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Em 1997, os dezesseis produtos listados acima representaram 49,3% das exportações para aquele país. Os principais produtos agrícolas representaram 11,2% do total exportado, sendo que o café (com US$ 423,3 milhões) foi o que teve maior participação. Individualmente, o item mais importante da pauta foi o calçados com US$ 1,05 bilhões (11,3%) seguido de semifaturados de ferro e aços. Em 1998, a participação do café, suco de laranja, madeira, fumo e açúcar subiram para 11,5%. A partir desse ano, entrou em queda livre, chegando a 9,8% em 1999 e a apenas 5,9% em 2000. Estima-se que as exportações agrícolas brasileiras representem pouco mais de 1% das importações americanas.
Em termos de importação de produtos americanos, a pauta de importações é extremamente diversificada e composta quase que inteiramente de produtos industrializados. A lista é dominada por produtos com tecnologia avançada, nas áreas de informática, telecomunicações, química fina e aeronáutica (como aviões de grande porte e suas peças de reposição) com demanda inelástica. Ou seja, são produtos que o Brasil tem que importar independente de haver integração ou não. Nos demais produtos industriais de consumo, já existe uma concorrência externa muito grande por parte de outros países e a estrutura tarifária já reflete os acordos da OMC. Portanto, o impacto da ALCA no setor industrial brasileiro tende a ser menor do que muitos imaginam.
Na agricultura, três aspectos importantes devem ser considerados:
a) presença maior dos Estados Unidos nos mercados agrícolas do Hemisfério;
b) aumento na escala de aplicação das Medidas de Apoio Interno (MAI) nos Estados Unidos; e
c) eliminação das restrições a produtos agrícolas brasileiros.
Do ponto de vista do Brasil, o primeiro aspecto envolveria basicamente a soja, o trigo, o algodão, lácteos e o milho. No caso da soja, os brasileiros não têm motivo para se preocupar com a competição da soja americana no continente, mas em outros mercados consumidores, o que independe da ALCA. Vários estudos mostram que os custos de produção da soja no Brasil (base Mato Grosso) são até 60% inferiores aos dos Estados Unidos (base Iowa). Manter essa capacidade competitiva na distribuição é o grande desafio para o País, pois, apesar de todas as melhorias na área de infra-estrutura obtidas com a privatização das ferrovias e dos portos e a operacionalização de alguns corredores multimodais, como o do Madeira e de São Luís, os custos de transporte e portuários ainda são mais de 50% superiores aos dos Estados Unidos. Como será visto adiante, as maiores preocupações estão concentradas não nos efeitos da integração em si, mas nos possíveis impactos do crescimento das MAI nos Estados Unidos, na capacidade competitiva dos produtores brasileiros.
No caso do algodão, dos lácteos e do milho, a situação é diferente, porque, depois de vários anos, existe a possibilidade concreta de o Brasil exportar em grande escala esses produtos no curto prazo, e uma abertura maior para os americanos poderia ameaçar ou retardar essa possibilidade. De qualquer forma, o objetivo de alcançar a auto-suficiência nesses produtos foi alcançada e sua manutenção vai depender, como na soja, das melhorias na infra-estrutura e das medidas de apoio do governo. No caso do trigo, a maior preocupação deve ser dos argentinos, pois o advento da ALCA pode abrir mais espaço para o trigo americano no Brasil.
No segundo aspecto, existem alguns fatos relevantes. Embora com previsão de reduzi-los, a Lei Agrícola de 1996 (Fair act) trouxe mais recursos federais para os produtores porque, antes da Lei, o agribusiness mundial vivia uma conjuntura favorável, que dispensava a atuação do governo americano. Essa lei trouxe uma ampla desregulamentação da agricultura, dentro de um cenário muito otimista para o futuro. Ao invés de reduzir os recursos, o que se observou foi um aumento significativo nas transferências governamentais para os agricultores, em função dos seguintes fatos:
a) o preço mínimo nominal (loan rate), tem ficado muito acima dos preços de mercado, provocando grandes pagamentos através dos marketing loan payments
(de US$ 1,8 bilhões em 1998, subiram para US$ 5,9 bilhões em 1999 e para US$ 7,6 bilhões em 2000);
b) sob o regime de transferências diretas, os pagamentos aumentaram em 1998 e dobraram nos dois anos subseqüentes, com uma renda suficiente para manter a renda média líquida dos produtores no período 1998-2000, acima do período 1991-1995 (US$ 55,1 bilhões comparado com US$ 53,7 bilhões), ainda que os mercados tenham sinalizado um período de rendas mais baixas; e
c) os pagamentos de desastres e outros pagamentos foram aumentados nos orçamentos anuais e os subsídios ao seguro agrícola foram elevados, consideravelmente, pelo Agricultural Risk Protection Act of 2000.
No total, considerando os pagamentos diretos e as transferências via marketing loans e outros, chega-se a US$ 24 bilhões em 2000, comparado com US$ 8 bilhões em 1997. Tudo indica que, para os próximos anos, a nova lei agrícola, em discussão no Congresso dos Estados Unidos, pelo menos manterá o nível de 2000.
Evidentemente, a possibilidade de integração econômica com um país que está disposto a manter o seu sistema produtivo competindo no mundo, em cima desse imenso colchão de liquidez público, constitui sérios motivos de preocupações para o governo e os produtores rurais brasileiros e termina tornando-se o principal fator contra a integração.
Todavia, nessa questão, vale uma pergunta: desde 1930, quando o New Deal formalizou as políticas de suporte aos produtores americanos, qual foi a ocasião em que o governo dos Estados Unidos deixou de intervir pesadamente em épocas de preços depressivos para segurar a renda dos produtores? Na grande crise de 1985 e 1986, por exemplo, o governo gastou só em pagamentos de deficiência (deficiency payments) mais de US$ 20 bilhões (US$ 27 bilhões em valores atuais), fora os outros programas como os de conservação através do Conservation Reserve Program (CRP).
Nem por isso, o Brasil deixou de se tornar o segundo maior produtor e exportador de soja do mundo, o maior produtor e exportador de açúcar, segundo maior produtor e exportador de carne de frango, etc. Qual seria a diferença entre as situações anteriores e a situação atual, em que os subsídios tornaram-se, tecnicamente, o grande entrave à integração?
A diferença está em um aspecto, que aliás passou despercebido nas negociações da Rodada Uruguai, principalmente pelos países periféricos como o Brasil, que, sem dúvida, lucrava ou não perdia com a situação anterior. Trata-se da introdução dos decoupled programs (programas desvinculados da produção), tipo pagamentos diretos, em substituição aos programas anteriores de preços suporte tipo target price.
Os decoupled programs foram recebidos com grande entusiasmo pelos países que queriam menos restrições e menos protecionismo no mercado mundial. Acontece que o target price, nunca representou entraves ao comércio ou ao protecionismo, como as elevadas tarifas de importação impostas pela União Européia e pelo Japão.
Ao contrário, esses programas com seus pagamentos de deficiência, junto com os programas de conservação e set aside eram vinculados ao controle de área e, portanto, limitavam a oferta de produtos agrícolas nos Estados Unidos. Trazia, portanto, benefícios para países que produziam na margem, como o Brasil. Após o Fair act, estima-se que mais de cinco milhões de hectares tenham sido retirados dos programas de reserva ambiental e entrado no sistema produtivo americano, principalmente da soja.
Portanto, centrar as negociações da ALCA na questão das MAI pode ser um grande erro e prejudicar a solução, através dos acordos, do contencioso do Brasil com os Estados Unidos em áreas altamente estratégicas e de grande potencial para o agribusiness nacional. É muito pouco provável que os americanos renunciem a um sistema de proteção que tem mais de sessenta anos e está enraizado na política e na cultura agrícola americana.
A idéia de que algumas medidas da atual administração republicana praticamente eliminaram o grande superávit fiscal existente e que isso poderia contribuir para os Estados Unidos reduzirem a escala de subsídios não encontra respaldo histórico. Nas grandes intervenções dos anos oitenta e no início dos anos setenta, o País estava enfrentando grandes déficits no orçamento fiscal e coincidentemente as administrações eram republicanas.
A saída para o Brasil e para outros países, então, é entrar no forte lobby conservacionista americano e tentar transferir pelo menos parte desse imenso volume de recursos para a retirada de terras do sistema produtivo e voltar ao antigo sistema de vincular a aplicação dos preços mínimos ao controle de área.
No contencioso agrícola, a integração resolveria velhas pendências tarifárias no suco de laranja, calçados, açúcar, fumo, óleo de soja, álcool e sanitárias no caso das carnes, frutas e legumes e portanto abriria completamente o maior mercado do mundo para esses produto, que representam o core do agribusiness nacional. Dada a complexidade dos cálculos e o grande número de variáveis envolvidas, é praticamente impossível se chegar a números não-polêmicos. Todavia, considerando a magnitude e a importância dos setores envolvidos, sabe-se que o impacto nas exportações desses produtos seria muito grande, podendo, no curto prazo, triplicar ou quadruplicar o valor exportado para os Estados Unidos. Aliando isso ao fato das importações de produtos industriais americanos serem inelásticas, como então ser contra a ALCA?
Outro ponto importante envolvendo as negociações da ALCA e também da OMC relaciona-se com a inclusão de aspectos macroeconômicos nas negociações.
Como se sabe, com a abertura do mercado brasileiro, o grande fator de exposição da economia brasileira tornou-se o saldo em conta corrente. Como as exportações não acompanharam as importações, o déficit em conta corrente, que em 1994 era de apenas US$ 1,68 bilhões, passou para US$ 33,6 bilhões em 1998, US$ 25,0 bilhões em 1999 e US$ 24 bilhões em 2000.
Para cobrir esse déficit em transações correntes, existem três alternativas: investimentos diretos, empréstimos externos e geração de saldos positivos na balança comercial. No caso brasileiro, como as exportações não cresceram mais que as importações, as duas primeiras alternativas têm sido as utilizadas para fechar o balanço de pagamentos. O grande problema é que, no longo prazo, essas duas alternativas tendem a agravar a situação do déficit, devido à remessa de lucros e pagamentos de juros. Portanto, para solucionar o problema de forma estrutural, só resta a terceira alternativa, que é a geração de grandes saldos positivos na balança comercial.
Como a geração desses grandes saldos via fechamento unilateral da economia brasileira às importações – como foi feito nos anos oitenta –, além de ferir os acordos subscritos pelo Brasil na OMC, seria um enorme retrocesso na direção do modelo autárquico anterior, a solução é a realização de um grande esforço nacional para aumentar as exportações.
Portanto, o sucesso das negociações e a eliminação de algumas barreiras alfandegárias que incidem sobre produtos agrícolas brasileiros, em alguns mercados importantes, são essenciais para a expansão das exportações na escala necessária para se obter, no longo prazo, equilíbrio nas contas externas.
A experiência mostra que um país em desenvolvimento só entra na linha de preocupação do mundo desenvolvido, quando existe uma ameaça concreta de default e risco sistêmico ou quando o fluxo migratório ilegal esteja ameaçando a segurança, o bem-estar ou o emprego de algum grupo de concidadãos.
Assim nos rounds de negociações deve ser mostrado, de forma bastante explícita, que, da mesma forma que os efeitos positivos da globalização tendem a trazer benefícios para todos, uma crise cambial de grandes proporções nos países em desenvolvimento como o Brasil – devido à unfair trade ou às práticas protecionistas contra alguns produtos agrícolas, ou de origem agrícola – pode trazer graves danos para os sistema financeiro mundial e colocar em sério risco o grande volume de investimento realizado nesses países.
Da mesma forma que os países da UE entenderam que, para superar o problema da produção de drogas, alguns países da América Latina tinham que ter um tratamento diferenciado em termos de acesso ao mercado europeu, é obvio que o mesmo raciocínio deve se aplicar a países com grandes déficits em conta corrente.
A ALCA E A AGRICULTURA NAS RELAÇÕES BRASIL-ESTADOS
UNIDOS
Marcos Sawaya Jank André Meloni Nassar
Abstract: This article presents Brazil’s views about the FTAA negotiations and explains the reasons behind Brazil’s insistence on significant concessions in the agricultural sector, involving market access (tariff peaks and escalations), non-tariff barriers (quotas and sanitary measures), and reduction of domestic subsidies and export credits. The conclusion suggests that the benefits of the FTAA will only become evident when all countries of the Americas, including the United States, adopt a balanced approach to the negotiations and seek a win-win situation.
A chegada de George W. Bush à Casa Branca representou um importante passo para a consolidação da Área de Livre-Comércio das Américas, que somente será completado após a aprovação final da Trade Promotion Authority (TPA), o novo nome do fast track, junto ao Senado norte-americano.
No entanto, se a TPA for aprovada, o governo norte-americano vai certamente jogar todo o seu peso político e econômico na rápida ampliação do livre-comércio, seja na esfera multilateral, principalmente no que se refere ao lançamento de uma nova rodada de negociações multilaterais na OMC, quase dois anos após o fracasso de Seattle; na esfera regional, onde a ALCA tem sido apresentada pelos Estados Unidos como a prioridade mais imediata; ou mesmo na esfera bilateral, caso seja impossível avançar nos outros dois formatos.
Avançando lentamente desde 1994, a ALCA é um projeto que tem sido, até o momento, jogado para segundo plano pelas grandes nações das Américas. Esta realidade, porém, muda radicalmente se o congresso americano aprovar o TPA. De posse do mandato, o Executivo americano encontrará um amplo conjunto de países ansiosos por seguir o emblemático exemplo do México no NAFTA, estabelecendo o livre trânsito de produtos com a principal economia do planeta, ainda que isso lhes custe uma longa lista de exceções e de escape clauses.
Na realidade, a maioria dos países latino-americanos e caribenhos se enquadra em um ou mais dos seguintes itens:
a) forte dependência pela economia norte-americana nas exportações;
b) pouco a perder na competição dos Estados Unidos com indústrias nacionais consolidadas;
c) economia bastante aberta e desregulamentada, como o Chile, por exemplo.
No caso do Brasil, a realidade é um pouco diferente. Em primeiro lugar, assim como alguns de seus vizinhos do Cone Sul, o Brasil tem uma pauta de comércio bastante equilibrada em termos de origem e destino dos produtos, fato que se repete na área dos investimentos internacionais, que têm entrado em grande volume no País. Em segundo lugar, os primeiros levantamentos mostram que, caso não haja um adequado equilíbrio de concessões nos termos do acordo final da ALCA, o Brasil corre o risco de assistir a uma perda de capacidade de produção industrial, saldo comercial e empregos na sua economia. Traduzindo, se a ALCA não for um acordo equilibrado nas concessões de parte a parte, o Brasil corre o sério risco de ter mais perdas do que ganhos, o que tornaria a integração indesejável para a economia como um todo , ainda que possivelmente benéfica para os consumidores finais.
