do trabalho.
2. Comércio e normas trabalhistas e ambientais na agenda internacional
2.1. Comércio e normas trabalhistas
A questão da competição desleal relacionada às normas trabalhistas foi abordada no art. 7o do capítulo 2 da malograda Carta de Havana, que instituiria a Organização Internacional do Comércio, no imediato pós-guerra. Menos ambicioso, o GATT somente se refere ao tema na alínea e de seu art. 20, que estabelece a proibição de comerciar com artigos fabricados nas prisões. A partir de 1953 e nas sucessivas rodadas de negociações multilaterais, os Estados Unidos mantiveram a pressão sobre o GATT no sentido de incluir no Acordo um artigo ou disposições referentes às normas trabalhistas (Stern, 1999). Não foram, no entanto, bem-sucedidos e recorreram, na seqüência, a suas políticas comerciais unilaterais e, mais tarde, a acordos comerciais regionais e bilaterais, para vincular o tema trabalhista a questões de comércio.
No SGP dos Estados Unidos, prevê-se, desde 1984, a suspensão do tratamento preferencial no caso de trabalho forçado, de crianças e de desrespeito à liberdade de associação, ou seja, no caso de desrespeito “aos direitos dos trabalhadores reconhecidos internacionalmente” . Os direitos trabalhistas referidos na legislação norte-americana não coincidem exatamente com os que são objeto das Convenções da OIT referentes a normas trabalhistas fundamentais, mas inspiram-se na definição multilateral (OCDE, 2000). Em 1996, onze países perderam o direito aos benefícios do SGP, cinco deles tendo sido posteriormente reintegrados ao sistema.
Um acordo de cooperação paralelo ao NAFTA foi adotado, em boa medida, como meio de quebrar resistências domésticas, nos Estados Unidos, ao Acordo de Livre-Comércio. Este acordo de cooperação pretende promover a aplicação das legislações de trabalho vigentes nos países signatários.
De acordo com Aggarwal (1995), o acordo paralelo ao NAFTA contém uma enumeração de normas trabalhistas mais ampla do que as referidas nas convenções da OIT e nos documentos de política comercial dos Estados Unidos. São consideradas, no NAFTA, onze condições trabalhistas gerais que deverão ser promovidas, indo desde a liberdade de associação até as políticas de imigração e as condições salariais e de duração do trabalho. O Acordo não estabelece normas comuns, nem critérios uniformes para avaliação das políticas e práticas, mas prevê o cumprimento das regras domésticas de cada país. O Acordo prevê mecanismos específicos de solução de disputas, que somente podem ser acionados em caso de violação à legislação nacional pertinente e quando for possível caracterizar um padrão persistente, e não apenas um caso de incapacidade para enforce a legislação doméstica. Multas pecuniárias são previstas e sanções comerciais – no caso, a suspensão das preferências negociadas – são admitidas apenas quando as violações identificadas envolverem alguns tipos de normas, relativas a trabalho infantil e normas de segurança e saúde ocupacional. Entre 1994 e o final de 1999, vinte e duas comunicações públicas foram apresentadas aos órgãos administrativos nacionais do acordo de cooperação trabalhista. A maioria das controvérsias submetidas ao Acordo envolvem violações presumidas de direitos de liberdade sindical, de organização e negociação coletiva, inclusive o direito de greve. Nenhuma multa ou sanção foi aplicada ao abrigo do Acordo. (OCDE, 2000).
Ainda no Continente Americano, os acordos de livre-comércio entre o Chile e o Canadá e entre a Costa Rica e o Canadá também contemplam o tema trabalhista, com um modelo semelhante ao adotado no acordo de cooperação paralelo ao NAFTA.
Nas negociações da ALCA, os Estados Unidos apresentaram, no Grupo de Negociação do Capítulo de Investimentos, proposta de texto pelo qual os países signatários do Acordo se comprometeriam a não desconsiderar ou reduzir seus padrões e normas trabalhistas domésticas para atrair investimentos externos. Proposta semelhante é feita no que se refere a normas ambientais.
Na União Européia, o SGP prevê, desde 1994, a concessão de preferências suplementares aos países que possam demonstrar o respeito a certas normas trabalhistas fundamentais, além de permitir, em determinadas circunstâncias, a suspensão temporária das preferências, em função de práticas trabalhistas consideradas inadequadas. Em 1997, o Conselho Europeu suspendeu temporariamente os benefícios concedidos a Mianmar, em função da utilização extensiva, naquele país, de trabalho forçado.
No acordo de parceria entre os Estados da África, Caribe e Pacífico (países ACP) e a Comunidade Européia – o Acordo de Cotonou – cujas negociações foram concluídas em fevereiro de 2000, e no Acordo de comércio, desenvolvimento e cooperação firmado entre a Comunidade e a África do Sul, em 1999, os signatários reafirmam seu compromisso em relação ao cumprimento das normas fundamentais de trabalho.
Nos últimos anos a União Européia vem se afastando explicitamente das propostas que defendem o uso de sanções comerciais como meio para enforce normas trabalhistas internacionalmente acordadas, ao mesmo tempo em que defende o papel central da OIT na promoção das normas fundamentais ali negociadas.
Uma Comunicação recente da Comissão Européia (CE, 2001) apresenta os elementos de uma “estratégia de melhoria da governance social e da promoção das normas trabalhistas fundamentais, com vistas a aumentar a contribuição da globalização ao desenvolvimento social e ao respeito aos direitos fundamentais” (CE, 2001). O documento da Comissão enquadra o tema das normas trabalhistas fundamentais sob a ótica da promoção da dimensão social da globalização e do desenvolvimento social, referindo-se à Declaração de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social, de 1995, como um texto fundacional nesta área.
O Programa de ação proposto pela Comissão Européia para os próximos anos inclui, no plano internacional, o objetivo de tornar os instrumentos da OIT mais efetivos, aumentando a eficácia dos mecanismos de supervisão e de apresentação de queixas, bem como apoiando a discussão de novos mecanismos de incentivo à promoção das normas fundamentais de trabalho. Ampliar a eficácia destes instrumentos pode-se revelar fundamental para aqueles países que querem ver o tema definitivamente afastado da OMC e de seus mecanismos de enforcement.
No plano de suas iniciativas domésticas, a Comissão defende o fortalecimento dos mecanismos existentes no SGP comunitário e que levam em conta o cumprimento (ou não) das normas fundamentais de trabalho pelos países beneficiários. Por outro lado, propõe-se que a União Européia utilize, em seus futuros acordos bilaterais de comércio e cooperação, mecanismos semelhantes ao negociado com os países ACP no Acordo de Cotonou, de 2000, com ênfase em medidas específicas para a eliminação do trabalho infantil.
No plano multilateral, em dezembro de 1996, uma declaração sobre as normas fundamentais de trabalho foi incorporada à Declaração emitida ao final da Primeira Reunião Ministerial da OMC. Na Declaração, os membros da OMC renovam seu compromisso com o respeito às normas trabalhista fundamentais, apóiam a colaboração entre os secretariados da OMC e da OIT, rejeitam o uso das normas trabalhistas com objetivos protecionistas e reconhecem na OIT o organismo habilitado para definir e gerenciar as normas fundamentais de trabalho.
A Declaração de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social, de 1995 – que identificou, pela primeira vez, as normas trabalhistas fundamentais e estabeleceu sua universalidade – os inputs do estudo pioneiro da OCDE de 1996 e a Declaração Ministerial da OMC, de Cingapura, são antecedentes da adoção, em junho de 1998, da Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho, que enuncia sucintamente quatro princípios, obriga os Estados-membros da organização a respeitá-los e sublinha que as normas trabalhistas não deveriam ser utilizadas com finalidades protecionistas. Todos os membros da OIT se comprometem a promover e cumprir tais normas, sejam eles ou não signatários das convenções pertinentes. Os princípios e direitos incluídos na Declaração compreendem:
− a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva;
− a eliminação de qualquer forma de trabalho forçado ou obrigatório; − a abolição efetiva do trabalho infantil; e
− a abolição da discriminação em matéria de emprego e de profissão.
Desde 1995, o número de países que ratificaram as sete convenções fundamentais da OIT então vigentes mais do que dobrou. A oitava convenção fundamental – a no 182 – que proíbe as piores formas de trabalho infantil, entrou em vigor em novembro de 2000 e foi rapidamente ratificada.
A ratificação das convenções e a adoção da Declaração de junho de 1998 não implicam, no entanto, que a aplicação dos princípios aí defendidos tenha evoluído com a mesma velocidade. Isso apesar do fato de que a Declaração de 1998 estabeleceu uma nova metodologia de acompanhamento de sua implementação, com base em relatórios anuais.
Em dezembro de 1999, quando da Terceira Conferência Ministerial da OMC, em Seattle, os Estados Unidos propuseram a criação de um grupo de trabalho sobre comércio e trabalho na OMC e a União Européia propôs o estabelecimento de um foro permanente de trabalho, reunindo a OMC e a OIT sobre as relações entre as políticas relativas ao comércio, ao desenvolvimento, à proteção social e ao meio ambiente. Diversos membros da OMC, em especial países em desenvolvimento, resistem frontalmente a estas iniciativas e a polarização entre países desenvolvidos e em desenvolvimento se acentua, quando o Presidente dos Estados Unidos – país anfitrião da Conferência – defende, em discurso, o uso de sanções comerciais contra países que violam as normas trabalhistas fundamentais, nomeando alguns destes países, também membros da OMC.
Na OCDE, uma ampla revisão dos princípios diretores da organização para as empresas multinacionais – adotados, em sua primeira versão, em 1976 – foi levada a efeito em 2000, incluindo-se, no documento, recomendações relativas às normas trabalhistas fundamentais, particularmente no que diz respeito ao trabalho infantil e ao trabalho forçado. Este documento foi assinado pelos países-membros da organização e quatro países não-membros, entre os quais o Brasil, a Argentina e o Chile.
Além disso, códigos de ética ou de responsabilidade social são crescentemente adotados por grandes empresas, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, onde códigos de conduta relativos às normas trabalhistas fundamentais foram negociados entre empregadores e empregados em setores da indústria como o têxtil e o de calçados. Por outro lado, programas de etiquetagem (labelling) têm sido crescentemente utilizados, tanto em países desenvolvidos, quanto em desenvolvimento, para promover a erradicação – ou a redução – do trabalho infantil ou, mais genericamente, para incentivar relações com pequenos produtores em países em desenvolvimento baseadas na idéia de fair trade. Há que reconhecer, no entanto, que estes códigos de conduta e outros mecanismos privados de regulação se caracterizam por serem extremamente heterogêneos, não apenas no que se refere aos princípios e normas contempladas, mas também no que diz respeito ao grau de enforcement a aos mecanismos de supervisão e avaliação de que dispõem (Senarclens, 2000). De acordo com levantamento da OIT citado por este autor, “apenas um terço dos códigos de conduta propostos por atores não-governamentais faz referência às normas trabalhistas fundamentais ou aos princípios enunciados nas convenções e recomendações da OIT”.