Um bom exemplo do equilíbrio que precisa ser atingido é dado pelo agronegócio, setor que responde por 27% do PIB, 25% do emprego e quase 40% das exportações totais do Brasil. O País fechou o ano de 2000 com déficits de US$ 25 bilhões na conta corrente e de US$ 0,7 bilhões na balança comercial , com o agronegócio gerando um superávit de US$ 13 bilhões e os demais setores um déficit de US$ 13,7 bilhões. Tais números mostram claramente a impossibilidade de o Brasil firmar qualquer acordo, regional ou multilateral, que não contemple, de forma ampla, o agribusiness, sob o risco de assistirmos a um indesejável agravamento do saldo comercial e conseqüentes desequilíbrios no Balanço de Pagamentos.
Para os Estados Unidos, as principais demandas na negociação da ALCA são uma sensível abertura, por parte de todos os países-membros, dos setores de serviços e investimentos em geral e a fixação de regras hemisféricas para as questões relacionadas a propriedade intelectual e às compras governamentais. Nos novos temas, os Estados Unidos poderão apresentar demandas até o momento pouco claras nas áreas de legislação trabalhista e proteção ao meio ambiente, temas estes que, segundo muitos políticos, na sua maioria ligados ao partido democrata, deveriam ser incluídos no corpo de qualquer novo acordo internacional .
O Brasil , por sua vez, tem interesses e demandas nas áreas de acesso a mercados, principalmente na questão dos picos e escaladas tarifárias; barreiras não-tarifárias, tais como, cotas de importação, restrições sanitárias, etc.; eliminação dos subsídios à exportação; redução dos subsídios agrícolas e disciplinamento do uso de leis antidumping.
2. Acesso a mercado
Não resta a menor dúvida de que os Estados Unidos são uma das economias mais abertas do mundo, com uma tarifa ad valorem média de 4% e uma tarifa total (ad valorem mais eqüivalente) média de 5,6%, fato que per se justifica as clássicas posições deste país em favor do livre trânsito de mercadorias e investimentos. A maior prova disso é que, no ano 2000, os Estados Unidos tiveram exportações totais de mercadorias e serviços de US$ 1,07 trilhões e importações totais de US$ 1,44 trilhões, que resultaram num megadéficit comercial de quase US$ 370 bilhões.
O Brasil, por sua vez, é um país com alíquota média de importação quase três vezes superior à dos Estados Unidos, portanto uma economia mais fechada. Deve-se lembrar, contudo, que, nos últimos quinze anos, o Brasil completou um processo unilateral acelerado de abertura da sua economia, no qual a alíquota média caiu mais de quarenta pontos percentuais desde 1987, chegando aos 14,3% dos dias atuais.
A tabela e o gráfico apresentados a seguir ilustram as significativas diferenças na estrutura tarifária dos Estados Unidos e do Brasil. Os dados mostram, de forma clara, que a questão tarifária na Área de Livre-Comércio das Américas envolverá um conjunto mais expressivo de concessões por parte do Brasil, vis-à-vis os Estados Unidos.
Tabela Nº 1
ESTRUTURA TARIFÁRIA COMPARADA DO BRASIL E DOS ESTADOS UNIDOS 1999
Ora, essa maior concessão tarifária por parte do Brasil deveria ter, como contrapartida, concessões amplas por parte dos Estados Unidos no que se refere aos demais itens do acesso ao mercado. Essa demanda fica clara ao examinarmos, em maior profundidade, o que se passa com as tarifas dos Estados Unidos. O Gráfico no 2 mostra a presença de um conjunto expressivo de picos tarifários (ou megatarifas) nos Estados Unidos, extraídos das posições a oito dígitos do Sistema Harmonizado, calculadas pelo USITC para a base de dados da ALCA.
Gráfico Nº 1
NÚMERO DE POSIÇÕES TARIFÁRIAS – 1999
Nota: As posições tarifárias dos EUA incluem as tarifas equivalentes calculados pelos USITC.
Fonte: FTAA Hemisferic Data Base (8 dígitos do SH).
Obs.: As posições tarifárias dos Estados Unidos incluem as tarifas equivalentes calculados pelos USITC.
Gráfico Nº 2
PICOS TARIFÁRIOS NOS ESTADOS UNIDOS
TARIFAS AD VALOREM EQUIVALENTES
Num universo de mais de dez mil tarifas, os Estados Unidos contam com setecentos e quarenta e sete posições tarifárias acima de 15%, duzentas e setenta e duas posições acima de 25% e cento e vinte e nove posições acima de 35%, hoje a maior tarifa vigente no Brasil. Destas cento e vinte e nove posições, cerca de cem estão no agronegócio, protegendo, de uma forma que poderia se chamar de cirúrgica, exatamente aquele conjunto de produtos de grande relevância para o Brasil: suco de laranja, açúcar, álcool carburante, fumo, laticínios e alguns derivados de cacau. Assim, não interessaria ao Brasil ver as suas alíquotas sendo zeradas ao mesmo tempo em que os Estados Unidos, por exemplo, colocassem essa centena de produtos agrícolas sensíveis em listas de exceção à zona de livre-comércio.
3. Barreiras não-tarifárias
As principais barreiras não-tarifárias dos Estados Unidos que afetam o Brasil são as cotas de importação e as restrições sanitárias. O uso abusivo de cotas de importação é exemplificado nos casos do açúcar, do fumo e dos laticínios em geral, conforme mostrado na Tabela no 2. O U.S. General Accounting Office estima os custos do regime açucareiro dos Estados Unidos em US$ 2 bilhões anuais, pagos por refinadores, indústrias de alimentos e consumidores finais, numa perversa combinação de preços garantidos e um obsoleto sistema de cotas de importação. Criticado nos melhores livros-texto de economia internacional, o sistema de cotas de importação de açúcar dos Estados Unidos claramente discrimina contra o Brasil, hoje seguramente o mais eficiente produtor e primeiro exportador mundial do produto. Basta dizer que a atual cota brasileira, congelada desde o final dos anos setenta, é inferior à da República Dominicana, sendo que países que são hoje importadores líquidos de açúcar continuam a dispor de cotas de exportação para os Estados Unidos30.
Já as barreiras sanitárias impedem as exportações de diversas frutas e legumes e de praticamente todos os tipos de carnes que o Brasil produz (Tabela no 2). Enquanto algumas destas barreiras justificam-se pela prevenção de doenças infeciosas como a aftosa, outras não têm qualquer justificativa minimamente aceitável, a exemplo das atuais restrições americanas sobre o frango brasileiro.
Tabela Nº 2
ESTADOS UNIDOS: ACESSO AO MERCADO E SUBSÍDIOS NO AGRONEGÓCIO
O estudo, de 1999, do General Accounting Office mostra que as Filipinas detêm 13,5% da cota de importações norte-americana, porém são hoje um país que precisa importar cerca de 10% do consumo para abastecer o próprio mercado doméstico. É importante salientar que a Republica Dominicana e as Filipinas tiveram quedas de 50% e 25%, respectivamente, na sua produção doméstica de açúcar, porém as suas cotas continuam nos mesmos níveis relativos fixados nos anos setenta.
O Gráfico no 3 mostra que, nos últimos dez anos, o Brasil tem assistido a uma redução das suas exportações agrícolas para os Estados Unidos, em grande parte por conta de picos tarifários (que protegem produtos como açúcar, álcool, fumo e suco de laranja), escaladas tarifárias (que afetam produtos como óleo de soja e derivados de leite), cotas de importação (açúcar, fumo e têxteis) e restrições de ordem sanitária (carne bovinas, carne suína, frangos e frutas e legumes em geral). Pode-se afirmar que cerca de 50% das exportações agrícolas e agroindustriais do Brasil para os Estados Unidos são afetadas pelas barreiras apontadas acima.
Gráfico Nº 3
EXPORTAÇÕES AGROINDUSTRIAIS BRASILEIRAS PARA
OS ESTADOS UNIDOS
4. Subsídios agrícolas
A combinação de superávit fiscal e ano eleitoral fez com que os gastos totais da Commodity Credit Corporation do USDA superassem a marca histórica dos trinta e dois bilhões de dólares em 2000. O Gráfico no 4 mostra que os pagamentos diretos aos produtores atingiram 22,1 bilhões em 2000, duas vezes e meia os gastos do período 1990/1997 e equivalentes a quase 50% da renda líquida gerada pela agricultura norte-americana.
Gráfico no 4
ESTADOS UNIDOS: PAGAMENTOS DIRETOS DO GOVERNO
AOS AGRICULTORES
Vejamos o exemplo da soja. No ano passado, o governo americano gastou quase US$ 3 bilhões para garantir preços mínimos para os sojicultores, o que eqüivale a dois terços do valor total das exportações brasileiras deste produto, principal item na pauta de exportações do país.
Production Flexibility Contracts, Marketing Loss Assistance, Loan Deficiency Payment, Marketing Assistance Loans, Crop Disaster Payment, Oilseed Payment, Counter Cyclical Income Support Program e Agricultural Risk Protection Act são alguns dos programas que se sobrepõem na intrincada rede de subsídios montada pelo governo norte-americano. Tais subsídios fatalmente acabam gerando pesados excedentes, que são então atirados no mercado mundial à custa de mais uma penca de outros ditos legítimos programas governamentais, como o Export Enhancement Program, o Export Credit Guarantee Program, o Supplier Credit Guarantee Program, o Market Access Program e várias modalidades de Food Aid Programs, todos eles justificados pela indecifrável vontade dos produtores de obter um fair access aos mercados internacionais.
Não resta dúvida de que um programa rígido de corte de gastos seria o principal fator propulsor de uma reforma no atual programa de subsídios domésticos à agricultura nos Estados Unidos. Ainda que em menor intensidade, pressões externas advindas de negociações multilaterais ou regionais podem ajudar no processo, ao confrontarem os interesses externos de expansão dos mercados e investimentos dos Estados Unidos e os interesses dos lobbies agrícolas domésticos.
É neste contexto que o Legislativo e o Executivo norte-americanos deveriam encarar as negociações da ALCA, que se apresentam como uma nova oportunidade para efetivar, ainda que parcialmente, a necessária e inevitável reforma da política agrícola norte-americana. Três são os motivos que nos levam a insistir na reforma dos atuais mecanismos de subsídios domésticos dos Estados Unidos.
Primeiro, porque os custos globais do protecionismo agrícola da América do Norte (o Canadá também distribui subsídios aos seus agricultores) são pequenos, se comparados com os ganhos potenciais de bem-estar que um processo integrativo do porte da ALCA poderá trazer para todas as economias do continente.
Segundo, porque os Estados Unidos têm manifestado posições contundentes contra os subsídios e proteções da União Européia, Japão e Coréia, que, no geral, não condizem com as suas práticas domésticas. No caso da agricultura, ainda prevalece uma absurda diferença entre o que os Estados Unidos pregam mundo afora e o que vem sendo praticado no interior das suas fronteiras. Inúmeros modelos econométricos mostram que consumidores e contribuintes teriam expressivos ganhos com uma ampla liberalização dos mercados mundiais de produtos agrícolas.
Terceiro, porque boa parte da comunidade acadêmica norte-americana tem exaustivamente demonstrado que este modelo de política agrícola, que sobrevive com pequenas nuanças desde os anos trinta, hoje carece de sentido econômico32. Na realidade, o grosso dos subsídios beneficia essencialmente os 7% maiores produtores que respondem por quase 70% do valor da produção. A despeito dos crescentes subsídios, mais de 75% dos produtores norte-americanos vêm sistematicamente perdendo dinheiro com a atividade agrícola e sobrevivem apenas de rendas não-agrícolas (aposentadorias, empregos urbanos, fazendas cujo objetivo declarado é o lazer, etc.).
A Tabela no 3 mostra que os produtores que vendem acima de US$ 500 mil por ano representam apenas 3% do número total de agricultores, respondem por 54% do valor da produção e receberam, em média, quase US$ 70 mil por ano em pagamentos diretos do governo em 1999. Naquele ano, a renda agrícola líquida destes produtores atingiu US$ 437 mil por fazenda, o que resultou numa renda agrícola por família de US$ 165,6 mil, um montante três vezes superior ao ganho anual médio da família padrão norte-americana. Este grupo cada vez menor de megafazendas, hoje claramente sobre-subsidiadas, constitui os cerca de setenta mil verdadeiros beneficiários do atual modelo de política agrícola dos Estados Unidos.
Na outra ponta, os 75% de produtores que vendem menos de US$ 50 mil por ano mostraram resultados negativos na atividade em 1999 (fato que, aliás, se repetiu em todos os demais anos da década passada), em termos de transações líquidas com o governo, renda líquida com agricultura e renda agrícola final da família, sobrevivendo apenas, como já frisamos, das rendas não-agrícolas.
Tabela Nº 3
ESTADOS UNIDOS: ESTRATIFICAÇÃO DAS PROPRIEDADES RURAIS POR
VOLUME ANUAL DE VENDAS, RESULTADOS ECONÔMICO-FINANCEIROS E
RECEBIMENTO DE SUBSÍDIOS GOVERNAMENTAIS – 1999
O Gráfico no 5 reforça que os subsídios do governo são diretamente proporcionais ao tamanho do produtor (em termos de volume anual de vendas). Não é difícil perceber que tais pagamentos sobre-subsidiam os grandes produtores, sem resolver o problema dos pequenos. Organizados em associações de defesa dos interesses de cada cadeia agroindustrial relevante, os grandes beneficiários destas políticas executam intensa atividade de lobby em Washington, junto aos poderes Executivo e Legislativo.