Outra iniciativa relevante e recente diz respeito ao estabelecimento de sistemas de gestão padronizados na área trabalhista, na linha dos Sistemas 9.000 e 14.000: o sistema Social Accountability 8.000 (SA 8.000) é o melhor exemplo desta nova tendência.
Finalmente, é importante lembrar que contratos comerciais entre empresas de países em desenvolvimento e importadores de países desenvolvidos também funcionam como um vetor de difusão de novas práticas nesta área. Assim, muitos contratos passaram a incluir, nos últimos anos, cláusulas com requisitos de cumprimento de determinadas normas e padrões por parte das empresas exportadoras.
2.2. Comércio e normas ambientais
Até o final da Rodada Uruguai, o meio ambiente somente era levado em conta, nas regras do GATT, através das exceções, previstas no art. 20, visando proteger a saúde humana, animal ou vegetal, ou os recursos não-renováveis. O preâmbulo do Acordo da Marrakech se refere diretamente aos objetivos de desenvolvimento durável e de proteção do meio ambiente, mas o tema ambiental não é tratado nos acordos que emergem da Rodada Uruguai, sendo criado, ao final da Rodada, no âmbito da OMC, um Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente.
O Comitê recebeu um amplo mandato de trabalho, cobrindo bens, serviços e direitos de propriedade intelectual. Seu duplo objetivo era:
(i) identificar as medidas comerciais e ambientais de forma a promover o desenvolvimento sustentável; e
(ii) recomendar se o regime multilateral de comércio precisa ser modificado, de uma maneira compatível com a sua natureza não-discriminatória e aberta.
O CTE trabalhou em temas relacionados a acesso a mercado e às relações entre as agendas comerciais e dos acordos ambientais multilaterais, mas sua dinâmica de trabalho foi negativamente afetada pela polarização Norte-Sul em torno do tema (Figueres et alii, 2001). Ainda no âmbito da OMC, foi criada a Divisão de Comércio e Meio Ambiente para apoiar os comitês que tratam destas relações e das barreiras técnicas ao comércio e o Secretariado está envolvido em um diálogo regular sobre comércio e meio ambiente com organizações não-governamentais.
Os processos de integração regional e de liberalização preferencial também levam em conta, embora de forma heterogênea, o tema ambiental. No caso do NAFTA, à semelhança do que ocorre com o tema das normas trabalhistas, foi estabelecido um acordo paralelo de cooperação, que prevê o cumprimento, pelos países signatários, de suas legislações domésticas.
No acordo paralelo ao NAFTA, os países explicitamente concordam em não utilizar medidas ambientais como barreiras não-tarifárias. Além disso, comprometem-se a cumprir em seus territórios as legislações ambientais domésticas. É criado um comitê de cooperação ambiental, de caráter supranacional, entre os países signatários e um conselho que reúne os Ministros de Meio Ambiente destes países. De maneira semelhante ao que corre no acordo de cooperação na área trabalhista, prevê-se a aplicação de multa contra violações da regulação doméstica que configurem um padrão recorrente – e não apenas um caso isolado – e, no limite, sanções comerciais (suspensão das preferências tarifárias).
O acordo de livre-comércio entre o Chile e o Canadá, firmado em 1997, também contempla a questão ambiental. Seu modelo institucional nesta área é baseado no NAFTA, embora seus mecanismos de enforcement sejam menos fortes do que os do acordo norte-americano. De fato, no acordo entre o Chile e o Canadá, o Comitê de Cooperação Ambiental não desfruta da autonomia que lhe é conferida no NAFTA e não tem a autoridade para impor sanções comerciais (Schatan, 1999).
Na ALCA, os Estados Unidos propuseram, no Grupo de Negociação sobre Investimentos, a inclusão de parágrafo nos termos dos quais as partes se comprometem a não desrespeitar nem atenuar seus padrões e suas regras domésticas na área ambiental, como meio para atrair investimentos.
No caso do MERCOSUL, depois de anos de impasses e dificuldades, foi assinado, em abril de 2001, um acordo-marco na área ambiental, cuja principal característica é a generalidade dos objetivos e meios e a inexistência de quaisquer elementos relacionados ao enforcement do que foi acordado entre as partes.
Na União Européia, uma das mais fortes tendências nesta área, foi a difusão do instrumento de etiquetagem ambiental (eco-labels), compatível com o objetivo de incentivar a disseminação de instrumentos econômicos não mandatórios que incentivem as empresas a upgrade seu desempenho ambiental. Como se verá na seção 3, estes mecanismos, que contemplam a análise do ciclo de vida dos produtos, não estão imunes aos riscos de captura por interesses protecionistas nos países importadores e podem gerar clara discriminação entre produtos domésticos e importados.
No plano multilateral, mas externo ao campo das negociações comerciais, a iniciativa mais relevante foi a criação da série de Padrões 14.000. Em 1991, criou o SAGE – Strategic Advisory Group on the Environment – para avaliar a possibilidade de criar padrões internacionais de gestão ambiental, de forma similar ao modelo adotado para a gestão da qualidade, que buscava aumentar a capacidade organizacional para atingir e mensurar as melhorias no desempenho ambiental das firmas, facilitar o comércio internacional e remover as barreiras comerciais. Em 1995, o SAGE concluiu seus trabalhos, confirmando a possibilidade de que fossem alcançados estes três objetivos através do estabelecimento de padrões internacionais de gestão ambiental. Em conseqüência, estabeleceu um novo comitê técnico – o TC-207 – para desenvolver padrões internacionais neste campo. A Série 14.000, que resultou destes trabalhos, é uma abrangente check-list de práticas de gestão empresarial consideradas necessárias para garantir o rigoroso cumprimento da legislação ambiental, antecipar problemas relacionados ao meio ambiente e medir a consistência do desempenho ambiental das firmas.
Os padrões foram formulados com o objetivo de poderem ser aplicados a todos os tipos e tamanhos de organizações e acomodar diversas condições geográficas, culturais e sociais. Em conseqüência, eles não estabelecem “requerimentos absolutos de desempenho ambiental, que vão além do compromisso de cumprir a legislação e as regulações existentes e de aperfeiçoar continuamente o sistema de gestão ambiental da empresa”. Portanto, a norma estabelecida não pretende alterar ou aumentar o nível das obrigações legais da empresa que o aplica.
Também na área ambiental, contratos comerciais entre empresas de países em desenvolvimento e importadores de países desenvolvidos atuam no sentido de difundir novas práticas de gestão. De fato, é comum que contratos de venda de produtos sensíveis ambientalmente incluam cláusulas com requisitos de cumprimento de determinadas normas e padrões por parte das empresas exportadoras.
3. Comércio internacional e normas trabalhistas e ambientais: um debate em evolução
3.1. Comércio e normas trabalhistas e ambientais: na confluência de duas agendas
A aproximação entre os temas comerciais e a questão do cumprimento das normas ambientais e trabalhistas se evidenciou na década de noventa, mas tem origem em evoluções que remontam aos anos oitenta. Na área ambiental, a década de oitenta foi marcada pela assinatura de tratados multilaterais que contemplam o uso de sanções comerciais como mecanismos de enforcement das regras ambientais acordadas internacionalmente. Na área trabalhista, Estados Unidos e União Européia já incluíam, em suas legislações comerciais nacionais e, em especial, em seus SGPs, tratamento diferenciado aos países em desenvolvimento de acordo com o grau de cumprimento de normas trabalhistas.
Na década de noventa, no entanto, a aproximação entre as duas agendas se acentuou, legitimada pela crescente intromissão do GATT – depois OMC – em temas de política até então considerados como não estritamente comerciais. Esta intromissão apoiava-se na constatação de que a crescente interdependência entre as economias nacionais requeria regras que impedissem a distorção dos fluxos comerciais potencialmente gerados por políticas nacionais não especificamente comerciais. A partir desta constatação, inaugura-se, em instâncias multilaterais e regionais, um amplo debate em torno das relações entre as regras de liberalização comercial e as divergências entre políticas nacionais em áreas capazes – suposta ou comprovadamente – de impactar fluxos de comércio. É a era da agenda de harmonização, ou menos ambiciosamente, de convergência de políticas, dos debates sobre a conveniência da competição regulatória, etc.
O problema central que os novos temas de negociação colocam para a agenda comercial envolve o tratamento das “divergências de preferências coletivas (...) que se refletem nas evoluções dos sistemas de regulamentação ou dos instrumentos econômicos” dos diferentes países (Jacquet et alii, 1999). Segundo estes autores, estas divergências de preferências “podem derivar de apreciações diferentes da qualidade, de uma aceitabilidade diferente de riscos, de contextos locais em matéria de dotação de recursos naturais e condições climáticas, mas também de critérios éticos e religiosos ou ainda de tradições jurídicas diferentes” . É cada vez mais difícil manter a legitimidade da liberalização comercial, tanto no plano multilateral, quanto das iniciativas regionais e unilaterais, se não se busca equilibrar objetivos de liberalização e divergências nas preferências nacionais em matéria de bens públicos.
Como observa Kahler (1993), os processos de integração geraram diferentes soluções para este tema, as quais vão do modelo baseado na competição institucional ou reconhecimento mútuo até a harmonização (simétrica ou assimétrica) de políticas ou a administração do comércio. Segundo o autor, na União Européia, a competição institucional foi uma solução adequada, dada a convicção, partilhada pelos membros, de que todos os países da União “aplicam variantes de um modelo europeu de produção que oferece alta proteção – e considerável poder político – ao trabalho”. Neste contexto, a competição institucional tornou-se mais aceitável “porque os limites implícitos desta competição estavam claros” e eram partilhados pelos membros. Ainda assim, a competição institucional exigiu um certo grau de institucionalização no plano internacional, “para assegurar que a competição institucional, relativamente livre em alguns campos de política, fosse mais restrita, em outros”. Já no NAFTA, um acordo entre sócios com tradições e preferências sociais e políticas muito diferentes e, em termos de poder político e econômico, muito desiguais, prevaleceu o modelo de harmonização, mas o processo se deu ao longo do vetor de políticas que caracteriza as preferências do sócio maior. Neste caso, a harmonização assimétrica consagrou a hegemonia do paradigma liberal de políticas no acordo, sendo que as economias menores compram, junto com o acordo e o acesso aos mercados das economias maiores, um padrão de políticas. Outros processos de integração, como o MERCOSUL, não parecem ter sido capazes de gerar uma solução política para este tipo de dilema, combinando medidas de comércio administrado com uma competição institucional que carece de regras implícitas e de legitimidade entre seus membros.
Portanto, o paradigma de negociações comerciais cujo eixo é a prioridade concedida à agenda da harmonização ou da convergência de políticas encontra-se na origem da aproximação entre comércio, de um lado, e normas trabalhistas e ambientais, de outro. Mas não é possível entender o novo ímpeto que ganham as discussões sobre estes temas nos últimos anos, em que pese as sólidas resistências interpostas na OMC pelos países em desenvolvimento, sem ter em conta o peso político que adquirem, nos principais países da OCDE, as forças sociais e as posições políticas que se pautam por uma avaliação genérica de que “a globalização foi longe demais” – para utilizar a expressão de Rodrik (1997) – e de que a competição regulatória ensejada pelo crescimento da interdependência econômica, além de produzir desemprego nos países da OCDE, estaria gerando uma convergência de política em torno de padrões baixos e de critérios mínimos, ameaçando normas sociais e valores culturais consagrados nestes países.
Houve, nos últimos anos, diversas manifestações de que posições políticas contrárias a novas iniciativas de liberalização, tanto multilaterais, quanto regionais, passaram à ofensiva, logrando bloquear, por exemplo, a aprovação da fast track authority pelo Congresso dos Estados Unidos ao Executivo e impedir a conclusão das negociações do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), na OCDE, além de exigir a participação das ONGs ambientais e de representantes sindicais nos diversos foros de negociação comercial. Tais forças contribuíram ativamente para o fracasso da Reunião Ministerial da OMC, em Seattle, em dezembro de 1999. Em tais oportunidades, estes grupos manejaram politicamente a idéia de que “a integração econômica internacional é administrada por um pequeno grupo de governos e de grandes corporações, excluindo os demais interesses, como aqueles ligados ao trabalho, ao meio ambiente e aos consumidores” (Kahler, 1995) .
Mais recentemente, tais preocupações, disseminadas nos meios públicos e das ONGs dos países desenvolvidos, evoluíram para a constatação de que “as regras e estruturas econômicas e sociais existentes o plano internacional são desequilibradas no nível global. A governance global do mercado desenvolveu-se mais rapidamente do que a governance social global” (CE, 2001).
Legitimada pois – à luz das principais tendências das negociações comerciais internacionais – pela sua aderência à lógica de tratamento das divergências nacionais que possam afetar os fluxos comerciais, a aproximação entre comércio e normas ambientais e trabalhistas ganhou impulso como parte de uma agenda regulacionista de cunho societal, com motivações diversas das posições protecionistas tradicionais e politicamente apoiada em segmentos diversificados da opinião pública doméstica dos países desenvolvidos e em uma rede transnacional de organizações não-governamentais, que incluem entidades e interesses sociais dos países em desenvolvimento.
Mas a aproximação entre a agenda comercial e os temas ambientais e trabalhistas também deve muito à percepção de que os instrumentos de enforcement da OMC são mais efetivos do que os de outras instituições e que, portanto, a garantia de que normas trabalhistas ou ambientais adequadas seriam implementadas dependeriam da inclusão destes temas na agenda comercial multilateral e da admissão de que sanções comerciais seriam adotadas para enfrentar o descumprimento das regras acordadas nesta área: “a força relativa da OMC levou a propostas no sentido de que a Organização deveria atuar em áreas externas ao campo comercial, usando seus instrumentos para reforçar a governance em outras áreas de política, como as normas trabalhistas e o meio ambiente” (CE, 2001). Neste sentido, alguns autores formulam a idéia de que a pressão para a inclusão destes temas na OMC sugere que a instituição é vítima de seu próprio sucesso (Kostecki, 2000; Sutherland et alii, 2001).
Finalmente, é importante não esquecer que o sistema de regras comerciais do GATT já incluía o conceito de dumping, extremamente ambíguo, em termos econômicos, mas funcional politicamente como arma de defesa comercial à disposição das partes contratantes às voltas com o acirramento da competição de produtos importados. O dumping é identificado – mal ou bem – com a competição desleal, e o GATT sanciona a idéia de que é possível corrigir, através de ações antidumping, tal padrão de competição. Não por acaso os defensores do tratamento, na OMC, de temas trabalhistas e ambientais, apóiam seus argumentos na necessidade de enfrentar o “dumping social” e o “dumping ecológico”.
3.2. O debate internacional: principais tendências de evolução
Os fundamentos das preocupações internacionais com os temas ambientais e trabalhistas não são idênticos. No caso dos temas ambientais, há preocupações econômicas e ambientais com os impactos transfronteiriços de políticas ambientais nacionais inadequadas e com o desrespeito pelas empresas a determinados padrões mínimos na área ambiental. Não por acaso, acordos multilaterais foram firmados na área ambiental para impedir o comércio de bens considerados danosos ao meio ambiente – vetor mais óbvio da transmissão transfronteiriça de práticas privadas e políticas nacionais inadequadas.
No caso dos temas trabalhistas, as preocupações emergem internacionalmente por duas vias: a ético-política, com o requisito de globalização de direitos sociais, e a econômica. A dimensão econômica, no entanto, não envolve – como ocorre com as questões ambientais – impactos potencialmente globais de políticas nacionais, mas tão-somente impactos localizados em certos países, decorrentes de práticas e políticas executadas em outros países. Além disso, embora atividades exportadoras nos países em desenvolvimento possam se valer do recurso a baixas normas de trabalho, é reconhecido que estas normas são mais freqüentemente violadas em atividades não orientadas ao comércio internacional, como a pequena agricultura e os serviços tradicionais (Stern, 1999; OCDE, 2000). Em geral, a intensidade exportadora das empresas é diretamente proporcional à melhoria das condições trabalhistas.
O tratamento internacional dos temas ambientais desfruta de reconhecida legitimidade econômica – já que o meio ambiente é, em termos rigorosamente econômicos, um bem público global – situação que não se reproduz na área trabalhista.
Esta diferença certamente contribui para o fato de que o vínculo entre comércio e temas ambientais tenha sido estabelecido em acordos internacionais, antes mesmo da constituição da OMC e tenha se mantido na curta vida desta instituição, através do Comitê de Comércio e
Meio Ambiente, criado no final da Rodada Uruguai, e de decisões adotadas no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias, envolvendo questões relativas a comércio e meio ambiente. Também contribui para isto o fato do tema ambiental tem interface nítida com questões tratadas no âmbito de dois acordos da OMC – o de Barreiras Técnicas ao Comércio e o de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias – e com os sensíveis problemas relacionados à saúde humana.
Ao contrário, e em boa medida, refletindo a mesma constatação, o vínculo comércio e trabalho se consolida através de medidas unilaterais ou regionais, bem como através de iniciativas não-mandatórias – envolvendo sempre os países onde se manifestariam os efeitos economicamente indesejáveis da competição de países não-cumpridores das normas trabalhistas – somente alcançando a instância multilateral através de uma instituição como a OIT, cujo mandato não envolve a área comercial.
Nas palavras de Badie (2000), “quando comparadas às questões ambientais (as questões trabalhistas e sociais) parecem menos capazes de produzir diretamente problemas globais suscetíveis de comprometer a sobrevivência da humanidade”. É por esta razão e pelo fato de que os sistemas de proteção social se estruturaram em bases nacionais que “a internacionalização dos problemas sociais tende a se prestar a manipulações políticas particularmente vigorosas da parte de Estados” nacionais e de interesses protecionistas (ver Badie, 2000; Kostecki, 2000).
a) comércio e normas trabalhistas
No que diz respeito aos temas relacionados a comércio e normas trabalhistas, sua emergência como problema internacional, em termos econômicos, temos duas questões: os impactos de diferentes níveis de cumprimento das normas de trabalho sobre a competitividade das economias e os efeitos dos fluxos comerciais e de investimento gerados pela competição entre economias com distintos graus de cumprimento destas normas sobre a estrutura de emprego e os níveis salariais dos trabalhadores (não-qualificados, essencialmente) dos países desenvolvidos.
Como observa Stern (1999):
“o que preocupa os ativistas trabalhistas e sociais é que as crescentes importações procedentes de países em que, de modo ostensivo, não se aplicam normas trabalhistas de proteção suficientes, vão em detrimento dos salários e das condições trabalhistas dos países industrializados importadores”.
Um amplo conjunto de estudos foram realizados na década de noventa, buscando avaliar empiricamente a existência de correlações entre normas de trabalho, desempenho exportador e impactos sobre os mercados de trabalho dos países desenvolvidos. Dois estudos da OCDE, um de 1996 e outro de 2000, buscaram sintetizar as principais conclusões deste conjunto de trabalhos e as recomendações de política que deles se pode derivar.
No que se refere à relação entre cumprimento das normas trabalhistas e desempenho exportador, uma qualificação importante envolve o tipo de normas de trabalho que se considera. Não há qualquer evidência, nos estudos realizados, de que um baixo grau de cumprimento das normas trabalhistas fundamentais esteja associado a um bom desempenho exportador do país em que tais normas seriam pouco exigentes e/ou insuficientemente cumpridas. Por outro lado, parece claro, a partir destes estudos, que normas associadas a tempo de trabalho e a níveis salariais têm impacto sobre a competitividade e o desempenho exportador, o que não deve surpreender, na medida em que tais normas – não fundamentais, na classificação da OIT – podem influenciar as vantagens comparativas de uma economia (OCDE, 2000; Brown, 2000).
Tampouco se constatou correlação positiva entre baixo nível de cumprimento das normas fundamentais de trabalho e a atratividade relativa das economias para os investidores externos. Um estudo do Centro de Desenvolvimento da OCDE (Oman, 2000) não encontrou qualquer evidência relevante de que a competição para atrair investimentos externos, em países desenvolvidos e em desenvolvimento, tenha gerado pressão sobre normas trabalhistas (e ambientais) domésticas, visando reduzi-las ou derrogar certos aspectos das legislações. O mesmo estudo não exclui, no entanto, a hipótese de que a competição regulatória para atrair investimentos externos tenha contribuído para moderar intenções de aumentar os níveis dos padrões domésticos de proteção social e ambiental, por parte dos países que competiam para atrair tais fluxos. É importante ainda lembrar que setores industriais geralmente associados a baixos padrões trabalhistas representam parcela extremamente reduzida dos fluxos internacionais de investimentos diretos.
A relação entre comércio, emprego e salários é mais controversa. Segundo a OCDE (2000):
“os pesquisadores continuam divididos sobre a importância do comércio sobre as características do emprego setorial e/ou dos salários relativos em relação ao impacto de outros fatores, como as inovações tecnológicas, as migrações internacionais e as mudanças institucionais”.