Gráfico n° 5
ESTADOS UNIDOS: CONCENTRAÇÃO DOS PAGAMENTOS DIRETOS DO GOVERNO MIL DÓLARES POR PROPRIEDADE RURAL, 1999
Em conclusão, este artigo sugere que os benefícios da ALCA somente surgirão na hora em que os países das Américas conseguirem estabelecer um jogo equilibrado de ganha-ganha a partir do processo negociador. Os Estados Unidos têm um expressivo déficit na sua balança de mercadorias e serviços de quase trezentos e setenta bilhões anuais e, por isso, poderiam ver a ALCA, de forma viesada, como uma oportunidade para reduzir este megadéficit a partir de um acordo baseado na sua demanda unilateral. Porém, conforme apontam de forma contundente artigos importante publicados na revista Foreign Affairs, a despeito do seu enorme déficit comercial, os Estados Unidos têm sido capazes de atrair volumes anuais de Investimentos Diretos Internacionais (FDI) da ordem de US$ 280 bilhões para a sua economia e as vendas das grandes corporações americanas no exterior atingiram a impressionante soma de US$ 2,4 trilhões em 1998. Ou seja, os benefícios da ALCA vão muito além do intercâmbio de bens e do livre acesso aos mercados. Na realidade, entendemos que os países da ALCA querem que a sua integração constitua um processo justo e eqüitativo de abertura das suas economias nas áreas de serviços, investimentos, indústria e agricultura, cujo resultado mais concreto possa ser observado na melhoria do padrão de vida de todos os cidadãos das Américas.
Painel 1 Serviços, investimentos e compras governamentais: serviços financeiros, telecomunicações, padrões trabalhistas e ambientais
Presidente: Luiz Felipe de Seixas Corrêa (Secretário-Geral do Ministério das Relações
Exteriores)
Expositores: Marcos Caramuru de Paiva (Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda)
Mário Marconini (Diretor-Executivo do Centro Brasileiro de Relações Internacionais)
Pedro Luiz da Motta Veiga (Secretário de Produção e Comercialização do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento)
Debatedores: Hélio Costa (Deputado Federal – PMDB/MG)
Murilo Celso de Campos Pinheiro (Presidente do Sindicato dos
Engenheiros do Estado de São Paulo)
Kjeld Jakobsen (Secretário de Relações Internacionais da Central Única dos
Trabalhadores – CUT)
Roberto Teixeira da Costa (Vice-Presidente do Conselho Curador do
Centro Brasileiro de Relações Internacionais)
Relator: Eiiti Sato (Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília)
Trabalhos apresentados:
- A ALCA e o comércio de serviços brasileiro: normativa e interesse –
Mário Marconini
- As normas trabalhistas e ambientais na agenda de negociaçõesinternacionais – Pedro da Motta Veiga
- A quem interessa a ALCA – Murilo Celso de Campos Pinheiro
APRESENTADORA – Bom dia, senhoras e senhores. Inicia-se, neste momento, a quinta sessão do Seminário “O Brasil e a ALCA”, com o tema “Serviços, investimentos e compras governamentais: serviços financeiros, telecomunicações, padrões trabalhistas e ambientais”. Preside a Mesa o Exmo. Sr. Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Secretário-Geral das Relações Exteriores.
Expositores: Exmo. Sr. Embaixador Marcos Caramuru de Paiva; Dr. Mário Marconini; e Dr. Pedro da Motta Veiga. Debatedores: Exmo. Sr. Deputado Hélio Costa; Engenheiro Murilo Celso de Campos Pinheiro; Dr. Kjeld Jakobsen; e Dr. Roberto Teixeira da Costa. Relator: professor Eiiti Sato. Com a palavra o Sr. Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Muito bom dia a todos. Declaro abertos os trabalhos desta quinta sessão do nosso seminário, que tem como tema “Serviços, investimentos e compras governamentais: serviços financeiros, telecomunicações, padrões trabalhistas e ambientais”. Tratará das vantagens e desvantagens para o Brasil do livre-fluxo de investimentos e de uma área de livre-comércio das Américas e também da posição negociadora do Brasil nos fóruns internacionais, ALCA e OMC, quanto ao tema investimentos.
Neste painel está agrupado um conjunto de temas ligado aos debates em curso na OMC. O tema serviços foi negociado fora do antigo GATT, que se restringia, como se sabe, ao comércio de bens, está regulado pelo General Agreement on Trade in Services (GATS) e é administrado pelo Conselho para Comércio de Serviços, que opera no âmbito da OMC.
Os demais aspectos a serem examinados neste painel são conhecidos na OMC como os “novos temas”. Têm a ver não com a liberalização do comércio propriamente dita, nem com os instrumentos de política comercial, mas com instrumentos de política econômica lato sensu e sua influência sobre a regulamentação da competição em escala internacional e com a operação dos mercados.
São temas vinculados ao chamado processo da globalização. Ou seja, a tendência que passou a caracterizar o funcionamento da economia internacional em torno de um mercado global.
As negociações na ALCA espelham, de uma certa forma, os debates que estão sendo travados na OMC e deverão acompanhar a evolução das negociações multilaterais a serem provavelmente lançadas na próxima conferência ministerial da OMC, que se realizará em Qatar, de 9 a 13 de novembro próximo.
Em matéria de serviços, o Brasil conta com uma legislação atualizada e moderna, que nos insere plenamente no sistema global e hemisférico de serviços. Temos defendido na ALCA, juntamente com o MERCOSUL e os países andinos, uma proposta baseada nas normas do GATS, da OMC, que contempla uma liberalização progressiva desse setor, com base em listas positivas.
Os Estados Unidos, o México e o Canadá, por seu turno, advogam uma estrutura de regulamentação mais ampla, tal como a que existe no NAFTA.
O tema investimentos é complexo e a atuação do Brasil não deixa de ser afetada pelo fato de estarem pendentes de aprovação pelo Congresso Nacional, há vários anos, catorze acordos bilaterais de promoção e proteção de investimentos assinados pelo Brasil, com base no modelo OCDE. Isso não tem impedido, porém, que o Brasil venha recebendo um valor bastante elevado de investimentos direto do exterior. No ano passado, recebemos 32 milhões de dólares, o que colocou o Brasil como o segundo país em desenvolvimento como receptor de investimentos externos. Mas é evidente que temos de encontrar uma regulamentação adequada em âmbito multilateral e regional para esse capítulo.
O tema compras governamentais foi objeto de um acordo plurilateral na conclusão da Rodada Uruguai e foi retomado pelos Estados Unidos no âmbito das negociações da ALCA com a finalidade de tornar mais transparentes e criteriosos os processos de licitação. É objetivo em princípio compatível com os processos já bastante satisfatórios e eficientes do sistema brasileiro de compras.
No que se refere a padrões trabalhistas, a posição do Brasil é de vincular o tema ao debate, ao tema mais amplo do desenvolvimento sustentável e privilegiar o foro da Organização Internacional do Trabalho.
O Brasil é signatário das principais convenções da Organização Internacional do Trabalho em matéria de trabalhadores. Temos, no entanto, algumas vulnerabilidades nessa área, como é o caso, por exemplo, do tema da mão-de-obra infantil, que tem sido objeto de vigorosos e bem-sucedidos programas por parte do governo. É um tema sensível e importante para o Brasil. De toda forma, cremos que a questão dos direitos dos trabalhadores não deve estar vinculada internacionalmente à discussão dos temas do comércio. A posição brasileira, sustentada nas negociações da ALCA, é a de que o tema deva ser tratado no foro competente: a Organização Internacional do Trabalho.
Comércio e meio ambiente é igualmente um tema a ser abordado com circunspecção em um processo negociador hemisférico, principalmente em vista das múltiplas propostas sempre apresentadas pelos grandes parceiros comerciais, inclusive os Estados Unidos, para o estabelecimento de mecanismos que estão supostamente destinados a promover um comércio ambientalmente saudável, mas que na realidade introduzem barreiras adicionais ao livre-comércio. Esse é um tema que também está sendo tratado e ainda com muita dificuldade no âmbito do lançamento das novas negociações na OMC.
Em seu conjunto, portanto, os temas a serem tratados nesse painel serão de uma grande importância, diria, estratégica no contexto das negociações da ALCA. Compõe, por assim dizer, para o País, uma agenda defensiva, entre aspas, em que o Brasil procura responder a interesses mais diretamente demandantes por parte dos países do NAFTA por oposição ao que seria a nossa agenda ofensiva que está composta sobretudo de temas ligados a acesso a mercados, como agricultura, antidumping e outros.
O resultado final da negociação da ALCA dependerá certamente do acerto que possa ser negociado entre essas duas agendas com base no princípio do single undertaking. Na realidade, esse é o mesmo num quadro análogo e semelhante. É o que se verifica na OMC e que está sendo debatido no contexto do lançamento das negociações comerciais multilaterais, como já mencionei, e deve estar previsto que ocorra na próxima reunião ministerial de Doha.
Feita essa introdução geral, ouviremos os nossos três debatedores, a quem encareço, juntamente com os demais participantes, uma estreita observância do tempo alocado a cada um, para que todos possamos participar e ter inclusive tempo de dialogar com a platéia.
Falará em primeiro lugar o Embaixador Marcos Caramuru de Paiva, que fará uma introdução geral sobre o tema serviços, em seguida o Dr. Mário Marconini falará especificamente, dentro do tema serviços, sobre os aspectos normativos e operacionais, e em seguida o Dr. Pedro da Motta Veiga, que falará sobre o tema das normas ambientais e trabalhistas.
Após as exposições, passaremos a palavra aos debatedores, que terão sete minutos cada um. Ao final das suas considerações, a sessão será aberta ao público.
Informo que esta sessão está sendo gravada para posterior transcrição.
Passo a palavra ao primeiro expositor, Embaixador Marcos Caramuru de Paiva, que terá quinze minutos para a sua exposição.
Muito obrigado.
MARCOS CARAMURU DE PAIVA – Muito obrigado.
Bom dia a todos, é uma grande satisfação estar aqui. Creio que usarei menos de quinze minutos, porque parte do meu tempo cederei aos dois expositores para darem mais detalhes sobre dois trabalhos excelentes que circularam.
Ontem, discutimos temas comerciais conhecidos: bens, agricultura, experiência do
NAFTA, acesso aos mercados. Hoje, nós nos dedicaremos aos temas mais novos, que nasceram a partir da Rodada Uruguai, e acabaram tomando uma forma em negociações internacionais pelo NAFTA e outras negociações.
Nessa nova fronteira, o foco central é serviços, porque os investimentos estrangeiros para a produção de bens exportáveis fazem com que o tema caia na discussão mais genérica e conhecida: exportações, acesso ao mercado, política tarifária, redução de barreiras, etc.
No contexto dos temas gerais debatidos na ALCA, o tema serviços representa uma maior gama de desafios por seis razões principais: primeiro, porque o escopo é muito amplo e muito difícil de se delinear. O GATS, o primeiro acordo de serviços na OMC, vetor básico dessas discussões, trata amplamente de todo o conjunto de serviços.
O art. 1o diz que esse acordo se aplica ao comércio de serviços, de uma maneira geral, sem especificá-lo. Ele identifica em seus anexos algumas áreas particularmente relevantes: transportes aéreos, serviços financeiros, transportes marítimos e telecomunicações. O NAFTA tem um foco um tanto diferente, porque concentra o seu acordo na provisão de serviços transfronteiriços, o acesso a investimentos é tratado em um acordo de investimentos, mas também singulariza alguns temas principais: serviços de advocacia, licença temporária de engenheiros, movimento de pessoas, transporte terrestre, além de incorporar um acordo específico sobre serviços financeiros.
As negociações na ALCA ainda estão em um estágio preliminar. Elas tratam, genericamente, da escala de serviços, mas já há uma tendência a focar, particularmente, em dois setores: telecomunicações e serviços financeiros, já havendo uma proposta dos próprios Estados Unidos de que haja um protocolo específico sobre serviços financeiros. Esses dois setores são complexos e interessantes, porque, primeiro, em telecomunicações a fronteira tecnológica avança permanentemente e a dificuldade de regulação existe e continuará existindo; segundo, porque serviços financeiros é um tema em que essa tendência generalizada dos países a uma maior abertura para investimentos estrangeiros é recente. Essa abertura tem demonstrado, nos casos conhecidos, que isso traz eficiência ao próprio sistema financeiro interno de um lado, e com isso traz eficiência à economia como um todo. Portanto, é uma área nova e uma área que tem impacto sobre o funcionamento da economia.
O segundo desafio ligado ao tema serviços refere-se à existência de dados que nos permitam formular uma visão estratégica e ter uma visão completa do que se está analisando, do que se está tratando.
O José Tavares, que falará no painel posterior, tem chamado a atenção há algum tempo no sentido de que o próprio Banco Central do Brasil publica dados bastante agregados sobre serviços, mas não publica dados tão específicos, tão desagregados setorialmente sobre a área de serviços.
Há um trabalho em curso do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para definir os setores. Há também trabalhos em curso dentro do Banco Central para buscar desagregar esses dados. No entanto, o fato é que é uma área em que não dispomos, como dispomos na área do comércio de bens, de um conjunto de informações suficientemente sólido sobre movimento comercial. De maneira geral, sabemos que existem empresas brasileiras principalmente na área de serviços de engenharia que operam com forte presença e grande eficiência em alguns países, sobretudo na América Latina, e os dados sobre as operações dessas empresas estão disponíveis no BNDES, na própria avaliação dos dados do Proex.
O fluxo de investimentos para o exterior é conhecido, sobretudo na área financeira, porque grande parte deles são de bancos em outros países, originariamente Estados Unidos e hoje também América Latina.
Conhecemos de maneira muito genérica os dados sobre serviços, as informações financeiras sobre serviços fornecidos aos bancos multilaterais, BID, Banco Mundial, e o que representam em matéria de ingresso de recursos. Porém, a verdade é que não dispomos com regularidade de estatísticas suficientemente detalhadas sobre o comércio de serviços que nos permitam ter uma visão estratégica mais ampla desse setor, uma fotografia mais clara do tema e do que se está tratando.
O terceiro desafio é que existe uma interconexão muito direta entre o tema serviços e o tema investimentos. Nos compromissos da OMC essa interconexão fica claramente estabelecida na medida em que para os temas específicos, objeto dos anexos que mencionei anteriormente – telecomunicações, serviços financeiros e transportes –, é preciso que os países assumam compromissos em relação a acesso ao mercado, ou seja, o grau de abertura que estão dispostos a oferecer a investidores estrangeiros e as condições em que essa abertura se processa. Ao se fazer uma oferta em telecomunicações ou em serviços financeiros, um estado ou um país normalmente define se aceita investimentos estrangeiros, em que condições aceita e as limitações. Uma vez registrada essa oferta, o país não pode retroceder por três anos. Além de três anos pode retroceder, mas tem de pagar compensações às partes afetadas.
O quarto desafio é o das fronteiras entre as responsabilidades federais e estaduais, sobretudo no que se refere à autorização, regulação e supervisão de uma série de serviços, como energia, água, saneamento, financeiros, para uma série de países onde a regulação bancária, por exemplo os Estados Unidos, é essencialmente estadual.
O problema no contexto da OMC é relativamente fácil de se resolver na medida em que, ao apresentarem suas ofertas, os países podem excluir as esferas estaduais ou estabelecer, em cada caso, em cada um dos estados quais são as limitações oferecidas.
Tanto para serviços como para investimentos, de uma maneira geral, a proteção do investidor, a diferença de responsabilidades entre o Governo Federal e os Estados, as obrigações assumidas pelo Governo Federal e pelos Estados, as limitações impostas são um desafio, um tema ainda não equacionado internacionalmente e difícil de se equacionar na nossa própria realidade, em que alguns dos investimentos são regulados por autoridade local, no caso de água e saneamento, por exemplo, em que não temos um marco regulatório.
O quinto é o desafio institucional, ou seja, economias mais avançadas têm capacidade mais avançada de regular serviços. E têm também capacidade de antecipar-se à existência de alguns serviços e fixar uma regulação, enquanto em economias menos avançadas essa capacidade é menor ou inexistente ou ainda não suficientemente explorada.
No Brasil, para citar um exemplo, o marco regulatório sobre energia está ainda sendo objeto de discussão no contexto da Câmara de Gestão da Crise. O marco regulatório sobre água e saneamento ainda não existe e mesmo quanto aos serviços financeiros não temos uma regulação precisa sobre a entrada de investidores estrangeiros no País. Caso a caso, decide-se quanto à entrada de bancos no Brasil, e essa autorização é dada por um processo que envolve, inclusive, uma permissão presidencial. No caso de resseguros, ainda temos um monopólio com o IRB. Enfim, há uma série de áreas em que ainda não dispomos de uma regulação mínima ou, em alguns casos, estamos em processo de formulação dessa regulação.
O sexto desafio é relacionado ao fato de que normalmente, ao abrir os seus mercados, os Estados não têm um enfoque regional. Ou seja, identificar que vantagens podem ser dadas ao Hemisfério, vis-à-vis vantagens dadas internacionalmente no contexto da ALCA, tema central do nosso debate. É um tema particularmente complexo. Não é nossa tendência, e não é a tendência normal dos países, oferecer esse tipo de prioridade regionalmente. A tendência é tratar esses temas universalmente. O desafio de oferecer algo focado numa região específica é particularmente difícil de enfrentar, sobretudo em áreas como serviços financeiros, por exemplo, mas na gama mais geral de serviços.
Devido a esses seis desafios, a pergunta é: por que negociar um protocolo de serviços e por que buscar algum tipo de entendimento lógico nessa área? O Embaixador Seixas Corrêa, na sua apresentação, frisou que o Brasil não é propriamente um país demandante nessa área. As nossas demandas são mais voltadas para acesso a mercados, e nessas áreas, então, haveria a negociação de serviços, entrando como uma espécie de moeda de troca ou concessões que poderiam ser feitas em relação a outras demandas.
O tema da negociação de serviços ou o tema de serviços como um todo nasceu, de fato, em economias mais maduras e em países institucionalmente mais avançados. As primeiras discussões ocorreram, nos anos setenta, no contexto da OCDE, quando se começou a discutir a temática da economia pós-industrial e como se dariam os entendimentos internos e internacionais, sobretudo na OCDE, na área da regulação de serviços, que tem uma participação crescente no PIB de vários países, inclusive no nosso. As estatísticas – inclusive o Mário aponta isso no seu trabalho – indicam que cerca de 60% do nosso PIB é de serviços.
Seria um equívoco dizer que não há um interesse brasileiro na matéria. O interesse brasileiro se dá, primeiro, porque em várias áreas temos e poderíamos ter competitividade. Listo áreas como serviços jurídicos, serviços de engenharia, supermercados, audiovisual, lançamento de satélites e alguns temas muitos novos na nossa realidade.
Segundo, ao longo do tempo, a presença de serviços profissionais brasileiros no exterior acabou sendo uma fonte de ingresso de recursos. Não é esse o tema central na nossa discussão, mas não se ignora que o envio, as remessas de profissionais brasileiros ao exterior alcançaram às vezes, em alguns países, algo como três bilhões, ou seja, receitas superiores, inclusive, as receitas das maiores empresas exportadoras brasileiras.
O nosso interesse deriva do fato de que, admitindo que possuímos alguns setores que têm competitividade internacional nessa área e que poderiam ter uma presença de expansão, existem ainda mercados muito fechados no Hemisfério, inclusive nas economias mais desenvolvidas, como a economia norte-americana, e seria do nosso interesse abri-las.
Quais são os desafios para que possamos ter um resultado concreto e de boa qualidade? Primeiro, é que vamos ter de avançar nos marcos institucionais na medida em que as negociações avancem. Em algumas áreas é central que isso ocorra. Na área de serviços financeiros, por exemplo, onde ainda temos uma autorização caso a caso para bancos estrangeiros, será essencial que possamos avançar na regulamentação do art. 192 da Constituição e na formulação de uma regulação e legislação que, claramente, estabeleça regras quanto à entrada e atuação de instituições estrangeiras.
Nesse particular, a parceria entre o Executivo e o Congresso é focada na regulação dessas áreas mais sensíveis e objeto de maior atenção, como serviços financeiros, e é essencial que se dê ao longo do curso do processo negociador.
Tenho um comentário final, mas não vou fazê-lo porque suponho que tenha esgotado meu tempo, contra a minha indicação inicial de que falaria menos do que o necessário. Deixo para fazê-lo ao longo do debate.
Obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Obrigado, Embaixador Caramuru, não falou menos do que o tempo previsto, mas falou exatamente o que devia e falou muito bem. Agradecemos ao Embaixador Caramuru sua importante contribuição ao debate.
Com a palavra o segundo expositor, Dr. Mário Marconini, que também disporá de quinze minutos.
MÁRIO MARCONINI – Bom dia a todos.
Em primeiro lugar, parabenizo a Câmara dos Deputados pela realização deste seminário, espero que seja uma iniciativa que represente o começo de um debate importantíssimo nesta Casa, já que o tema não é novo, nem a ALCA nem o comércio de serviços.
A minha apresentação será de cinco pontos essenciais. Vou tentar fazer com que cada ponto tenha a duração de três minutos, mas espero que alguns sejam mais curtos.
O primeiro, é que o tema comércio de serviços não é novo. Ou seja, desde 1995, quando entrou em vigor os acordos da Rodada Uruguai, já temos na normativa internacional um acordo chamado, como disse o Embaixador Seixas Corrêa, Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços. Desde 1994, temos um capítulo sobre serviços e um capítulo sobre investimentos, que também versa sobre serviços, e o acordo do NAFTA. Desde 1997, os países do MERCOSUL firmaram um protocolo sobre comércio de serviços muito parecido com o GATS, mas que vai além dele.
Dizer que esse é um assunto novo não é desculpa para desconhecê-lo. Esse é um tema em que o desconhecimento continua sendo razoavelmente considerável e existe uma urgência de fazer algo sobre esse déficit de conhecimento.
O segundo é que o comércio de serviço não é o comércio de bens. Parece óbvio, parece clichê, mas, na verdade, é um ponto importante. No comércio de serviços não temos tarifas aduaneiras, temos tarifas para prestação de serviços, inclusive é uma questão importante de ser avaliada em cada país. Mas tarifas ou medidas de fronteira não existem em serviço. Não há casos concretos de medidas de fronteiras. O que temos é um comércio no qual a fronteira não é importante. O comércio é invisível e os serviços transitam de uma forma diferenciada. Por essa razão, a normativa internacional reconheceu isso desde o começo e existe lá no GATS, adotado por diversos outros acordos, um jargão de modos e prestação. Basicamente, o que eles reconhecem é que não é apenas o serviço que cruza a fronteira que nos interessa, quando se fala em comercialização de serviço, mas também que a presença comercial é um modo de prestação importante e que a mobilidade de pessoas também é um modo de prestação importante. Traduzindo isso para o que interessa, o comércio de serviços que estamos falando, o comércio exterior de serviços não é apenas, por exemplo, um arquiteto de Nova York que manda para o Brasil um projeto de arquitetura pela Internet, o que seria análogo ao comércio de bens, quase um produto, só que é um serviço que está cruzando a fronteira. Cito, como exemplo, também o Citibank, estabelecido no setor comercial de Brasília, que, conforme a legislação nacional, é uma empresa brasileira. Para efeitos da normativa internacional, ele constitui um exportador de serviços.
A cada momento que alguém entra em um Citibank no Brasil e lhe é oferecido algum serviço, na verdade, ele está importando um serviço de acordo com a normativa internacional.
Talvez haja um problema grave, que os advogados brasileiros deveriam estar estudando a fundo, mas, de fato, na normativa internacional, essa é a visão. Portanto, presença comercial de prestadores, cuja origem é estrangeira, dentro de um outro país, também isso é considerado comércio de serviços.
A prestação de serviços de pessoas, como consultores, médicos e advogados que cruzam fronteiras, também é um tipo de prestação, considerada uma exportação ou importação. Portanto, consultor europeu, prestando serviço no Brasil, está, de fato, exportando seu serviço, apesar de que o serviço dele não se locomoveu, mas, sim, ele, o prestador do serviço.
O terceiro ponto é que liberalização de serviços não é liberalização de comércio de bens. Existe uma grande diferença. Em primeiro lugar, não existem tarifas, como disse, em serviços que temos. Se fosse para fazer uma comparação com comércio de bens, são medidas muito mais parecidas com medidas não-tarifárias, como fitossanitárias ou comércio de bens, por exemplo, sendo que em serviços são todas medidas para controlar qualidade de prestadores de serviços ou de empresas prestadoras de serviços. Poderia ser não-tarifário, algo análogo e, além disso, também o tipo de medida que tem a ver com a própria estrutura de mercado, de serviço.
Vou dar uma explicação um pouco melhor. Em primeiro lugar, esse ponto é essencial. Não existem tarifas e as medidas são não-tarifárias. Portanto, quando falamos em liberalização, estamos falando, na verdade, na eliminação de medidas que se aplicam ao comércio de serviços.
Essa eliminação é muito importante. É outro aspecto conceituado e também presente em vários acordos internacionais. O que se reconhece, quando se fala em medidas e serviços, é que existem várias medidas que têm a ver com uma regulamentação necessária. Ou seja, apesar de o comércio de serviços ser não somente o transfronteiriço, não somente um comércio análogo ao comércio de bens e se aplicar também à presença comercial de um Citibank dentro de um outro país, por exemplo, vai-se mais longe. Além de ter todos esses modos de prestação, também tem a questão de se eliminar ou não essas medidas todas para concluir um processo de liberalização.
O que diz a normativa internacional? Que, basicamente, não são todas as medidas, apesar de se ter todos os modos de prestação, que serão consideradas restritivas. Na verdade, o que se diz, desde o GATT, NAFTA, de uma outra forma e também no próprio Protocolo de Montevidéu, é que algumas medidas serão aceitas como não sendo restritivas. Por exemplo, serviços profissionais. Apesar de se ter o modo de prestação, de que um advogado deveria ter o direito de prestar o seu serviço num outro país – nesse acordo isso é reconhecido –, também se tem o reconhecimento de que cada país terá um mínimo de regulamentação, que será permitida para regulamentar a qualidade e o tipo de prestação desse serviço. Ou seja, não basta ser um advogado em um país para ser necessariamente reconhecido num outro.
Portanto, tem-se um trash hold, um piso de regulamentação aceito. Isso é importante: existe a pretensão de que todos os modos de prestação e todas as medidas que tenham a ver com todos os modos de prestação serão eliminados. Porém, tem-se esse reconhecimento que nem tudo que se aplica deve ser eliminado. Isso é importantíssimo, porque, de uma certa forma, introduz uma espécie de buraco negro nesses acordos. Ou seja, tem-se nesses acordos a possibilidade de justificar uma série de medidas e essa justificativa que cada país dá pode ser muito importante em termos de um panel.
Cito um exemplo: é razoável que um país exija do advogado estrangeiro que queira prestar um serviço de advocacia no âmbito desse país que ele seja registrado, que seja membro da ordem dos advogados. Mas se for pedido que ele precisa refazer todo seu curso para prestar serviço de consultoria em Direito Internacional, que precisa, se for o caso do Japão, falar japonês, ou ser residente de uma província canadense – e com freqüência isso ocorre –, isso é considerado restrição, vai além. Mas o fato de exigir que ele se registre, que seja advogado e que tenha alguma especialização, não é um problema.
É evidente que existe uma tensão clara entre o que se pretende eliminar, quando se fala em liberalização, e o que se pode justificar como sendo aceitável. Isso também é algo muito importante. No comércio de bens, quando se fala em medidas não-tarifárias, algo fitossanitário, ou seja lá que tipo de medida não-tarifária, tem-se esse tipo de tensão também. Um país diz uma coisa, o outro não acredita na explicação e pode levar isso a termo.
Liberalização de serviços não é liberalização de bens nesse sentido também. Até agora, o que houve no processo internacional – isso também é importante para o Brasil –, se se observar o que foi feito no GATT, ou no próprio NAFTA, até certo ponto no próprio Protocolo de Montevidéu, do MERCOSUL, não foi propriamente uma liberalização. Esses acordos, na verdade, não exigem que os países abram seus mercados. Exigem que o país deixe claro sua situação regulatória.
No comércio de bens, há uma lista de tarifas que indica 14% para tais produtos, 12% para outros, etc. Em serviços tem-se uma lista, na qual o país tem de indicar as restrições para o acesso de prestadores ou de serviços estrangeiros e qual o tratamento que se dá; se é o tratamento nacional ou outro que não seja o nacional, ou seja, se há uma discriminação.
Na maioria das vezes, o que se tem como ofertas dos países, listas dos países, são catálogos e restrições. Os países estabelecem, nas suas listas, todas as restrições que têm para cada serviço. Não existe quase caso nenhum, não consigo imaginar nenhum caso, exceto um acontecido durante a negociação da Rodada Uruguai, o caso da Coréia, que tinha um compromisso sobre transportes marítimos, que dizia que em dois anos estaríamos abrindo o nosso mercado, o roll back, como se fala em negociação, não existe caso nenhum de país que está indicando quando ele vai fazer alguma coisa. Existe apenas a consolidação e o congelamento nesse sentido de uma restrição, ou de uma situação regulatória. Isso também é algo importante para se ter mais ou menos medo, digamos, de uma negociação de serviços.