Bom número de trabalhos tende a identificar, nas mudanças tecnológicas, mais do que nos fluxos comerciais, a origem das pressões sobre a estrutura de emprego e de salários industriais nos países desenvolvidos, mas parece claro que o comércio atua direta e indiretamente como um fator secundário relevante. De fato, estudo da OCDE (1997) sugere que “a redução dos preços relativos dos setores expostos à concorrência das importações durante os anos oitenta contribuiu para degradar a situação dos trabalhadores não-qualificados relativamente aos qualificados”. Na mesma linha, Rodrik (1997) põe em evidência o impacto dos fluxos comerciais sobre o aumento da elasticidade da demanda por mão-de-obra, com conseqüências sobre os níveis de salários reais.
Portanto, se há algum fundamento na preocupação, tão comum nos países desenvolvidos, com o nivelamento por baixo das normas trabalhistas (e ambientais, diga-se de passagem) que seria gerado pela competição de países despreocupados com o atendimento de tais normas, este processo nada parece ter a ver com descumprimento das normas trabalhistas fundamentais, mas com diferenças internacionais nas normas de trabalho que impactam de forma mais ou menos direta as vantagens comparativas das economias nacionais .
Obviamente, não é fácil diferenciar entre “as normas trabalhistas que todos considerariam direitos universais e outras normas (...) que dependam de determinadas circunstâncias nacionais” (Stern, 1999). Alguns autores propuseram distinguir entre normas relativas a processos de trabalho e normas relativas a rendimentos de trabalho, o esforço de universalização de normas devendo restringir-se às primeiras. Um documento recente, produzido no âmbito de um fórum organizado pela OCDE, distingue entre “os elementos de natureza quantitativa que constituem os determinantes diretos do custo salarial (taxa salarial, duração do trabalho, etc.) e (...) sua vantagem comparativa no comércio internacional” e as normas trabalhistas fundamentais, “de natureza acima de tudo qualitativa e que se referem ao respeito à dignidade humana e aos direitos cívicos e políticos” (Cling, 2001).
Feita a constatação de que a competitividade dos países em desenvolvimento decorre menos do desrespeito às normas fundamentais do que de suas vantagens comparativas ligadas ao custo do trabalho, ou bem as propostas para tratamento das relações entre comércio e normas trabalhistas evoluem na direção de restringir impactos sobre as economias desenvolvidas através de medidas voltadas para a convergência de normas salariais – ou seja de normas não fundamentais – ou bem elas se concentram no cumprimento das normas fundamentais. A primeira opção é obviamente atraente para os setores industriais de países desenvolvidos ameaçados pela competição dos PVDs, mas afrontaria diretamente os princípios do comércio internacional e consolidaria, nas relações econômicas internacionais, uma assimetria injustificável e insustentável. A segunda opção reduz os riscos de captura do tema pelos interesses protecionistas, insere o tema na agenda de governance social e econômica da globalização – mais do que na agenda estritamente comercial – e transfere a uma organização multilateral não-comercial (a OIT) a gestão do tema e o enforcement das decisões acordadas internacionalmente .
Até o momento, a primeira opção se impôs no plano multilateral: o modelo de gestão do tema que prevalece na instância multilateral combina promoção das normas trabalhistas fundamentais, supervisão e monitoramento do cumprimento das Convenções da OIT relativas a tais normas, responsabilidade institucional central atribuída à OIT, pressão moral e, no limite, sanções econômicas aos países infratores.
No entanto, as instâncias regionais e unilaterais de regulação do comércio têm aberto trajetórias alternativas de tratamento do tema das relações entre comércio e normas trabalhistas. Os acordos comerciais de liberalização preferencial e de integração são, juntamente com as políticas comerciais nacionais dos grandes players do comércio mundial, os principais vetores de difusão de propostas alternativas.
Na realidade, o Continente Americano vem sendo o terreno por excelência de experimentação de formas alternativas de tratamento internacional da questão, sob impulso dos Estados Unidos e do Canadá. Embora tanto os Estados Unidos quanto a União Européia contemplem o tema no tratamento dispensado aos beneficiários de seus SGPs, apenas os Estados Unidos (e o Canadá) têm buscado incluir em seus acordos seletivos de liberalização, começando pelo NAFTA, mas indo até a ALCA, dispositivos que vão além do modelo vigente multilateralmente. Neste caso, o modelo adotado combina cumprimento das normas trabalhistas domésticas (que são implicitamente objeto de reconhecimento mútuo pelos signatários), mecanismo específico de supervisão e monitoramento deste cumprimento, institucionalidade intergovernamental ou supranacional envolvendo países signatários, multas pecuniárias e, em último caso, sanções comerciais autorizadas, mas restritas a violações a determinadas normas
No que diz respeito ao vínculo entre comércio e normas trabalhistas, algumas evoluções contribuíram, ao longo dos últimos anos, para facilitar a emergência de um consenso político internacional em torno do tratamento do tema, ainda que esta tendência não tenha eliminado a polarização Norte-Sul:
− em primeiro lugar, o objeto normas de trabalho foi sendo gradualmente circunscrito ao sub-conjunto de normas trabalhistas fundamentais, tais como definidas em um organismo multilateral que não se dedica ao comércio, como a OIT. Estas evoluções – que datam do pós-Rodada Uruguai – afastam o risco de que o tema inclua não só normas relacionadas às condições e ao processo de trabalho, mas também aspectos relacionados à remuneração do trabalho e, portanto, às vantagens comparativas dos países em desenvolvimento;
− em segundo lugar, a discussão e as negociações afastaram-se crescentemente das propostas de utilização de sanções comerciais contra países que não cumprissem as normas negociadas, portanto, reduzindo o potencial para o uso protecionista do tema. A inadequação entre os objetivos de promover normas de trabalho e o instrumento da sanção comercial encontra-se, hoje, solidamente estabelecida. Reconhecem-se os impactos negativos potenciais das sanções comerciais sobre as condições de vida e a renda das populações penalizadas por normas não adequadas de trabalho;
− em terceiro lugar, uma série de estudos econômicos realizados não sancionaram as hipóteses subjacentes às posições favoráveis ao tratamento comercial das disparidades internacionais entre normas trabalhistas: não se comprovou a existência de vínculos entre baixas normas trabalhistas e competitividade internacional e a relação causal entre crescimento das exportações dos países em desenvolvimento, e o crescimento do desemprego nos países desenvolvidos ainda é objeto de controvérsias e, no mínimo, requer qualificação e a consideração de outras variáveis, como a inovação tecnológica. O risco de uma convergência de normas de trabalho em torno de padrões baixos, difundidos internacionalmente pelos fluxos de comércio e de investimento, parece não ter fundamentos sólidos, embora os impactos de tais fluxos não possam ser considerados neutros sobre a estrutura de emprego e a evolução de salários nos setores dos países da OCDE que sofrem competição das exportações dos países em desenvolvimento;
− em quarto lugar, a OIT tem sido capaz de ocupar o espaço institucional correspondente ao tratamento do tema, ganhando legitimidade para aumentar sua capacidade de enforcement e reduzindo – embora certamente não eliminando – as demandas pelo tratamento do tema na OMC. A própria Declaração Ministerial da OMC, emitida em Cingapura, em 1996, reconheceu na OIT o organismo habilitado para estabelecer e gerenciar as normas trabalhistas fundamentais;
− em quinto lugar, os temas da agenda de comércio e trabalho avançaram bastante não só na OIT, mas também em instrumentos e mecanismos propriamente comerciais, como os acordos regionais de liberalização e as políticas comerciais unilaterais. Além disso, esquemas não mandatórios, como códigos de conduta de empresas, acordos entre empregados e empregadores e labels sociais, desenvolveram-se intensamente nos últimos anos. A lógica adotada nestes acordos e mecanismos é positiva e não negativa: trata-se de promover normas universais limitadas em número e abrangência
– as normas fundamentais – e não de punir via comércio do desvio em relação a normas trabalhistas em geral. Em relação à diversidade de normas nacionais, acordos regionais tendem a privilegiar a idéia de cumprimento das normas nacionais, instituindo-se mecanismos para supervisionar tal cumprimento. Ou seja, embora bloqueada na OMC, a agenda social das negociações comerciais não ficou paralisada, mas avançou através de diversas vias e através de mecanismos públicos e privados de promoção; e
− em sexto lugar, a inclusão dos temas trabalhistas na agenda comercial multilateral continua a ser defendida pela Confederação Internacional dos Sindicatos Livres (CISL) e por diversas confederações sindicais nacionais, tanto de países desenvolvidos, quanto de países em desenvolvimento (Cling, 2001). Alguns analistas têm defendido a inclusão, ainda que em bases modestas, do tema na agenda da OMC como parte de uma estratégia de recuperação de credibilidade do multilateralismo comercial e de suas instituições.
O resultado líquido deste conjunto de tendências foi o avanço da agenda social ao longo de diversas trajetórias, convergindo os esforços multilaterais para a promoção de um conjunto consensualmente reconhecido de normas fundamentais do trabalho – cujo cumprimento, ou descumprimento, não impacta diretamente a competitividade das diferentes economias – e o distanciamento em relação à idéia de utilizar sanções comerciais para fazer convergir normas de trabalho diferentes internacionalmente. No plano das medidas unilaterais e regionais, outras trajetórias estão sendo exploradas, que associam mais diretamente do que no modelo multilateral comércio e normas trabalhistas, pelo simples fato de que trazem para o escopo de acordos ou de instrumentos de políticas comerciais critérios de discriminação ou disciplinas relativas ao cumprimento de normas trabalhistas.
b) comércio e normas ambientais
Sobretudo a partir dos anos setenta, os governos de diferentes países começaram a implementar políticas ambientais, recorrendo, para tanto, a instrumentos de comando e controle, mas também a mecanismos de incitação econômica. Gradualmente consolida-se, especialmente na OCDE, o princípio de imputar ao agente poluidor os custos da poluição (polluter pays principle).
À medida que se intensificam os esforços de internalização dos custos ambientais, cresce a preocupação com os impactos destes esforços sobre a competitividade das empresas que operam em um ambiente crescentemente restritivo, do ponto de vista das regras e normas ambientais, e, em decorrência, a pressão, nos países desenvolvidos, para que idêntico tratamento seja aplicado aos produtores estrangeiros. Já os governos dos países em desenvolvimento não se sentem minimamente comprometidos com as regras domésticas estabelecidas pelos países desenvolvidos, argumentando com a legitimidade de que economias diferentes tenham diversas preferências em matéria de gestão ambiental, ao menos enquanto os problemas ambientais possam ser caracterizados como eminentemente domésticos (Jacquet et alii, 1999).
Por razões já explicitadas, o tratamento internacional dos temas ambientais desfruta de reconhecida legitimidade econômica – já que o meio ambiente é, em termos rigorosamente econômicos, um bem público global – situação que não se reproduz na área trabalhista. Em parte como reflexo deste fato, as discussões multilaterais sobre as relações entre comércio e meio ambiente têm um histórico mais longo do que o das relações entre comércio e normas trabalhistas.