Nas Américas, adentrando a questão da ALCA, é importante notar que existe um consenso expresso de que a liberalização de serviços é algo necessário. Começando pela própria questão da competitividade no comércio de bens, é impossível imaginar uma estrutura de produção de bens que não tenha uma estrutura competitiva, internacionalizada, onde o serviço é de primeira classe, em âmbito mundial, que possa tornar esse setor produtivo, mais competitivo.
É difícil imaginar as duas coisas separadas. Hoje, é muito difícil imaginar uma discussão sobre balança comercial, conta corrente, sem que se tenha presente o fato de que é necessário uma grande importação de serviços para se tornar o setor produtivo competitivo. É muito difícil não se ter um setor de telecomunicações competitivo, de primeira classe, um setor financeiro de primeira classe, um setor de serviços profissionais em âmbito mundial. Sem isso, é muito difícil imaginar ter competitividade no setor produtivo, para começo de conversa.
Sob esse ponto de vista, existe um consenso na América Latina. Vimos privatizações, concessões. Mais do que isso. Na questão da ALCA, o que se estabelece não é necessariamente abrir ou não o mercado. É muito mais: o que fixar nas listas, ou seja, que nível de regulamentação quer-se ou não congelar nessas listas e comprometer-se com isso. A situação regulatória é tal em tal setor. Estabeleço isso na minha lista e comprometo-me a não mudar essa situação regulatória ou estabeleço algo mais ou menos liberal, dependendo do processo que tenho dentro do meu próprio país? O foco é mais de regulamentação e rerregulamentação do que propriamente de abertura de mercado.
O quarto ponto é que o Brasil é uma grande economia de serviços. Marcos Caramuru mencionou que 61% do nosso PIB é no setor de serviços. Existem fatos interessantes. É lógico que o setor de telecomunicações se destaca e teve um crescimento de 22% só no ano de 1999. Entre 1993 e 1996 houve um crescimento maior que 15%. Uma particularidade muito grande em serviços no caso brasileiro é que as maiores empresas são prestadoras de serviços públicos e com freqüência empresas estatais ainda, ou seja, sujeitas ao processo de privatização e concessão de serviços públicos. Indica que, dependendo da direção que se tomará no Brasil, isso terá ou não uma implicação para o que se poderá congelar ou não nesses acordos internacionais.
Com relação ao quinto ponto, a ALCA requer, de fato, muito critério e cautela, não necessariamente porque ela implique abertura, mas porque o país, nessas negociações, será obrigado a indicar a situação regulatória para vários setores, o que será indicado nessa lista e o compromisso de não mudá-la.
Que problemas regulatórios há no Brasil atualmente? No setor financeiro, a situação do mercado é bastante liberal. Porém há igualmente uma situação regulatória bem restritiva, o que representa um problema para a negociação, porque deveria constar na lista o fato de que, por meio de um decreto presidencial, são dadas as autorizações para a prestação de serviços bancários no Brasil. Trata-se de uma prática bastante restritiva: os países cobram isso do Brasil. Esta é uma situação.
Outra realidade, mais complexa, diz respeito à falta de regulamentação. Em vários setores de serviços não existe regulamentação alguma. Assim, se houvesse a obrigação de acrescentar algo na lista, acrescentar-se-ia, necessariamente, uma situação bastante aberta, mas sem critérios. O fato é que ainda não se avaliou que tipo de regulamentação seria necessário colocar nessa lista.
Em outros setores, há uma situação regulatória bastante confusa. O setor de serviços profissionais é bastante confuso: impera em alguns setores muita restrição; em outros, não há regulamentação nenhuma. Em alguns setores, está-se tentando fazer alguma coisa, mas tudo continua em fluxo ainda; e em outros, tem-se de fato muita abertura. Nesse contexto, o problema é outro: como se obter crédito na negociação, uma vez que se negocia? O que ocorreu, por exemplo, no processo de privatização e de concessões públicas em telecomunicações, foi importantíssimo – trata-se de algo para o qual ainda não existe crédito para o Brasil.
A questão de crédito é muito importante, talvez não o crédito a ser exigido nesta negociação, pois é difícil que o Brasil exija algo em serviços. Mas a verdade é que todas essas negociações são single undertaking, ou seja, vários temas são tratados ao mesmo tempo. De repente, uma liberalização havida no setor de serviços pode ser dada como crédito com o qual seja possível manter reciprocidade, como o setor da agricultura, a abertura do setor de calçados, ou qualquer outro importante na negociação.
Muito obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Muito obrigado, Sr. Mário Marconini, pela excelente apresentação.
As duas apresentações, a do Dr. Mário Marconini e a do Embaixador Marcos Caramuru, em relação ao tema serviços, dão-nos, com muita propriedade, o marco de referência sobre o qual essas questões devem ser analisadas, revelando a disposição positiva do Brasil e dos países do MERCOSUL de enfrentarem os novos desafios que encontra o setor produtivo brasileiro, a fim de que se torne mais competitivo e, assim, venha participar mais plenamente do mercado global.
O Embaixador Marcos Caramuru apontou os seis desafios que temos de vencer durante as negociações comerciais, para que este tema avance no Brasil.
Essas duas intervenções nos dão um contexto bastante amplo e apropriado para a compreensão do tema.
Em continuidade, concedo a palavra ao terceiro expositor, o Dr. Pedro da Motta Veiga, que tratará dos temas sociais e ambientais e da sua importância para as negociações da ALCA.
PEDRO LUIZ DA MOTTA VEIGA – Agradeço o convite que me foi formulado para participar deste evento.
O assunto sobre o qual vou falar diz respeito a questões ambientais e trabalhistas. Trata-se de ponto extremamente controverso – nenhum tema gerou tanta controvérsia nos últimos anos. A discussão fundamental começa pela conveniência ou não de vincular os temas comércio-meio ambiente e comércio-normas trabalhistas.
Há uma polarização decisiva em torno da conveniência ou não de levantar essas questões. Há um fenômeno que opõe os governos dos países desenvolvidos aos dos países em desenvolvimento. Do lado dos países do Norte, há a preocupação com a competição desleal dos países do Sul, que seria decorrente dos baixos padrões trabalhistas e ambientais, com efeito sobre a taxa de desemprego e as estruturas de salários nos países desenvolvidos.
Nos países do Sul, a simetria está na preocupação com a utilização protecionista das normas internacionais que se aplicariam a todos os países. A controvérsia refere-se ao protecionismo, exercido pelos países do Norte, às normas ambientais e trabalhistas e à preocupação de sua regularização no plano internacional. Com isso, os países em desenvolvimento podem perder as suas vantagens comparativas pelo menos naquilo que estiver relacionado a taxas de salário e a condições de trabalho. Fundamentalmente, isso vale tanto para questões trabalhistas como para ambientais.
A pergunta talvez seja: por que essa idéia de vincular comércio a normas trabalhistas e ambientais?
Em primeiro lugar, há alguns precedentes que facilitaram a convergência de temas tão distantes.
A partir da Rodada Uruguai, o GATT passou a tratar de uma série de temas que diretamente nada têm a ver com comércio, com fluxo de bens e serviços transfronteiriços; passou a regular muitos assuntos até então considerados exclusivamente domésticos. O GATT passou a ter um acordo que estabelece as condições em que as políticas nacionais de propriedade intelectual devem seguir. Por que não estender esse precedente a outras áreas, como as de normas de trabalho e de regulação ambiental? Havia esse precedente, digamos, essa intromissão do GATT em áreas não comerciais, criando a possibilidade de que outros temas não comerciais fossem trazidos à negociação comercial.
Além do mais, os setores interessados na aplicação das normas internacionais de trabalho e de meio ambiente perceberam que nada melhor do que levar o assunto à OMC, que bem tinha os instrumentos necessários para fazer os países cumprirem as regras acordadas internacionalmente.
Outro ponto importante é que na própria história do GATT há precedentes. A idéia de competição desleal está presente no tratamento de questões de dumping. E não por acaso esses temas ambientais trabalhistas foram referidos até recentemente como uma questão de dumping ecológico ou de dumping trabalhista. Na verdade, o precedente na normativa GATT estava dada pela idéia de competição desleal, via preços predatórios, como é o mecanismo de dumping, muito pouco claro em termos econômicos, mas de grande função política.
Apesar dessa polarização – e esse é um ponto fundamental –, o tratamento de comércio e normas trabalhistas e ambientais não ficou fora da agenda de negociações comerciais. Ela avançou alguma coisa na área multilateral, principalmente na área ambiental e razoavelmente nos acordos comerciais regionais e bilaterais. Isso porque os países desenvolvidos, em especial os da União Européia e os Estados Unidos, passaram a utilizar algumas normas e alguns padrões trabalhistas e ambientais em suas políticas comerciais nacionais, unilaterais.
Embora a agenda comercial que trata desse assunto tenha avançado muito pouco na OMC por estar bloqueada, fê-lo por vias diferentes, empurrada fundamentalmente pelos países do Norte. Na verdade, foram as políticas comerciais dos países do Norte que introduziram o tema na agenda comercial, bem como os acordos feitos pelos países do Norte com países em desenvolvimento, em especial os Estados Unidos e o Canadá com países latino-americanos, que serviram de veículo de difusão de algumas normas trabalhistas e ambientais.
De tal maneira, diria que hoje a questão não é tanto se e por que tratar esses temas, mas, muito mais como e onde tratar o tema das relações entre o comércio e normas trabalhistas e comércio e normas ambientais.
Como já foi dito, o Brasil tem uma posição razoavelmente vulnerável na discussão desses temas. O governo tem recusado sistematicamente a vinculação entre o comércio, de um lado, e normas trabalhistas e ambientais, de outro. Mas eu diria que, na verdade, a nossa grande vulnerabilidade nesse campo está menos na área de existência de regras, de legislação, e mais no seu cumprimento, no enforcement. Isso deixa o Brasil vulnerável na discussão, menos porque não tem regras e mais porque tem dificuldade de fazer cumprir as regras trabalhistas e ambientais definidas para o País.
Indo um pouco ao histórico – não vou entrar muito em detalhes –, sintetizarei o que aconteceu com as normas trabalhistas: os Estados Unidos, desde o pós-guerra, têm tentado introduzir esse tema na agenda multilateral, na agenda do GATT, para evitar competição desleal. Isso não avançou na via multilateral, e os países – Estados Unidos primeiro, já na década de oitenta, e União Européia depois, na década de noventa –, passaram a incluir nas suas políticas comerciais certos mecanismos, como o sistema geral de preferências, que davam acesso preferencial aos seus mercados. Assim, esses países passaram a incluir alguns critérios que vinculavam a concessão do benefício ao tamanho do benefício concedido e ao cumprimento pelo país beneficiário de certas normas trabalhistas.
Isso avançou também pelo lado do NAFTA, que tem um acordo paralelo ao acordo de livre-comércio – e este diz respeito a normas trabalhistas. Fundamentalmente, ele não tenta estabelecer disciplinas naftianas para as normas trabalhistas. Mas a disciplina do NAFTA nessa área dizia que os países têm que cumprir suas próprias legislações domésticas: o México tem de cumprir a legislação mexicana; os Estados Unidos, a americana; e o Canadá, a canadense. Então, a disciplina essencial do NAFTA e dos acordos que o seguiram, como são o do Canadá com o Chile, o do Canadá com a Costa Rica, seguem essa idéia básica de disciplina.
Em termos multilaterais, esse tema avançou não na OMC, mas na OIT. Na verdade, a OIT lança, em 1998, uma declaração sobre os direitos e os princípios fundamentais do trabalhador. São quatro ou cinco direitos fundamentais, tais como: liberdade de associação, eliminação do trabalho infantil, não-discriminação vinculada a gênero. Cria-se, então, um mecanismo de supervisão das convenções onde esses direitos estão regulamentados.
De alguma maneira, o espaço multilateral vai sendo ocupado pela OIT. Essa discussão nesse organismo tem papel fundamental, porque diz respeito ao cumprimento ou não pelos países das normas fundamentais de trabalho. Quer dizer, se os países em desenvolvimento tinham muito medo de, ao tratar de normas trabalhistas, a vantagem comparativa associada ao salário ser bloqueada ou dificultada para eles, ao vincular a discussão exclusivamente a normas fundamentais de trabalho esse risco diminui sensivelmente, porque elas dizem respeito exatamente a isto: à não-utilização de trabalho escravo, à não-utilização do trabalho forçado, à não-utilização do trabalho infantil, à não-discriminação, ou seja, nada que tenha a ver diretamente com taxa de salário, nada que tenha a ver diretamente com tempo de trabalho, coisas com as quais se associa mais diretamente a vantagem comparativa salarial dos países em desenvolvimento. Esse é o quadro na área de normas trabalhistas.
Na área de normas ambientais, a discussão chegou na OMC, mas é hoje muito confusa, muito pouco clara. Na área multilateral, a OMC criou, em 1994, um comitê sobre comércio e meio ambiente, que deve analisar uma série de questões pertinentes à relação entre comércio e meio ambiente. Existem, fora da OMC, alguns acordos multilaterais ambientais, como o Protocolo de Montreal, que tem disposições sobre a utilização de mecanismos comerciais para o enforce do Protocolo. Mas isso nada tem a ver com a OMC. Esses são acordos ambientais.
Na verdade, os temas ambientais na OMC foram tratados até hoje pelo mecanismo de solução de controvérsias. Quer dizer, foram tratados não por regras negociadas entre os países, mas pela jurisprudência, embora nela não haja rigor, do órgão de solução de controvérsias, que nessa área – se utilizando das disposições do acordo de medidas sanitárias e fitossanitárias e dos dispositivos do acordo de barreira técnica de documentos – mais confundiram do que esclareceram.
É interessante observar que o tema trabalhista, apesar de mais controverso, avançou mais – e avançou mais fora da OMC. O tema ambiental, potencialmente menos controverso, porque é reconhecidamente global – há problemas globais que têm a ver com o meio ambiente, e não há problemas globais que têm a ver com normas trabalhistas –, apesar dessa vantagem inicial, nele as negociações não avançaram significativamente.
Sem ultrapassar o prazo a mim concedido, registro algumas conclusões em relação a esse assunto. Em primeiro lugar, esses temas já estão na agenda das negociações comerciais. Na própria ALCA, no capítulo de investimento, os Estados Unidos fizeram referência a padrões trabalhistas e ambientais. Eles também constam do NAFTA, das políticas comerciais dos países desenvolvidos, dos acordos multilaterais ambientais, que possuem cláusulas comerciais. Portanto, esse tema já se encontra na agenda de negociações comerciais e ambientais, e é bom ter isso em conta.