Há diversos tipos de problemas ambientais que podem gerar problemas comerciais entre diferentes países: em primeiro lugar, um dano ambiental pode ser gerado, em um determinado país, por importações; em segundo lugar, um dano físico transfronteiriço pode ser gerado, em um país, por um processo produtivo que ocorre em um país próximo ou vizinho; em terceiro lugar, externalidades difusas, em termos de origem ou de impactos, podem ser associadas a métodos e processos produtivos que ocorrem em diversos países; em quarto lugar, há os problemas que envolvem recursos globais (Uimonen, 1998).
No que se refere aos problemas globais de meio ambiente, prevaleceu a idéia de que uma coordenação internacional das políticas públicas, via acordos ambientais multilaterais, poderia ser a melhor maneira de lidar com as falhas de mercado. Vários destes acordos incluem instrumentos comerciais como meio de enforcement das regras acordadas, sendo o protocolo de Montreal – que proíbe o comércio de substâncias perigosas para a camada de ozônio – o exemplo mais conhecido.
No que se refere aos demais problemas, a questão essencial é como “obter um equilíbrio entre assegurar aos parceiros comerciais os direitos de acesso ao mercado e permitir flexibilidade (aos países) na escolha de políticas domésticas voltadas para corrigir falhas de mercado domésticas” (Uimonen, 1998). Daí decorreria a inevitabilidade de uma avaliação das trade-related environmental measures (TREMs), a ser levada a cabo pela OMC ou por instituições multilaterais não comerciais. Para Uimonen, como a OMC se envolveu crescentemente com a especificação de regras e procedimentos a serem cumpridos por padrões e regulações, de forma a garantir a consistência destes com a manutenção dos direitos de acesso a mercado, as pressões para o tratamento das TREMs na OMC são compreensíveis: tal tratamento poderia ser feito através de um acordo específico ou da introdução de esclarecimentos e precisões nos Acordos multilaterais de Barreiras Técnicas ao Comércio e de Normas Sanitárias e Fitossanitárias.
Assim como ocorre com o debate relacionado às normas trabalhistas, no caso das relações entre comércio e meio ambiente, há duas grandes questões que sintetizam a discussão sobre o tratamento das diversidades nacionais em um quadro de crescente interdependência das economias:
− existe correlação entre o nível das regulações ambientais nacionais e a competitividade das economias, determinando tal correlação impactos sobre os fluxos comerciais e de investimento?
− a competição internacional entre economias submetidas a distintos graus de rigor, no que se refere às normas ambientais, poderia levar a uma race to the bottom mundial, na área das regulações e dos padrões ambientais?
Do ponto de vista dos países em desenvolvimento, a preocupação central com o tratamento deste tema envolve o uso da preservação ambiental como rationale para justificar medidas protecionistas por parte dos países desenvolvidos – mesmo tipo de preocupação que orienta o posicionamento dos PEDs em relação ao tema comércio e normas trabalhistas. Não por acaso ambos os temas geraram uma forte polarização Norte-Sul nas negociações comerciais.
Os estudos que se voltaram para o exame destas questões não fornecem resultados conclusivos, mas – de maneira geral – rejeitam visões pessimistas, como a idéia de uma race to the bottom regulatória na área ambiental ou a hipótese de formação, via fluxos de IDE, de pollution heavens nos países em desenvolvimento. Argumentos sobre os efeitos contraproducentes das sanções comerciais sobre atividades poluidoras nos países em desenvolvimento são hoje geralmente aceitos, de forma semelhante ao que se constatou na discussão sobre comércio e normas trabalhistas.
Sem que a questão ambiental tenha oficialmente sido absorvida pela agenda multilateral de comércio, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC já foi ativado pelo menos três vezes para julgar disputas envolvendo diretamente questões ambientais relacionadas às disparidades de regulações ou de preferências societais nacionais. As referências destes julgamentos têm sido as regras gerais do GATT e seus Acordos de Normas Sanitárias e Fitossanitárias e de Barreiras Técnicas ao Comércio e seus resultados nem sempre apontam na mesma direção. Ou seja, “na ausência de regras claras, é através do contencioso comercial que a norma comercial vai sendo produzida” (Cohen, 1999; Sampson, 2000).
Nos últimos anos, três propostas apresentadas pelos países desenvolvidos enfrentaram fortes resistências dos países em desenvolvimento:
− a revisão ou reinterpretação do art. 20 do GATT para acomodar medidas comerciais adotadas em cumprimento dos acordos ambientais multilaterais, o que teria implicações para o uso de medidas unilaterais pelas partes contratantes. Entre as propostas apresentadas em relação a este aspecto, considera-se a possibilidade de estender a questões ambientais a exceção às regras do GATT já previstas no art. 20 ou de recorrer a mecanismos de waivers para acomodar medidas que, na ausência destes, seriam inconsistentes com as regras da OMC;
− a admissão de medidas comerciais baseadas em processos e métodos de produção não-relacionados aos produtos e que se justifiquem em termos ambientais. Como se sabe, o GATT diferencia nitidamente entre medidas que discriminam produtos e aquelas que discriminam processos e métodos de produção, rejeitando estas últimas; e
− maior latitude para o uso do princípio de precaução.
Para um grande número de países em desenvolvimento, o primeiro ponto não requer qualquer esclarecimento, pois apenas 10% dos acordos ambientais têm provisões relacionadas ao comércio e nunca houve qualquer controvérsia na OMC relacionada à aplicação destes acordos. Portanto, as questões relacionadas com a hierarquia e a compatibilidade entre tais acordos e as regras comerciais seriam secundárias. Os segundo e terceiro pontos levantam, entre os PEDs, fundadas preocupações relacionadas a seus impactos sobre as condições de acesso a mercado para seus problemas de exportação.
Alguns autores sugerem que os países em desenvolvimento teriam um interesse ofensivo nas negociação dos temas que relacionam comércio e meio ambiente (Figueres et alii, 2001). Segundo eles, por exemplo, a inclusão dos temas ambientais na agenda comercial poderia contribuir para o desmantelamento de esquemas de subsídios vigentes nos países desenvolvidos e que se aplicam a setores sensíveis, em termos ambientais, como agricultura, pesca, etc. Além disso, mecanismos de certificação ambiental multilateralmente concebidos permitiriam aos PEDs explorar mercados de produtos ecologicamente corretos nos países desenvolvidos. Outra razão é de ordem mais geral: para os PEDs seria preferível ter regras multilaterais nesta área do que assistir ao estabelecimento de normas através da jurisprudência das decisões do órgão de solução de controvérsias da OMC.
Apesar destes argumentos, a grande maioria dos governos de países em desenvolvimento resistem à idéia de trazer temas ambientais para a agenda da OMC. Na realidade, como se observou, a relação entre comércio e meio ambiente já vem sendo estabelecida pelos acordos multilaterais ambientais que contemplam sanções ou restrições comerciais e, na própria OMC, através de decisões do Órgão de Solução de Controvérsias.
Uma distinção básica que norteou os debates nesta área opõe entre restrições comerciais baseadas nas características do produto e aquelas que se apóiam em características dos processos e métodos produtivos. Enquanto as restrições do primeiro tipo são admitidas no GATT – na medida em que o consumo do produto no país importador poderia gerar impactos negativos sobre o meio ambiente deste país – as demais não o são. Um refinamento desta distinção requisitos de processo e métodos produtivos relacionados ao produto e não relacionados ao produto, entendendo-se que apenas estes últimos podem justificar-se, na medida em que características do produto que traduzem certas opções, em termos de processo produtivo, geram externalidades negativas no país em que tal produto é consumido (MMA/Br, 2001).
As discussões sobre comércio e meio ambiente aumentaram os riscos de que tais distinções se tornassem menos claras, tanto mais que diversas metodologias de avaliação de impacto ambiental se baseiam na análise do ciclo de vida do produto, que considera as diversas etapas de produção de um bem, assim como os métodos de produção nela envolvidos.
Além disso, as medidas comerciais de restrição autorizadas pelo acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias não excluem a referência a normas e padrões para processos e métodos de produção. A crescente relevância que adquire o princípio de precaução – que já consta do Acordo SPS – na política comercial da União Européia também tende a aumentar o peso da referência à forma de produção dos bens comercializados, isentando a ação comercial restritiva da obrigação da comprovação científica. Finalmente, mas não menos importante, uma das decisões do órgão de Solução de Controvérsias da OMC – o caso camarão-tartaruga – abriu uma brecha para a interpretação de que medidas restritivas baseadas na rejeição de determinados métodos e processos produtivos não relacionados a produtos possam ser aceitas à luz dos acordos do GATT.
Estes desenvolvimentos criaram crescente incerteza acerca da capacidade da OMC para manter a proibição de medidas baseadas em diferenças de métodos e processos produtivos (Uimonen, 1998). Portanto, a discussão sobre as relações entre comércio e meio ambiente diz, hoje, sobretudo, respeito ao estabelecimento de regras que definam as condições e as situações sob as quais medidas unilaterais que restrinjam o comércio e que sejam PPM-based (baseadas em métodos e processos produtivos) podem ser adotadas por um país sem infringir os princípios do GATT. Para Uimonen (1998), abrir espaço, na OMC, para este tipo de medidas “implicaria impor certas condições para o seu uso”, o que, por sua vez, exigiria considerar a natureza do objetivo que se persegue com a medida e a eficácia relativa do instrumento de política. Uma alternativa a esta proposta consistiria em negociar multilateralmente uma lista de externalidades ambientais específicas que poderiam ser objeto de ações comerciais unilaterais.
O estabelecimento de regras multilaterais é visto por diversos autores como um instrumento para disciplinar políticas unilaterais e regulações nacionais como potencial para gerar discriminação contra importações com base em requisitos de métodos e processos de produção, sejam estas regulações mandatórias ou voluntárias.
Principalmente ao longo dos anos noventa, desenvolveram-se diversos mecanismos não-mandatórios de certificação ambiental, como a rotulagem (eco-labels) e os sistemas de gestão a Série 14.000. Os sistemas de eco-labels são
“de caráter voluntário, quase sempre criados e administrados por órgãos estatais e presentes em quase todos os países da OCDE, que fornecem informações sobre os impactos ambientais de determinados produtos para incentivar os consumidores a exercerem suas preferências, privilegiando produtos de menor impacto ambiental” (MMA/Br, 2001).
De acordo com este estudo, “há uma crescente diversidade de programas de rotulagem ambiental, que se concentram tanto em algumas poucas questões-chave (eficiência energética, por exemplo), quanto nos impactos ambientais mais amplos, por meio de análises de ciclo de vida dos produtos” .