Agora, esses temas não são um só, não existe o que diga respeito especificamente a normas ambientais e trabalhistas. Normas ambientais é um tema; normas trabalhistas é outro. E as trajetórias são diferentes, como tentei mostrar rapidamente. Quem quiser saber mais a respeito basta ler o que escrevi, que será distribuído. Na verdade, os temas são diversos e geram coalizões de interesses e divergências. Portanto, para os países que negociam é importante tratar cada tema como tema específico.
Em segundo lugar, como disse, embora a questão trabalhista, em princípio, seja mais controversa do que a ambiental, para efeito de vinculação ao comércio, está mais perto de um consenso político internacional tratar do tema das normas trabalhistas do que o das normas ambientais.
Em terceiro lugar, esses temas avançaram na área comercial principalmente nas Américas, empurrados pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Esse é um ponto importante, porque já encontramos esses temas nas negociações da ALCA.
Em quarto lugar, não são infundadas as preocupações dos países em desenvolvimento com o uso protecionista de normas ambientais trabalhistas. Mas o próprio amadurecimento das discussões, de alguma maneira, reduz os riscos de utilização protecionista de normas ambientais e trabalhistas, embora não os elimine. Por exemplo, no caso de normas trabalhistas, pararam de falar de normas trabalhistas em geral e começaram a tratar exclusivamente de normas trabalhistas fundamentais, que não afetam diretamente as vantagens comparativas dos países.
Como disse, do ponto de vista da posição oficial do Brasil, as evoluções que têm havido, principalmente na área trabalhista, são positivas, estão de acordo com os interesses oficiais do País. Mas chamo a atenção para o fato de o Brasil ter dificuldades para implementar as normas. Ele tem regras, tem leis adequadas signatárias das convenções da OIT, como disse o Embaixador Seixas Corrêa, muito mais do que outros países desenvolvidos, mas encontra dificuldade para implementá-las. Isso cria problema tanto em relação ao cumprimento das convenções das quais o Brasil é signatário quanto em relação a acordos nos quais a disciplina que se adote seja a de os países terem de cumprir a legislação doméstica. Esse é outro problema. Somos fragilizados, seja em relação ao padrão OIT, seja em relação ao padrão
NAFTA.
Embora a União Européia tenha evoluído muito para a posição de apoiar o fortalecimento da OIT como fórum privilegiado de discussão de normas trabalhistas, isso não é tão claro no caso dos Estados Unidos, que mantêm esforço muito grande de vincular comércio a normas trabalhistas ambientais diretamente, ou seja, vincular os acordos comerciais a essas normas – basta ver a recente proposta de fast track, que está no Congresso americano.
Qualquer que seja a forma, européia ou americana, a pressão dos países desenvolvidos para incluir esse tema nas negociações internacionais vai persistir – e não é uma questão de moda, passageira. A inclusão desse tema na agenda comercial tem legitimidade social e política muito grande nos países desenvolvidos. Isso não vai passar rápido. É bom estarmos preparados para lidar com isso também.
A entrada da China na OMC vai complicar ainda mais essa discussão, porque a China é o principal alvo das acusações de violação de normas trabalhistas e ambientais. Portanto, é bom ficarmos atentos, porque esse novo elemento é complicador nesse quadro de discussão, principalmente quando a China se recusa terminantemente a discutir esse tema.
Muito obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Quero agradecer ao Dr. Pedro da Motta Veiga por sua excelente contribuição ao nosso debate sobre dois temas que têm grande importância e, como ele bem mencionou, estão na agenda internacional para ficar. São temas que devem ser tratados, cada vez mais, com maior profundidade.
Na realidade, sob diversas formas, esses temas já participaram da agenda internacional. Se formos buscar um antecedente mais remoto, ainda no século XIX, na atuação da Grã-Bretanha, a potência dominante na ocasião, em torno do tráfico de mão-de-obra escrava, constatamos que era tema vinculado aos direitos humanos, no caso de direitos trabalhistas, forçando um pouco a expressão, ligado ao comércio, que já provocava, no Brasil e em outros países, reações bastante intensas. Esse tema, na agenda diplomática do século XX, transformou-se numa questão de direitos humanos.
Muitas vezes, os países em desenvolvimento se vêem na situação de defender os princípios certos pelas causas erradas. No caso, tudo o que tem a ver com soberania em contraposição à utilização de fatores sociais, ambientais, etc. Com razão, muitas vezes, são apontados como encobridores de interesses de natureza protecionista, mas que refletem preocupações globais, como a evolução do direito internacional, evolução essa num sentido positivo, inexorável da agenda internacional em direção a objetivos que são, obviamente, compartilhados pela sociedade brasileira.
Enfim, são temas muito complexos, cuja inserção no contexto das negociações comerciais provocam essas preocupações no intuito de propósitos protecionistas, mas que têm de ser amplamente debatidos e considerados – no caso, o Brasil e todos os países estão negociando a
ALCA.
Graças ao cuidado que tiveram nossos expositores em se manterem no limite de tempo – agradeço a todos eles –, espero que tenhamos tempo para os debates com o público.
Devo antecipar que, enquanto os debatedores estiverem fazendo suas exposições, o público poderá formular perguntas por escrito a ser entregues às recepcionistas até o término da última exposição. As perguntas serão depois consolidadas pelo nosso relator. Espero que elas possam conduzir a uma interação bastante proveitosa com a platéia.
Gostaria também de aproveitar esta ocasião para assinalar a satisfação da Mesa, e acredito que da Câmara dos Deputados, com a grande presença de estudantes, de professores, enfim, do meio acadêmico de Brasília nos debates, o que mostra não só o acerto da iniciativa, como também nos dá – alguns de nós já têm hoje a responsabilidade de conduzir essas políticas – a certeza e a esperança de que no futuro teremos uma colaboração intensa nos desafios, nos debates; a participação de cada vez mais segmentos da sociedade brasileira, que estão ganhando uma compreensão bastante adequada da importância dos temas do comércio para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. É um registro que tenho muita satisfação em fazer.
Passo a palavra ao primeiro debatedor da sessão, Deputado Hélio Costa, que terá sete minutos para formular suas considerações.
HÉLIO COSTA – Muito obrigado, Sr. Presidente, Embaixador Seixas Corrêa. Imagino que, se os expositores tiveram quinze minutos e não conseguiram achar o tempo suficiente, o que pode fazer um deputado com sete minutos?
Gostaria de agradecer a participação. Aqui venho como Presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
Desde março deste ano estamos estudando detalhadamente a questão, não só do comércio exterior, mas, sobretudo, da relação do Brasil com os demais países do Hemisfério e a conveniência da participação do Brasil, já na data marcada de 2005, nesta grande união econômica que será a ALCA.
É importante estudarmos as conseqüências da entrada do Brasil na ALCA, o que representa e vai representar para a nossa economia a inserção nesse contexto comercial do Hemisfério. Se não nos ativermos a essa preocupação inicial, poderemos estar cometendo um seríssimo engano.
Não vejo, até pelas discussões desta manhã neste seminário, que estejamos falando quase que exclusivamente com a certeza da participação do Brasil na ALCA. Ainda não se apresentou aqui esta pergunta: devemos ou não devemos? Devemos em 2005 ou devemos um pouco mais tarde? Como é que vamos participar realmente? Estamos preparados para participar?
Realizamos inúmeras audiências públicas na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; trouxemos o Ministro Celso Lafer, o Embaixador Seixas Corrêa, que coordena nossa reunião hoje, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Embaixador Graça Lima, empresários, jornalistas, professores, economistas. Todos esses brasileiros, que estão envolvidos no processo da participação do Brasil na ALCA, foram à nossa Comissão para nos dar sua opinião, a fim de que pudéssemos avaliar a importância e principalmente a conveniência de atendermos na data imposta de 2005 a participação do Brasil.
Quanto mais nos aprofundamos nesses estudos, nessas audiências públicas, mais ficamos preocupados, até porque os disparates são enormes, as diferenças são muito grandes, a simetria é preocupante demais.
Quando imaginamos que neste mercado hemisférico os Estados Unidos, o Canadá e o México, por exemplo, representam mais de 80% do Produto Interno Bruto, e o Brasil representa apenas 7% do PIB, como vamos nos preparar para competir até 2005? Se eu me reportar às observações feitas pelos expositores Marcos Caramuru de Paiva e Mário Marconini, veremos que ainda temos de regulamentar o mercado do qual vamos participar competitivamente.
O Dr. Pedro Motta Veiga disse que somos vulneráveis, porque não temos regras trabalhistas e não temos como cumpri-las, e os acordos exigem o cumprimento dessas regras. Ainda não discutimos amplamente o que vamos fazer com nossos trabalhadores – e digo trabalhador mesmo; quando falo das profissões liberais, estou falando do médico, do advogado, do arquiteto, do engenheiro; todas elas são citadas aqui. Como o advogado vai fazer para prestar seu serviço nos outros países? O arquiteto vai mandar seu projeto pela Internet ou vai pessoalmente? Como o pedreiro, o eletricista, o trabalhador têxtil vão poder criar as fronteiras? Sequer entramos na análise do fluxo de pessoas. Como vamos fazer? Vamos acabar com os vistos de todos os países do Hemisfério? Será que os Estados Unidos concordam com isso?
São essas coisas que me deixam extremamente preocupado, porque não sentimos a garantia de que estamos realmente em condições de participar, que estamos preparados. Não sei se chegaremos em 2005 com condições reais de competir, porque, quando temos uma empresa montada com dinheiro público e ela chega à proeminência internacional, consegue estabelecer-se no mercado internacional como empresa de primeira linha, a exemplo da EMBRAER, e vai ao mercado internacional expor seu produto, que é de primeira qualidade, simplesmente o Canadá diz: “Messieurs, vous êtes très competitifs!” Aí nós somos muito competitivos. E ainda dizem que estamos utilizando recursos do governo para ajudar a empresa. Mas nos esquecemos de que todos os países do Primeiro Mundo fazem isso: o Canadá, os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, todos fazem a mesma coisa. Quando fazemos, somos muito competitivos.
O Brasil perde 1,2 bilhão de dólares por ano com a venda de soja no mercado internacional, porque a soja dos outros países está com o preço tão baixo, de tal maneira que também temos de jogar nossos preços lá embaixo. Por isso, perdemos um bilhão de dólares por ano.
Como vamos negociar tudo isso? Como vamos competir nesse extraordinário mercado internacional? De que forma vamos nos preparar? Somos os primeiros no mundo na produção de açúcar, de suco de laranja, de milho; somos o segundo em soja e frango abatido. Mas aí vêm as sobretaxas. Dos quarenta produtos que mais exportamos, principalmente para os países do norte, a média de impostos é de 35% a 40%; dos quarenta produtos que importamos do países do norte, a média de impostos brasileiros é de 14%. Há algo errado nisso.
Se produzimos aço bem, se produzimos suco de laranja bem, se conseguimos realmente excelência em alguns produtos, lamentavelmente, somos prejudicados pela sobretaxa de forma automática.
Isso é o que temos realmente de discutir nos próximos anos, de que maneira encontraremos o caminho para lidar com isso. Não podemos definitivamente esquecer os chamados problemas, as discussões dos subsídios que levaram os canadenses a criar a absurda divulgação internacional de que no Brasil havia a doença da vaca louca. Tivemos de passar por essa incrível pressão internacional, quando o Brasil talvez seja o único país do mundo que tem um rebanho todo vegetariano. Aqui era o único lugar onde não poderia definitivamente haver a vaca louca. No entanto, fomos acusados no mercado internacional.
Isso se deu porque o País, até três anos atrás, exportava quatrocentos milhões de dólares de carne bovina, e agora está exportando um bilhão e quatrocentos milhões de dólares de carne bovina. Portanto, passamos a ser muito competitivos – too competitive, como dizem os americanos, ingleses e franceses. Uma vez que somos competitivos, somos forçados a recuar.
Lamentavelmente, temos de abrir nosso mercado, nossas empresas, nosso país a todas as incursões internacionais, haja vista o mercado internacional de telecomunicações, conforme citado aqui. É um verdadeiro maná para as empresas internacionais que chegam ao País e investem bilhões e bilhões de dólares, com a certeza absoluta de que estão fazendo excelente negócio.
Contudo, imaginem que um único investidor no setor de telecomunicações do mundo, por exemplo, o Sr. Rupert Murdock, decide investir no Brasil. Se abrirmos o mercado – está no Congresso Nacional proposta para que seja aberto o mercado internacional –, a compra das três redes de televisão do Brasil não causará o mínimo impacto na fortuna pessoal desse único investidor internacional.
Fico com essa preocupação, especialmente apresentando aos nossos competidores como vamos regulamentar essas questões trabalhistas, ambientais; quem vai regulamentar isso, se é o governo, se é o Congresso. O Congresso tem de ser mais prestigiado. Ainda agora, lamentavelmente, ele só serve para referendar acordos. É a primeira vez na história deste Congresso que estamos contestando um acordo internacional. Não é só por contestar. Queremos a participação do Congresso não apenas para assinar, mas para discutir, para realmente levar a público um acordo internacional.
Como vamos fazer o cumprimento dessas leis trabalhistas, dessas leis ambientais, que forçosamente têm de ser cumpridas para que o Brasil possa participar de todos esses acordos internacionais?
São as minhas preocupações, Sr. Presidente.
Muito obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Agradeço muito especialmente ao Deputado
Hélio Costa a importantíssima contribuição que fez a este debate. O deputado levantou questões de fundo e citou exemplos concretos que afetam especificamente o Brasil, os quais colocam em tela de juízo todo o contexto negociador internacional. Referiu-se às dificuldades que tem o Brasil, um país avançado dentro de um mundo em desenvolvimento, para penetrar determinados mercados e fazer frente a uma ordem que na verdade não foi feita nem é totalmente controlada por nós, mas em muitos aspectos nos apena.
O deputado colocou em questão esses temas, manifestando o dilema com o que se defronta o Brasil diante desse quadro e o problema de como assegurar a competitividade de seus produtos e serviços: pela participação ou pela exclusão; pela proteção ou pela exposição à competição internacional. É muito importante ter esse justo equilíbrio presente em todo este processo de debates.
Com essa iniciativa, como com muitas outras que o deputado mencionou e recordou, o Congresso Nacional está tendo um papel fundamental e imprescindível no cenário brasileiro, dando-nos, inclusive, a oportunidade de trazer a sociedade civil mais diretamente para este debate, como é o caso de hoje e deste seminário, de que todos estamos participando com grande interesse.
Muito obrigado, deputado.
Concedo a palavra ao segundo debatedor, Sr. Murilo Celso de Campos Pinheiro, que também terá sete minutos para fazer suas considerações.
MURILO CELSO DE CAMPOS PINHEIRO – Muito obrigado.
Bom dia a todos. Para que não ultrapasse o tempo de sete minutos, já elaborei algumas considerações.
Com o objetivo de eliminar as barreiras alfandegárias entre os trinta e quatro países da América, promover a integração e se transformar no maior bloco comercial do mundo, com prazo marcado para ser implantada até 2005, a proposta de criação da ALCA continua com enormes indefinições tanto quanto os números que se apresentam: PIB de dez trilhões de dólares, população de setecentos e oitenta e quatro milhões de pessoas.
Inicialmente, poderíamos nos perguntar: a quem interessa a ALCA? Muito embora esteja oferecida na bela embalagem da modernidade e do mundo globalizado, claro está que a ALCA se trata de ótimo negócio para os Estados Unidos e grande ameaça ao povo latino-americano da forma como se apresenta.
Apesar do sigilo com que o acordo foi tratado nos últimos anos por aquilo que se conhece da minuta assinada em Québec, em abril último, é possível prever que um acordo dessa natureza significará grave piora das condições de vida nos países em desenvolvimento do continente.
A ALCA atenta contra a soberania das nações de economias mais frágeis ao impor total falta de regras que protejam seus cidadãos e suas indústrias; possibilitar o desenvolvimento social e tecnológico desses países e, ao mesmo tempo, liberar completamente o fluxo financeiro e assegurar propriedade intelectual.
Nessa imensa armadilha, observam-se cinco grandes problemas, já divulgados se não pela dita grande imprensa, ao menos pelos meios de comunicação alternativos: mercados de trabalho flexibilizados e precarizados – estabeleceram-se regras flexíveis no mercado de trabalho, possibilitando a manipulação e o controle dos custos trabalhistas de acordo com a necessidade momentânea do mercado; mercado financeiro desregulado – permitiu-se a livre invasão dos fluxos financeiros por meandros financeiros internos, a fim de capturar pequenas correntes de capital para engrossar os caudalosos fluxos expectativos das megainstituições financeiras; livre concorrência e livre monopólio – liberar os mercados, ainda que individuais, através da eliminação das barreiras comercias e livres de concorrências nas compras governamentais, de forma a premiar os atores mais competitivos; controle das patentes e royalties – prescreveu-se uma fiscalização rigorosa sobre patentes e royalties, a fim de preservar o avanço tecnológico e a qualidade dos produtos e serviços; investimentos livres de controles nacionais – determinou-se que é plena a liberdade das redes de investir, desinvestir, comprar, vender, transferir sem qualquer empecilho ou mecanismo regulador de origem nacional.
Para quem viveu nos últimos vinte anos sob as regras do famigerado Consenso de Washington, piorado pela escalada neoliberal dos últimos sete anos, não é possível ter ilusões sobre tal proposta.
O povo brasileiro tem amargado nos últimos anos um modelo econômico excludente, que piorou todos os índices de medição das condições de vida, gerou arrocho salarial, agravou o desemprego, desmantelou a indústria nacional, vendeu empresas públicas a preços irrisórios e colocou em risco a prestação de serviços essenciais.
A crise energética que atravessamos neste momento é o exemplo mais claro dessa situação.
Se a globalização é um fato, a inexistência de regras para o convívio civilizado no planeta não o é. A ALCA não é uma fatalidade, e é preciso que nos organizemos e nos mobilizemos contra a proposta tal como está. Negociar alterações de detalhes relevantes de nada servirá, se ao final a Nação for obrigada a aceitar esse despautério.
Contra a uniformização da legislação trabalhista ambiental. Nossa legislação precisa de maior proteção para o trabalhador manter o poder normativo da Justiça do Trabalho e a unicidade sindical, aumentando a autonomia sindical e as garantias contra as demissões imotivadas. Em qualquer acordo que venha a existir, a regra básica é: abertura do fechado mercado americano em troca do já aberto mercado brasileiro.
Legislação profissional e de serviço. O serviço de engenharia no Brasil tem uma das mais modernas, abertas e inteligentes legislações do mundo. O princípio é simples: para trabalhar no Brasil é preciso que o profissional seja habilitado junto aos Conselhos Regionais. E a nossa garantia da qualidade do serviço de engenharia deve ser mantida e fortalecida em qualquer contexto de ação internacional. Ela garante a reciprocidade e impede que leigos atravessem o Atlântico e se convertam em engenheiros quando cheguem ao Brasil.
O Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo defende a construção de um modelo de desenvolvimento econômico, social, científico, tecnológico e cultural alternativo. Ciência, tecnologia e inovação no mundo contemporâneo são sinônimos de poder. Os engenheiros e profissionais da área tecnológica que perpassam todas as cadeias produtivas do país são decisivos nessa sociedade do conhecimento para modernizar e democratizar o sistema produtivo do Brasil e da América Latina. O desafio atual é construir uma sociedade instruída e empreendedora, mostrando que é possível e exeqüível eliminar a miséria e a pobreza. Ampliar as fronteiras de trabalho e emprego para todos os brasileiros significa mais infra-estrutura: água, saneamento, moradia, alimentos, energia, transportes, saúde e meio ambiente saudável, ou seja, engenharia pública.
O Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo defende ainda que o respeito à implantação do capítulo constitucional dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, dos Direitos Sociais, em particular o art. 7o, Direito dos Trabalhadores, são pressupostos decisivos para a construção de uma nação moderna e justa. Incluir os excluídos é responsabilidade cotidiana de todos. Nada disso será possível se o País for signatário de um acordo subserviente e absolutamente desigual como a ALCA.
Na Carta de São Pedro, documento simples do “Primeiro Congresso Estadual Trabalho, Integração e Compromisso”, realizado no município paulista de São Pedro, em agosto último, o Sindicato defendeu, em relação à ALCA, os interesses nacionais dentro do processo dinâmico da globalização.
Para que isso seja possível, propomos intensa discussão pela sociedade organizada e o Congresso Nacional. Apoiamos a proposta de um plebiscito, tese também defendida pelas centrais sindicais no âmbito do Cone Sul. Ressaltamos, ainda, que é vital o respeito aos princípios fundamentais da Constituição Federal, que defende que o Brasil busque a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Para finalizar, gostaria de sugerir, em nome do Sindicato dos Engenheiros, mecanismos de autofinanciamento para o desenvolvimento econômico e social de todos os países-membros do bloco. A sugestão é justificada pelo fato da existência de profundas diferenças culturais e de padrões sociais de gerações de capitais. A idéia refere-se à formação de três fundos com recursos provenientes dos resultados positivos auferidos pelos países-membros do bloco.
Os recursos acumulados deverão custear investimentos obrigatórios, a saber: fundo social internacional, educação, habitação e combate à miséria; fundo de meio ambiente, também internacional, de preservação e recuperação; fundo de pesquisa e tecnologia, também internacional; pesquisas e plantas industriais.
Por fim, agradecemos ao Deputado Aécio Neves, Presidente da Câmara dos Deputados, e ao Deputado Marcos Cintra o convite. Aproveitamos para colocar à disposição desta Casa de Leis, à disposição dos engenheiros do Estado de São Paulo a continuidade do debate das questões de interesse nacional por intermédio do Sindicato dos Engenheiros, que atualmente representa, no Estado de São Paulo, cento e setenta mil engenheiros.
Muito obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Agradeço ao Dr. Murilo Celso de Campos Pinheiro a importante contribuição ao nosso debate. S. Sa. trouxe-nos uma dimensão política extremamente significativa, um marco sobre o qual o tema do comércio internacional, em geral, e o da ALCA, em particular, têm de ser debatidos e acompanhados pela sociedade brasileira. Mostra o acerto, mais uma vez, de mecanismos de participação social e de debates como este, promovido pela Câmara dos Deputados, para que possamos, os negociadores brasileiros e o Congresso, que legitima nossas funções negociadoras, como bem lembrou o Deputado Hélio Costa, estar perfeitamente sintonizados e informados sobre as diferentes tendências existentes na sociedade brasileira.
Antes de passar a palavra ao próximo debatedor, quero assinalar, com muita satisfação, a presença entre nós do Líder do PFL, Deputado Inocêncio Oliveira, que veio trazer sua contribuição para este debate. Muito obrigado, Deputado Inocêncio Oliveira.
Concedo a palavra ao Dr. Kjeld Jakobsen, que disporá também de sete minutos para suas considerações.
KJELD JAKOBSEN – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, senhoras e senhores, agradeço também o convite.
O tema livre-comércio pressupõe acordos comerciais com base nas regras de mercado, na desregulamentação. Portanto, sugere o mínimo de regras. Na realidade, não é assim. O acordo do NAFTA tem mais de dois mil artigos e as regras da OMC/GATT não sei quantas são, mas seguramente ultrapassam algumas centenas.
O que está em discussão não é a eliminação de regras, mas a criação de novas regras, seu mérito e a quem elas beneficiam.
Se olharmos o resultado da nossa balança comercial, particularmente levando-se em conta as apresentações de três Ministros de Estado ontem, que utilizaram praticamente todo seu tempo descrevendo e criticando o protecionismo dos países desenvolvidos, torna-se claro que as regras estabelecidas até o presente momento não nos foram favoráveis. É natural que isso ocorra, porque estamos tratando de um processo negocial entre fortes e menos fortes. E a negociação da ALCA é uma boa oportunidade para mudar essa política.
Vou tentar fazer comentários muito rápidos sobre cada um dos temas sugeridos neste painel, que, aliás, é um dos mais amplos, do ponto de vista de conteúdo, mas antes quero fazer um registro.
O Ministro da Agricultura disse ontem que, se os Estados Unidos e a União Européia não abrirem seu mercado agrícola, não haverá nem ALCA nem acordo com a União Européia. Se na próxima reunião da OMC, em início de novembro, não houver uma linguagem adequada sobre agricultura, também não haverá nova rodada. Concordo em parte, mas essa mesma dureza em relação à ALCA e à União Européia deveria ser aplicada particularmente na reunião de Doha, porque vai ser essa linguagem, adequada ou não, que vai balizar aquilo que a União Européia e os Estados Unidos estão dispostos a conceder nos respectivos acordos regionais.
Se não houver uma linguagem adequada ou satisfatória na OMC, já sabemos o que será apresentado mais adiante. Podemos dizer de antemão se queremos ou não prosseguir nessas negociações.
A postura da Central Única dos Trabalhadores em relação à ALCA é extremamente crítica, porque não vemos qualquer possibilidade de vantagem para o Brasil.
Com relação aos temas deste painel, quero acrescentar mais alguns elementos.
Primeiro, a ALCA é uma extensão do NAFTA. Quem diz isso são os técnicos do próprio governo norte-americano, que a tratam dessa maneira. A proposta do capítulo sobre investimentos, apresentado agora no ALCA, é a cópia fiel do capítulo 11 do NAFTA, que também diz respeito a investimentos, que, por sua vez, inspirou as fracassadas negociações do acordo multilateral de investimentos, que, também, por sua vez, é uma cópia do acordo comercial de investimentos anterior entre os Estados Unidos e o Canadá.
Esse acordo de investimentos não serviu para os países da OCDE, porque era extremamente draconiano do ponto de vista da proteção que dava às empresas multinacionais, passando por cima das respectivas legislações nacionais. Se não serviu na OCDE, por que nos serviria? Na verdade, esse acordo é uma proposta que protege, acima de qualquer coisa, os investimentos das empresas multinacionais, ou seja, introduz-se, através de regras, um verdadeiro capitalismo sem riscos.
O próprio governo canadense diz que não assinaria novamente um acordo como esse, da mesma forma como assinara anteriormente com o NAFTA. E tem razão. Há um processo sendo movido contra o governo canadense pela UPS – todos já devem ter ouvido falar; trata-se da empresa que entrega pequenos pacotes, envelopes e correspondências –, porque o correio canadense é estatal. Portanto, seria uma concorrência desleal com a UPS, que é uma empresa privada.
É muito provável que a UPS venha a ganhar essa causa. O que restaria ao governo canadense fazer seria privatizar a empresa de correios. Sem entrar no mérito se a privatização é boa ou não, acho que quem deveria decidir se o correio canadense deve ser privatizado é o povo canadense, e não uma empresa multinacional norte-americana ou de qualquer outra origem.
Em relação aos serviços, já sabemos que esse assunto é bastante complexo. Tivemos alguns exemplos do que significa a desregulação de setores essenciais na área de serviços, como o de energia elétrica. Há falta de energia elétrica na Califórnia, para não citar nosso próprio caso. É preocupante.
Também não podemos concordar com a introdução, como se pretende fazer na ALCA, do tema educação e saúde, além do serviço de água, que é um bem essencial.
Em relação às compras governamentais, as negociações agora são se os governos estaduais e municipais também devem ser incluídos, o que significa que, em relação aos governos federais, há um certo consenso. Pergunto: Para que fazer essa concessão? Será que alguém imagina que vamos poder participar do programa espacial norte-americano ou do projeto Guerra nas Estrelas? Alguma empresa brasileira terá esse direito?
A FAB vai renovar sua frota de aviões supersônicos. Possivelmente, isso venha a ocorrer antes de qualquer conclusão de negociação da ALCA. Mas, se fosse mais adiante, para que oferecer essa oportunidade se temos condições de atender aqui, gerando tecnologia e investimento? Estamos falando de recursos públicos, que é o meu, o seu, o nosso imposto. Acho que temos, no mínimo, o direito de opinar sobre onde o imposto que pagamos deve ser investido, se em nosso benefício ou no de outros.
Sobre o tema trabalhista e ambiental. Trata-se o tema comércio como se fosse uma ciência absolutamente exata em matemática, como se ela não tivesse nenhuma relação com aspectos sociais ou qualquer outro. Isso se desmente por si só pelo episódio dos medicamentos genéricos e toda a polêmica que houve na Organização Mundial do Comércio em relação à fabricação deles no Brasil e na Índia. A depender do resultado dessa discussão, estaríamos falando da vida de milhões de pessoas infectadas pelo HIV. Portanto, o tema comércio, nessa questão, não é uma ciência exata, mas tem muito a ver com a vida das pessoas. É justo que se discuta pelo menos o tema ambiental, que também lida com a vida das pessoas, e as questões trabalhistas da mesma forma.