Um estudo que analisou dois sistemas não-mandatórios de certificação ambiental (voluntary market upgrading schemes) avaliou que, embora o atendimento a estes padrões seja voluntário – em contraste com as regulamentações mandatórias – eles podem, sob condições específicas, afetar o acesso das exportações, especialmente dos países em desenvolvimento, aos mercados dos países desenvolvidos (Motta Veiga, 2000). Sinteticamente, se os produtos que são objeto destas iniciativas são comercializáveis internacionalmente e se os critérios de concessão estão associados à produção e ao processo de produção, o selo ambiental pode se tornar uma barreira ao acesso de produtores estrangeiros ao mercado doméstico em questão (MMA/Br, 2001).
Ora, deste ponto de vista, os riscos de discriminação crescem em iniciativas unilaterais
– como os eco-labels, em contraste com os mecanismos multilaterais, como os definidos pela
ISO e naquelas que levam em consideração os processos produtivos e os ciclos de vida dos produtos – mais uma vez os eco-labels. A definição de critérios e parâmetros de avaliação ambiental dos produtos e a própria seleção de produtos a serem incluídos nos sistemas de certificação estão sujeitos às pressões dos interesses que competem com importações, nos países da OCDE. Acrescente-se a isto o fato de que a proliferação de sistemas nacionais de certificação aumenta, para os exportadores, os custos de atendimento aos diferentes requisitos nele estabelecidos e torna-se claro que o fato de ser uma iniciativa voluntária não elimina – longe disto – o potencial discriminatório de medidas ambientais unilaterais .
Por outro lado, no entanto, não resta dúvida de que o processo de difusão destes mecanismos voluntários, bem como o aumento no rigor das legislações ambientais nos países da OCDE, não podem ser atribuídos principalmente a interesses protecionistas, mas remetem a uma clara prioridade societal concedida à proteção e preservação ambiental, bem como aos temas de saúde e segurança humana, animal e vegetal. Este processo desfruta, portanto, de sólida legitimidade política nos países desenvolvidos e não há sinais de que tal situação venha a ser substancialmente alterada nos próximos anos.
4. A questão no Brasil
O Brasil é internacionalmente identificado como um dos mais ardorosos críticos da idéia de trazer temas ambientais e trabalhistas para a agenda comercial. Na visão oficial brasileira, compartilhada pela imensa maioria de países em desenvolvimento, o tratamento, através de medidas comerciais, de temas ambientais e trabalhistas na OMC poderia ser usado para sancionar uma nova forma de protecionismo dos países desenvolvidos.
Nesta ótica, o País é razoavelmente vulnerável a ações comerciais externas, tanto na área ambiental, quanto na trabalhista. Na primeira, pelo menos dois estudos (Motta Veiga et alii, 1994; Young et alii, 2001) identificaram, no padrão de especialização das exportações brasileiras, uma elevada intensidade de produtos intensivos em recursos naturais e potencialmente poluidores. Na área trabalhista, o Brasil é internacionalmente identificado como um país que utiliza mão-de-obra infantil, inclusive em atividades direta ou indiretamente relacionadas a setores exportadores: o País foi inclusive citado pelo Presidente dos Estados Unidos, em Seattle, como um dos que utilizavam trabalho infantil.
4.1. Normas trabalhistas
O Brasil havia ratificado, antes do final de 1995, cinco das sete convenções fundamentais da OIT vigentes em junho de 2000: apenas não haviam sido ratificadas as convenções referentes à liberdade sindical (Conv. 87) – que se choca com dispositivo constitucional – e à idade mínima (Conv. 138). Além disso, o Brasil ratificou aquela que se tornaria a oitava convenção fundamental da OIT – a Convenção 182, que entrou em vigor em novembro de 2000 – sobre as piores formas de trabalho infantil.
O Brasil foi objeto, na OIT, de observações relativas às Convenções 29 e 105 (trabalho forçado), tendo sido também formuladas, ao abrigo dos procedimentos especiais previstos pela OIT, queixas contra violações destas convenções pelo País. Segundo estudo da OCDE (2000), “no Brasil, o governo levou a sério os comentários da OIT e estabeleceu novos procedimentos de controle e outras medidas a fim de localizar, proibir e punir as violações dos princípios relativos ao trabalho forçado”.
O Brasil também é citado, nos documentos de supervisão da OIT, como país que restringe a liberdade sindical, em função do princípio constitucional da unidade sindical, que, na prática, vem sendo gradualmente abandonado.
No entanto, a principal vulnerabilidade brasileira, inclusive à luz das convenções da
OIT, envolve a utilização de trabalho infantil (Matusita e Roselino, 2001). Neste caso, bem como nas demais áreas de aplicação da legislação doméstica de proteção social, o problema é, antes, de falhas sérias e persistentes na implementação das normas do que de carência de regras e de legislação (Pastore, 2001).
Cerca de 6% da força de trabalho total do país era composta, em 1998, de crianças entre cinco e quinze anos de idade, 47% deste contingente situando-se na faixa de catorze a quinze anos. Atividades agrícolas em propriedades familiares e atividades de serviços urbanos de baixa qualificação respondem por grande parte da utilização da mão-de-obra infantil no Brasil, mas a presença do trabalho infantil em atividades que insumam setores exportadores ou em atividades coordenadas por empresas exportadoras é reconhecida. Os setores produtores de cana de açúcar, de laranjas, de carvão vegetal, de fumo e de calçados – esta última, apenas em pequenas empresas que terceirizam, a domicílio, parte de suas atividades de produção – são alguns dos mais freqüentemente citados como utilizadores de mão-de-obra infantil. Em alguns casos, como o fumo e a laranja, a ocorrência do trabalho infantil se dá como parte de atividades familiares em pequenas unidades de produção agrícola.
De acordo com Pastore (2001), as pesquisas realizadas entre trabalhadores infantis no Brasil mostram que “seu trabalho é basicamente um resultado de decisões familiares, especialmente por razões relacionadas a renda (...) Diversos estudos demonstraram que o trabalho infantil está inversamente relacionado à renda familiar e à freqüência escolar”.
Nos últimos anos, a partir da experiência bem-sucedida levada a cabo pelo governo do Distrito Federal, várias iniciativas estão sendo implementadas no sentido de complementar a renda das famílias de crianças vulneráveis de forma a evitar que estas trabalhem para suprir parte das necessidades familiares. O programa bolsa-escola difundiu-se a partir de 1996, tendo sido estendido ao conjunto do País através da Lei no 10.219, de abril de 2001, que se apóia em um modelo descentralizado de implementação e supervisão, de que participam diretamente as municipalidades.
Por outro lado, o tema das normas trabalhistas em sua relação com o comércio já entrou na agenda de diversos atores não-governamentais no Brasil. Há, por exemplo, diversas empresas e associações empresariais que, por força de suas relações com o mercado internacional, já lidam com as questões de trabalho infantil. É o caso dos exportadores de suco de laranja, produto em que o Brasil é o maior exportador mundial. A partir de meados dos anos noventa, a discussão sobre trabalho infantil e sobre o uso de eventuais medidas comerciais para sancionar países que recorrem a este tipo de trabalho começou a preocupar o setor exportador de suco de laranja, produto em que o País ocupa o primeiro lugar no ranking de exportadores. Algumas grandes empresas consumidoras do produto brasileiro nos Estados Unidos solicitaram à ABECITRUS – associação empresarial que representa os interesses do setor – que organizasse visita de seus executivos a zonas de produção, inclusive onde haja trabalho infantil.
Além de fazer um amplo trabalho de divulgação, no Brasil e no exterior, do fato de seus membros não serem usuários de trabalho infantil, a ABECITRUS firmou com a OIT e a UNICEF compromisso público no sentido de recomendar a seus associados e a todos os participantes da cadeia produtiva a eliminação de qualquer tipo de trabalho infantil. Em todos os contratos firmados entre as associadas da ABECITRUS e os produtores de laranja, passou-se a prever que o uso de trabalho infantil na colheita da laranja legitima a ruptura do contrato por parte da indústria. Além disto, as empresas do setor investiram recursos próprios, nas zonas produtoras, para montar escolas complementares, que funcionam durante todo o ano. Na visão de representantes do setor, estas medidas são fundamentais, mas não impedem que um produtor de laranja utilize trabalho infantil e venda sua produção para o mercado doméstico, o que contamina a imagem do setor.
Do lado das confederações sindicais, o tema também tem merecido consideração.
Assim, por exemplo, em 1997, foi criado o Observatório Social, instituição ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), com o objetivo de observar os comportamentos e práticas trabalhistas e ambientais de grandes empresas nacionais e transnacionais no Brasil. As convenções fundamentais da OIT mais as convenções relativas à saúde e segurança ocupacional e mais os temas ambientais tornaram-se a referência essencial do trabalho do observatório e a perspectiva estratégica do seu trabalho é inserir-se no esforço de globalização dos direitos.
O trabalho do observatório é financeiramente apoiado pela OIT e por confederações sindicais dos países desenvolvidos, como as dos Estados Unidos, Holanda e Alemanha.
Diversas pesquisas já foram realizadas junto a empresas e grupos nacionais e transnacionais, algumas com a cooperação das firmas, outras sem qualquer tipo de informação ou colaboração prestada pela empresa objeto da pesquisa. Na visão de representantes da instituição, os resultados revelados pelas pesquisas geraram, em alguns casos, revisões nas políticas de recursos humanos das empresas, viabilizadas a partir de pressões das matrizes – nos casos das transnacionais.
4.2. Normas ambientais
A pauta de exportação brasileira é, desde os anos oitenta, especializada em setores e produtos intensivos em recursos naturais e em emissão de poluentes. Em princípio, isto torna a competitividade internacional da economia brasileira particularmente vulnerável ao estabelecimento de padrões ambientais elevados que possam se traduzir em elevação dos custos de produção praticados. Estudo recente (Young et alii, 2001) avaliou os impactos potenciais dos gastos com remoção de poluentes sobre os custos das exportações brasileiras, concluindo que agregadamente a elevação de custos não seria significativa (inferior a 3%).
No entanto, para determinados setores exportadores, a elevação de custos poderia determinar perdas significativas nos volumes de exportação: “os casos mais importantes são a fabricação de calçados, a metalurgia de não-ferrosos e outros metalúrgicos”. Além disso, a concentração das exportações brasileiras de produtos poluentes em mercados ambientalmente exigentes poderia maximizar as perdas decorrentes da introdução de padrões mais rigorosos.
Motta Veiga et alii (1994) concluíram que as exportações brasileiras tendem a ser vulneráveis a regras ambientais por três razões:
− Além da competitividade das exportações relacionar-se, em boa medida, com o uso intensivo de energia e recursos naturais, muitos requisitos ambientais externos não levam em consideração as dotações domésticas de recursos ambientais – baseando-se em critérios e parâmetros típicos do país importador – podendo impor pesados ônus à competitividade das exportações;
− Parcela expressiva das exportações intensivas em recursos naturais e energia é direcionada a mercados exigentes, em termos ambientais; e
− Parte significativa das exportações brasileiras está concentrada em produtos homogêneos, de baixo valor agregado, que competem, nos mercados externos, com base exclusivamente em preço. Neste caso, há severos limites às possibilidades de diferenciação de produto e, portanto, de recuperação, via estratégias de diferenciação, dos custos incorridos pelas empresas no atendimento aos requisitos ambientais.
No que diz respeito aos impactos potenciais das normas e regulações sobre as exportações brasileiras, concluiu-se que requisitos ambientais externos relacionados a insumos e a processos e métodos de produção (PPM) representam uma ameaça potencial maior do que regulações aplicadas a produtos, ainda quando as normas de PPM não sejam mandatórias (caso do eco-labelling) .
Os estudos acima citados constataram a existência de padrões significativamente diferenciados de resposta das empresas brasileiras aos novos requisitos ambientais, sejam estes veiculados por normas e regulações dos países desenvolvidos, sejam eles difundidos por exigências contratuais dos clientes (importadores) de produtos brasileiros. Assim, por exemplo, empresas com forte coeficiente exportador atribuem maior importância à questão ambiental e estão mais abertas à introdução de inovações nesta área, além de “tenderem a assumir postura mais ativa no controle de emissões e outras formas de degradação do meio” (Young et alii, 2001).
No caso do Brasil, os impactos sobre a competitividade das exportações tendem a ser bastante heterogêneos de acordo com as características das firmas e do padrão de competição vigente nos mercados internacionais: há, portanto, marcada heterogeneidade inter e intra-setorial no que se refere a tais impactos. De acordo com Motta Veiga et alii (1994), as variáveis que afetam a capacidade das firmas brasileiras para se adequar a regulações ambientais externas são:
− tamanho das empresas e o peso das exportações na produção total (empresas pequenas têm maiores dificuldades para adaptar-se);
− o destino geográfico das exportações das empresas; e
− a estrutura corporativa: quanto mais verticalizada e integrada a empresa, maior a sua capacidade para controlar as variáveis ambientais ao longo do processo de produção.
Em conseqüência, os mais dinâmicos setores exportadores, embora intensivos em poluição, também registram altos níveis de redução da carga poluidora, sugerindo uma associação entre participação nos mercados internacionais e aperfeiçoamento da gestão ambiental.
5. Conclusões
5.1. Conclusões relativas à evolução, passada e futura, do tratamento dos temas nas negociações internacionais
A história da evolução no tratamento das relações entre comércio e normas ambientais e trabalhistas sugere que uma questão muito relevante, quando se considera a inclusão de novos temas especialmente temas domésticos – nas agendas comerciais, envolve o amadurecimento do debate (Sutherland et alii, 2001), que acaba por excluir as propostas maximalistas, agregar elementos técnico-econômicos de avaliação, isola a discussão dos temas das urgências e preocupações conjunturais ou muito datadas e força a circunscrição do objeto do debate em torno de aspectos que possam receber amplo apoio da comunidade internacional. Nos dois casos aqui considerados, tal processo de amadurecimento ocorreu, sintetizando-se, na experiência do tratamento das normas trabalhistas, na eleição de certas normas fundamentais – poupando aquelas que estão na origem direta das vantagens comparativas dos países – e, no caso do tratamento das normas ambientais, na distinção entre normas relacionadas a produtos e a PPM e, num segundo momento, entre NRP-PPM e RP-PPM. Obviamente, nada disso impede que os temas sejam capturados, nas negociações internacionais, por interesses protecionistas, mas é indiscutível que as condições da captura tornam-se, no início do novo século, muito mais árdua para estes interesses.
Em que pese estas evoluções, a polarização Norte-Sul ainda é intensa, nas duas áreas temáticas, e parece claro que os países desenvolvidos continuarão a pressionar para que ambos os temas sejam incluídos na agenda comercial. No que diz respeito ao tema trabalhista, a percepção crescente é que o modelo em consolidação no plano multilateral é apoiado pela União Européia, que defende o fortalecimento de seus mecanismos de enforcement, ao passo que os Estados Unidos ainda pressionam para incluir o tema nas negociações comerciais multilaterais e regionais. Na área ambiental, em que a questão já se encontra colocada nos acordos ambientais multilaterais e já está na OMC, mas não é objeto das negociações comerciais, tanto a União Européia quanto os Estados Unidos parecem continuar a pressionar para que o tema seja incluído nas agendas de negociação especificamente comerciais.
É interessante observar que a polarização Norte-Sul é um fenômeno que se manifesta essencialmente no nível dos governos. De fato, ao lado desta polarização, registra-se, na história das relações entre comércio e normas trabalhistas e ambientais, a formação de coalizões Norte-Sul envolvendo atores não-governamentais. Simplisticamente, poder-se-ia dizer que há uma coalizão Norte-Sul pró-tratamento comercial dos temas ambientais e trabalhistas – coalizão esta que se apóia em confederações sindicais e em ONGs – e uma outra coalizão Norte-Sul, contrária a este tipo de tratamento, composta fundamentalmente de entidades empresariais.
Apesar da forte polarização intergovernamental Norte-Sul que marca as discussões sobre as relações entre comércio e normas trabalhistas, um consenso multilateral parece mais próximo de se consolidar nesta área do que na área, teoricamente menos polêmica, das relações entre normas ambientais e comércio. Mesmo o paradigma de tratamento do tema trabalhista que concorre com o que emerge nas instâncias multilaterais – o paradigma NAFTA e suas variações – evoluiu ao longo de uma trajetória que reduz os riscos de captura pelos interesses protecionistas, de forma que não se deve excluir a hipótese de uma convergência entre os dois paradigmas, no futuro, em torno de um eixo que inclua a busca de consistência das legislações nacionais (referidas nos acordos regionais) com as normas fundamentais de trabalho e a adoção de sistema de multas pecuniárias (e não sanções) que alimentariam fundos voltados para aumentar a capacidade de enforcement das legislações nacionais .
Esta constatação traduz o fato de que o tratamento dos temas ambientais e trabalhistas têm dinâmicas distintas e economias políticas específicas, dado que deve ser levado em conta nas estratégias negociadoras dos diferentes países e, por suposto, do Brasil. Ignorar as diferenças entre os dois temas determinará equívocos na estratégia negociadora.
Por outro lado, os temas das relações entre comércio e normas trabalhistas e ambientais também colocam em questão alternativas de desenho institucional do sistema de governance da globalização e, em especial, a questão do papel da OMC neste sistema e de suas relações com outras instituições. Há diferentes propostas concorrentes em relação a este tema, mas a discussão de tais propostas ultrapassa amplamente o escopo do presente trabalho .
Em relação a tais questões, vale a pena registrar somente que os dois temas são vetores privilegiados de difusão de novas regulações privadas do comércio, que se adicionam às regulamentações públicas, através de sistemas de etiquetagem, de códigos de conduta empresariais e/ou negociados setorialmente entre patrões e empregados. Colocam, portanto, em debate, o papel das regulações públicas e privadas na emergência de um sistema internacional de regulação social – ou de governance da globalização – que ainda parece distante.
5.2. Conclusões relativas à posição e à estratégia negociadora do Brasil
A evolução dos debates sobre comércio e normas trabalhistas e ambientais gerou, como se comentou, um amadurecimento técnico e político do tratamento do tema, tanto em instâncias multilaterais quanto no plano das iniciativas regionais e unilaterais. A multiplicação de iniciativas mandatórias e não-mandatórias nas várias instâncias de regulação do comércio internacional gerou um ambiente de experimentação institucional e regulatória que também contribuiu para impedir que um determinado modelo de gestão do tema dominasse precocemente a cena e se consolidasse por pressão de poucos países desenvolvidos.
As evoluções ocorridas nas duas áreas são compatíveis com a posição negociadora oficial do Brasil, mesmo se isto aparece mais claramente na área de normas trabalhistas do que na de padrões ambientais. De qualquer maneira, como se observou, para efeito de estratégia de negociação, há que considerar que os dois temas são distintos, envolvem interesses diferenciados e seguem trajetórias de evolução bastante específicas.
Ambos os temas contêm riscos para os países em desenvolvimento, embora seja inegável que tais riscos se têm reduzido ao longo dos últimos anos, graças à evolução observada . No caso das relações entre comércio e meio ambiente, o quadro de incertezas é, no curto prazo, maior: o tema entrou, pelas bordas, no radar da OMC, está sendo tratado à luz de acordos que não foram desenhados para gerenciá-lo e não há regras específicas para limitar o uso de medidas PPM-based.
Para efeito de formação da posição negociadora do País, é importante lembrar que ambos os temas interessam a diferentes atores sociais no Brasil. Estes têm, por força de seus vínculos econômicos com o mercado internacional – caso dos exportadores – ou de suas relações com congêneres em outros países – ONGs e sindicatos de trabalhadores –, atuação destacada nos debates sobre os temas e suas posições não necessariamente se alinham automaticamente com a governamental. Esta observação é tanto mais importante quando se sabe que os dois temas são hoje objeto de negociação na agenda multilateral, mas também no âmbito da ALCA.
É também fundamental não esquecer que a futura entrada da China Popular na OMC deverá ter um impacto não-desprezível sobre a evolução futura do tratamento que se concederá a estes temas na agenda comercial multilateral. A China é o principal alvo das denúncias de violações de direitos trabalhistas básicos e de padrões ambientais mínimos que se originam nos países desenvolvidos e, ao mesmo tempo, é um importante player do sistema de comércio mundial, característica que outros países violadores de normas e padrões não têm.
A QUEM INTERESSA A ALCA
Murilo Celso de Campos Pinheiro
Com o objetivo de eliminar as barreiras alfandegárias entre os trinta e quatro países da América, promover a integração e se transformar no maior bloco comercial do mundo, com prazo para ser implantado até 2005, a proposta de criação da ALCA continua com enormes indefinições, tanto quanto os números que se apresentam:
− PIB de dez trilhões de dólares;
− População de setecentos e oitenta e quatro milhões de pessoas.
Inicialmente poderíamos nos perguntar: A quem interessa a ALCA?
Muito embora esteja sendo oferecida na bela embalagem da modernidade e do mundo globalizado, claro está que a ALCA trata-se de um ótimo negócio para os Estados Unidos e uma grande ameaça ao povo latino-americano, da forma como se apresenta.
Apesar do sigilo com que o acordo foi tratado nos últimos anos, por aquilo que se conhece da minuta assinada em Québec em abril último, é possível prever que um acordo dessa natureza significará grave piora das condições de vida nos países em desenvolvimento no Continente.
A ALCA atenta contra a soberania das nações de economias mais frágeis ao impor total falta de regras que protejam seus cidadãos, suas indústrias e possibilitem o desenvolvimento social e tecnológico desses países e, ao mesmo tempo, liberar completamente o fluxo financeiro e assegurar a propriedade intelectual. Nessa imensa armadilha, observam-se cinco grandes problemas, já divulgados, se não pela dita grande imprensa, ao menos pelos meios de comunicação alternativos. Senão, vejamos:
1. Mercado de trabalho flexibilizado e precarizado: estabeleceu-se regras flexíveis no mercado de trabalho, possibilitando a manipulação e controle dos custos trabalhistas de acordo com as necessidades momentâneas de mercado;
2. Mercado financeiro desregulado: permitiu-se a livre vazão dos fluxos financeiros por meandros financeiros internos, a fim de capturar pequenas correntes de capital para engrossar os caudalosos fluxos especulativos das megainstituições financeiras;
3. Livre-concorrência e livre-monopólio: liberaram os mercados, ainda que residuais, através das eliminações das barreiras comerciais e livre concorrências nas compras governamentais, de forma a premiar os atores mais competitivos;
4. Controle das patentes e royalties: prescreveu-se uma fiscalização rigorosa sobre patentes e royalties, a fim de preservar o avanço tecnológico e a qualidade dos produtos e serviços;
5. Investimentos livres de controles nacionais: determinou-se que é plena a liberdade das redes de investir, desinvestir, comprar, vender, remeter, transferir sem qualquer empecilho ou mecanismo regulador de origem nacional.
Para quem viveu os últimos vinte anos sob as regras do famigerado Consenso de Washington, piorado pela escalada neoliberal dos últimos sete anos, não é possível ter ilusões sobre tal proposta. O povo brasileiro tem amargado, nos últimos anos, um modelo econômico excludente, que piorou todos os índices de medição das condições de vida, gerou arrocho salarial e agravou o desemprego, desmantelou a indústria nacional, vendeu empresas públicas a preços irrisórios e colocou em risco a prestação de serviços essenciais. A crise energética que atravessamos neste momento é o exemplo mais claro dessa situação.
Se a globalização é um fato, a inexistência de regras para o convívio civilizado no planeta não o é. A ALCA não é uma fatalidade e é preciso que nos organizemos e nos mobilizemos contra a proposta tal como está.
Negociar alterações de detalhes irrelevantes de nada servirá se, ao final, a Nação for obrigada a aceitar esse despautério.
1. Contra a uniformização da legislação trabalhista e ambiental
Nossa legislação precisa de maior proteção para o trabalhador manter o poder normativo da justiça do trabalho, manter a unicidade sindical, aumentando a autonomia sindical e as garantias contra demissões imotivadas. Em qualquer acordo que venha a existir, a regra básica é a abertura do fechado mercado americano em troca do já aberto mercado brasileiro.
2. Legislação profissional e de serviços
Os serviços de engenharia no Brasil têm uma das mais modernas, abertas e inteligentes legislações do mundo. O princípio é simples. Para trabalhar no Brasil, é preciso que o profissional seja habilitado junto aos conselhos regionais. É a nossa garantia da qualidade dos serviços de engenharia.
E essa legislação deve ser mantida e fortalecida em qualquer contexto de ação internacional. Isso garante a reciprocidade e impede que leigos atravessem o atlântico e se convertam em engenheiros quando chegam ao Brasil.
O Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo defende a construção de um modelo de desenvolvimento econômico, social, científico, tecnológico e cultural alternativo. Ciência, tecnologia e inovação no mundo contemporâneo são sinônimos de poder.
Os engenheiros e profissionais da área tecnológica que perpassam todas as cadeias produtivas do País são decisivos nesta sociedade do conhecimento para modernizar e democratizar o sistema produtivo no Brasil e na América Latina.
O desafio atual é construir uma sociedade instruída e empreendedora, mostrando que é possível e exeqüível eliminar a miséria e a pobreza.
Ampliar as fronteiras de trabalho e emprego para todos os brasileiros significa mais infra-estrutura, água, saneamento, moradias, alimentos, energia, transportes, saúde e meio ambiente saudável, ou seja engenharia pública.
O SEESP defende ainda que o respeito e a implantação do capítulo constitucional dos “Direitos e deveres individuais e coletivos” e dos “Direitos sociais”, em particular o art. 7o (direitos dos trabalhadores), são pressupostos decisivos para a construção de uma nação moderna e justa. Incluir os excluídos é responsabilidade cotidiana de todos.
Nada disso será possível, se o País for signatário de um acordo subserviente e absolutamente desigual como a ALCA.
Na Carta de São Pedro, documento síntese do Primeiro Congresso Estadual do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo, “Trabalho-Integração-Compromisso”, realizado no município paulista de São Pedro, em agosto último, defendemos, em relação à ALCA, a defesa dos interesses nacionais dentro do processo dinâmico da globalização.
Para que isso seja possível, propomos intensa discussão pela sociedade civil organizada e pelo Congresso Nacional. Apoiamos a proposta de um plebiscito, tese também defendida pelas Centrais Sindicais no âmbito do Cone Sul.
Ressaltamos ainda o vital respeito aos princípios fundamentais da Constituição Federal, que defende que o Brasil busque a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Para finalizar, gostaríamos de sugerir, em nome do SEESP, mecanismos de autofinanciamento para o desenvolvimento econômico e social de todos os países-membros do bloco. A justificativa se funda no fato da existência de profundas diferenças culturais e de padrões sociais e de geração de capitais.
A idéia se refere à formação de três fundos com recursos provenientes dos resultados positivos auferidos pelos países-membros do bloco. Os recursos acumulados deverão custear investimentos obrigatórios, a saber:
− Fundo social: educação, habitação e combate à miséria;
− Fundo de meio ambiente: preservação e recuperação;
− Fundo de pesquisa tecnologia: pesquisas e plantas industriais.
Por fim, agradecemos ao Deputado Aécio Neves, Presidente do Congresso Nacional, e ao Deputado Marcos Cintra pelo convite e aproveitamos para colocar à disposição dessa Casa de Leis a disposição dos engenheiros do Estado de São Paulo de continuar debatendo questões de interesses nacional, por intermédio do SEESP, sindicato, este, que representa atualmente cento e setenta mil engenheiros em todo o Estado de São Paulo.
Murilo Celso de Campos Pinheiro
3. Carta de São Pedro
Os engenheiros reunidos na cidade de São Pedro, nos dias 31 de agosto, 1o e 2 de setembro de 2001, por ocasião do Primeiro Congresso Estadual “Trabalho, Integração, Compromisso”, dirigentes e diretores do SEESP (Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo), vindos de vinte e seis regiões do estado, manifestam seu sentimento claro e inequívoco de que se esgotou o tipo de modelo econômico e social excludente e dependente que sacrifica a Nação. A sua manutenção tem causado desemprego, desnacionalização, aguçamento da dependência externa, concentração de renda e desesperança para o povo. A corrupção campeia e emerge como um dos efeitos da deterioração política e o fim de um ciclo.
Temos consciência de que devemos construir, com todos os setores objetivamente interessados do País, um modelo de desenvolvimento econômico, social, científico, tecnológico e cultural alternativo. O momento é agora. Discutir, articular, unir todas as forças produtivistas do País. Queremos auxiliar a constituir novas alianças no mundo do trabalho, da empresa, da cultura e da política, que darão um novo impulso e sustentação às mudanças.
Ciência, tecnologia e inovação no mundo contemporâneo são sinônimos de poder. Os engenheiros e profissionais da área tecnológica que perpassam todas as cadeias produtivas do País são decisivos nesta sociedade do conhecimento para modernizar e democratizar o sistema produtivo no Brasil. O desafio atual é construir uma sociedade instruída e empreendedora, mostrando que é possível e exeqüível eliminar a miséria e a pobreza. Ampliar as fronteiras de trabalho e emprego para todos os brasileiros significa mais infra-estrutura, casas, água, esgoto, alimentos, energia, transportes, saúde e meio ambiente saudável. Significa, portanto, mais engenharia e menos juros.
Numa sociedade e economia cada vez mais organizadas em redes de informação e comunicação, a atualização, qualificação e requalificação profissionais são decisivas para combater o analfabetismo tecnológico. O acesso ao saber transforma-se na pedra angular da modernização produtiva e social.
Chamamos atenção para o fato de que o apagão e o descaso com um planejamento estratégico refletem uma visão equivocada e perversa do papel do Estado. As privatizações da década de noventa em núcleos da infra-estrutura econômica serviram, em geral, para desnacionalizar, colocar recursos de todo o povo a serviço de multinacionais e aumentar os preços de serviços essenciais. Isso fica cada vez mais claro para a opinião pública. A água, bem essencial à vida, deve ser tratada como uma riqueza de toda a Nação. Somos contrários à privatização do saneamento básico e da energia.
O respeito e a implantação do capítulo constitucional dos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” e dos “Direitos Sociais”, em particular o art. 7o (direitos dos trabalhadores), são pressupostos decisivos para a construção de uma nação moderna e justa. Incluir os excluídos é responsabilidade cotidiana de todos. O movimento sindical, o movimento social mais organizado do País, é parte integrante das soluções democráticas. Portanto, repelimos a ingerência governamental e empresarial na organização sindical e na deformação das fontes de custeio do movimento sindical.
O movimento dos engenheiros, composto de um conjunto expressivo de entidades representativas, associações, conselhos e sindicatos, tem um papel decisivo nesta batalha da engenharia e tecnologia nacionais. Ela necessita para tanto de cada vez mais unidade de ação e uma postura articulada com os outros movimentos e setores da sociedade. É aí que residirá sua força de influência e transformação da realidade. Em particular, a unidade dos sindicatos de engenheiros do País, a ser conquistada, interessa de perto ao movimento sindical.
Defendemos em relação à ALCA a defesa dos interesses nacionais dentro do processo dinâmico da globalização. Queremos impulsionar uma intensa discussão na sociedade e no
Congresso Nacional e apoiamos a proposta de um plebiscito sobre a questão, defendida pelas
Centrais Sindicais, no âmbito do Cone Sul. Ressaltamos o vital respeito aos Princípios Fundamentais da Constituição Federal, que defende que o Brasil busque a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
A nova direção do SEESP, que toma posse dentro do movimento de renovação e democratização dos últimos vinte e um anos, que transformou a entidade numa das mais fortes e respeitadas do País, tem um compromisso claro com os novos desafios da cidadania. Gestar e desenvolver as inteligências coletivas integrantes da nossa categoria e da engenharia, enraizar nossa entidade no sistema produtivo, recriar as relações múltiplas entre os associados e o sindicato são pressupostos básicos para as mudanças que defendemos. Um sindicato de todos e de cada um, a serviço de um Brasil democrático, soberano, empreendedor e justo.
São Pedro, 2 de setembro de 2001.