O que me preocupa é que, ao se falar sobre respeito aos direitos humanos e trabalhistas, assim como sobre comércio, a bandeira da soberania nacional sobe extremamente rápido. Mas quando se trata de outros temas, às vezes fica no meio do mastro.
A posição do governo brasileiro é que normas trabalhistas devem ser tratadas exclusivamente na Organização Internacional do Trabalho. No entanto, este mesmo governo aceitou tratar o tema propriedade intelectual na OMC, quando o local correto para tratar da questão seria, dentro dessa mesma lógica, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual, por coincidência, com sede também em Genebra.
Portanto, há forte vínculo entre os acordos comerciais e os trabalhadores, que não é considerado, sob a justificativa de não se criarem novas barreiras protecionistas, como se a criação de novas barreiras protecionistas não pudesse ocorrer, inclusive, unilateralmente.
Na verdade, o fortalecimento do processo multilateral pressupõe, no mínimo, a discussão dessa proposta. Quando um setor é prejudicado por um acordo comercial, não são apenas os empresários daquele setor que são prejudicados, mas também seus empregados, porque perdem o emprego ou este é precarizado em função das dificuldades econômicas que passam a ser enfrentadas. Nunca se faz essa avaliação.
Desde o início do debate da ALCA, reivindicamos que se criasse um grupo de trabalho não sobre normas de trabalho, mas para avaliar o impacto da ALCA sobre o mercado de trabalho, particularmente na América Latina e no Brasil, na eventualidade da assinatura de algum acordo. Isso nunca foi aceito. Na verdade, mal se avaliam as perdas das empresas, salvo pesquisas elaboradas eventualmente pelas próprias empresas.
Se não se discute a avaliação de quais são as empresas que ganham e perdem num processo como esse, muito menos discutem-se os efeitos desses acordos sobre o emprego, não somente na quantidade, mas também na qualidade. No caso do Brasil, estamos falando do interesse indireto de praticamente setenta milhões de pessoas, que compõem nossa população economicamente ativa e que não estão fazendo parte desse debate, a não ser marginalmente. Portanto, emprego e comércio é um aspecto.
Por outro lado, não podemos aceitar a degradação das condições de trabalho para aumentar a competitividade, como ocorre nas maquiladoras mexicanas e nas zonas francas de exportação da América Central, de regiões africanas e da Ásia.
Em Bangladesh, por exemplo, a propaganda que o governo local faz para atrair investimentos para sua zona franca de exportação é a de que lá é proibida a existência de sindicatos, são proibidas as greves e não há legislação trabalhista a cumprir; ou seja, é praticamente o equivalente à revogação da Lei Áurea.
Então, é evidente que tem de ser estabelecido um patamar mínimo de proteção do lado mais fraco – no caso, os trabalhadores –, um patamar mínimo até mesmo de competitividade em âmbito mundial.
O mesmo tem de ocorrer em relação ao meio ambiente. Não podemos permitir que este seja degradado como forma de aumentar a competitividade e reduzir os custos. Portanto, é preciso definir regras.
Se é correto vincular o comércio a normas trabalhistas, e entendo que é – inclusive, no MERCOSUL existe a Declaração Sociolaboral e uma Comissão Tripartite Sociolaboral para acompanhar o seu cumprimento, na União Européia existe a Carta Social, no NAFTA existe o acordo trabalhista paralelo –, parece-me bastante razoável que se criem mecanismos como esses.
Não estou defendendo isso para a ALCA. Para nós, a ALCA é igualmente ruim com ou sem a introdução de normas de trabalho no seu acordo. Se na nossa avaliação – caso ela esteja correta – a ALCA vai destruir empregos no Brasil, de que adianta a existência de uma norma que estabeleça ser obrigatória a negociação coletiva se estamos falando em trabalhador desempregado? Esse direito não o ajuda muito.
Portanto, no que diz respeito ao comércio, temos de discutir sua relação com o desenvolvimento e, conseqüentemente, com a geração de empregos e a preservação de direitos. E as normas básicas da OIT que foram citadas simplesmente são patamar mínimo para preservar esses direitos, não implicam necessariamente sanções. Poder-se-ia trabalhar de outra forma, além do próprio simbolismo da sua normatização como maneira de reforçar o cumprimento dessas normas, mas também outros tipos de sanções, que nós chamaríamos positivas, ou seja, de estímulo ao comércio daqueles países que cumprem essas normas, ou então condições de prazos para que os problemas sejam solucionados antes de qualquer um ser prejudicado devido a problemas que, evidentemente, não foram gerados pelas condições econômicas de hoje.
Por último, a questão que acho que deixaria aqui: a quem interessam esses acordos? A quem interessa a ALCA e tantos outros? Aos trabalhadores, às empresas ou aos consumidores? A quem?
Do meu ponto de vista, esses acordos, se elaborados, têm que interessar à maioria da sociedade. E nós, trabalhadores, não queremos ser, mais uma vez, os perdedores nesse processo. E a maneira que achamos adequada para que a maioria da sociedade possa dizer se aceita ou não determinados acordos com implicações dessa magnitude seria através de um plebiscito. Isso é o que temos defendido. Se chegarmos à elaboração de um acordo como a ALCA, com a dimensão e com as implicações que tem, que, além de ser ouvido, muito ouvido, o Congresso Nacional, também se possa ouvir o conjunto da população, por intermédio de um plebiscito.
Obrigado.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Muito obrigado, Sr. Kjeld Jakobsen.
Nós ouvimos uma apresentação muito importante, muito bem substanciada a respeito dos temas das negociações comerciais em geral.
Sr. Kjeld Jakobsen tem razão quando chama atenção para o fato de que, nas próximas negociações, em Doha, serão lançadas as bases para uma nova rodada. Não se está usando esse termo mas, enfim, é uma rodada de negociações multilaterais globais, que vão ser determinantes, porque vão fixar os parâmetros sobre os quais as próprias negociações da ALCA e, no caso, as negociações com o MERCOSUL e a União Européia vão desenvolver-se. Nós temos muita consciência disso, e é importante termos isso presente, para que, na fase pós-Doha, possamos avaliar e fazer, inclusive, um debate semelhante a este, com todos os segmentos nacionais, para avaliar o tom que deve ser dado, em função disso, às negociações com a OMC, às negociações na ALCA ou com a União Européia.
Depois da apresentação do Deputado Hélio Costa, que foi bastante ampla – S. Exa. abordou pontos políticos muito importantes a respeito desse debate –, ouvimos duas intervenções muito específicas, que refletem posições sindicais a respeito da ALCA.
Vamos ouvir agora o Dr. Roberto Teixeira da Costa, que terá sete minutos para nos contar o que dizem os empresários a respeito da ALCA.
Com a palavra o Dr. Roberto Teixeira da Costa.
ROBERTO TEIXEIRA DA COSTA – Bom dia. Gostaria, em primeiro lugar, de
lamentar a discriminação contra os empresários nesta reunião. Não foi reservado nenhum espaço para os empresários aqui. Eu vejo queixas dos líderes sindicais etc. pela maneira como estão sendo tratados. Mas querem discriminação mais odiosa do que em uma mesa como esta não haver lugar para o empresário? Isso realmente me coloca, desde o início, em uma situação de grande inferioridade neste debate, o que eu, absolutamente, não aceito.
De modo que, ao elogiar o trabalho dos deputados Aécio Neves e Marcos Cintra de realização deste seminário, gostaria de lamentar que eu tenha sido tratado com tal discriminação. Eu acho que ela não é pessoal, deve ser empresarial. (Intervenção inaudível.)
ROBERTO TEIXEIRA DA COSTA – Exato. Há essa compensação.
De qualquer maneira, fico muito satisfeito com o seminário. Há bastante tempo, alguns dos senhores me acompanham no trabalho que eu venho fazendo. Eu tenho me preocupado muito com essa questão da disseminação dessa discussão sobre o que chamo de inserção internacional do Brasil. Acho que esse é um aspecto extremamente importante. E a nossa sociedade agora está acordando.
O Presidente da Mesa, o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, alertou muito bem para a presença importante da juventude aqui. Eu diria que a idade média deste auditório é extremamente estimulante. Confesso que esperava ver mais políticos aqui presentes, afinal de contas, era um seminário para políticos. Mas creio que os que estão aqui são extremamente representativos da Casa.
Aqui se disse que o debate é importante e até se falou na necessidade de se fazer um plebiscito. Eu, pessoalmente, como parlamentarista convicto, fiquei extremamente frustrado com a experiência plebiscitária no Brasil que derrotou o parlamentarismo. De modo que tenho sérias dúvidas sobre a sua eficácia.
As discussões que estamos tendo sobre a OMC, ALCA e a União Européia certamente vão afetar nosso futuro de uma maneira decisiva. Os depoimentos que ouvimos nestes dois dias devem ter enriquecido o conhecimento de todos que aqui estiveram. Mesmo para aqueles como eu, que já se vêm debruçando sobre o tema ALCA, MERCOSUL e Organização Mundial do Comércio, há sempre novas informações a registrar, novos ângulos a considerar. Eu diria que o papel do debatedor aqui hoje é mais realizar um debate entre os debatedores do que com os apresentadores, porque estes realmente fizeram as suas exposições com tanta competência que, tecnicamente, é muito difícil acrescentar algo a elas.
Talvez minha participação aqui seria para apresentar uma discussão sobre como eu veria a questão da ALCA no contexto empresarial. Isso não quer dizer nem implicar que eu queira ter uma visão alternativa da coalizão empresarial que vem tratando desse assunto desde 1996, dando uma importante contribuição nas discussões. Aliás, contrariamente ao que se disse aqui, que estaria havendo sigilo nessas discussões, eu nunca vi uma discussão tão aberta como a que envolve a ALCA, desde 1994, no Brasil. De modo que usar a palavra sigilo não é absolutamente aplicável a essa situação. A questão do MERCOSUL, sim, foi uma discussão onde a sociedade teve muito pouca participação. Mas em relação à ALCA, a sociedade tem sido muito ouvida.
Olhando a ALCA como um projeto que fosse oferecido a uma empresa da qual eu participasse do Conselho de Administração e tivesse que me posicionar, quais seriam as minhas reações? Essa é a contribuição que pretendo dar.
A primeira consideração que faria é saber se esse acordo iria melhorar, piorar ou manter igual a situação da minha empresa. No caso em pauta, a minha resposta é totalmente afirmativa. Depois de ouvir todos os argumentos que foram aqui apresentados, despindo-me de qualquer preconceito, fico com a sensação de que negociar é preciso. A não-participação poderia implicar perdas significativas. Não podemos e não devemos tratar esses assuntos com emoção e sim com racionalidade.
Evidentemente, seria ideal, como aqui foi ontem indicado, que pudéssemos estar organizados com os demais países da região para que fizéssemos uma força muito maior no projeto negocial com a ALCA.
Aliás, originalmente, essa foi uma idéia que o Itamaraty e segmentos importantes da sociedade brasileira defenderam. Infelizmente, a conjuntura internacional não nos permitiu evoluir no sentido de criar o SAFTA, que era a idéia contrapartida do NAFTA, onde iríamos sentar à mesa de negociações, evidentemente, com a outra base. Os senhores estão acompanhando as dificuldades que temos com o MERCOSUL.
Portanto, não podemos partir de posições de total rigidez e admitir que somos incapazes de negociar um acordo que melhore a nossa posição competitiva. Tenho me rebelado muito quanto a esse complexo de inferioridade que temos, porque achamos que vamos sentar à mesa e no dia em que isso acontecer, vamos fazer um mau negócio. Absolutamente, não subscrevo isso. A sociedade brasileira amadureceu, estamos preparados e ninguém entra num jogo fazendo uma concentração de um mês. Todos têm que se preparar jogando. Não existe essa idéia de termos de levar mais dez anos nos preparando para isso. Isso não acontece. No mundo real, essa coisa é impossível!
Sabemos muito bem das restrições que temos enfrentado e que foram aqui exaustivamente discutidas. Certamente teremos muito maior chance de mitigar essas diferenças participando de um processo negocial do que jogando pedra do lado de fora.
É certo que a outra parte tem que fazer concessões. O Brasil fê-las durante as discussões do MERCOSUL e recentemente tem feito concessões adicionais à Argentina, criticadas por alguns segmentos da sociedade brasileira, mas importantes para preservar o MERCOSUL. Os alemães, com a força da sua economia, foram extremamente generosos na formação da União Européia, basta lembrar as grandes transformações que beneficiaram Portugal, Espanha e Grécia com a União Européia. Certamente americanos e canadenses foram concessivos nas discussões com os mexicanos, e estes também, quando negociaram com a União Européia um tratado comercial, receberam vantagens importantes neste processo negocial.
Portanto, minimamente, o que estamos pedindo aos Estados Unidos nas negociações não são concessões de grande relevância, mas simplesmente que retirem restrições. Isso já seria um grande avanço neste processo negocial. As discussões que se efetuarão em Doha e agora na confirmada rodada de negociações da OMC, serão de grande relevância para o Brasil. As discussões deverão correr paralelamente e são do nosso maior interesse. Mesmo que as modificações do pacto agrícola comum da Comunidade Européia não se alterem a curto prazo, quaisquer brechas que se abram serão importantes vitórias para o País.
Não podemos e não devemos esperar que as restrições e constrangimentos que hoje impedem a maior presença externa sejam resolvidas da noite para o dia. Será um processo gradual de vitórias conquistadas com grande denodo e persistência. Será uma luta permanente, mas temos que partir para essa luta. É preciso negociar para começá-las.
Como muito bem disse ontem o Presidente Aécio Neves, na abertura do seminário, a soberania não está na rigidez, mas na defesa dos nossos interesses. Mesmo olhando a ALCA com todas as possíveis reservas e restrições – algumas aqui apresentadas eu subscrevo integralmente –, é possível imaginar que o País fique em melhor posição competitiva para ser receptor de investimentos, muito embora esteja muito preocupado com a grande dependência do ingresso de capitais para o fechamento do nosso déficit em transações correntes e com a inexistência de um mercado de capitais que permita às empresas mobilizar poupança interna. Venho defendendo isso insistentemente nos últimos anos. Agora mesmo estou coordenando um grupo, vamos preparar um programa mínimo para a criação do mercado de capitais para o Brasil. Não é possível este país desenvolver-se. Falamos de exportação, a ênfase na exportação é enorme, mas precisamos criar um mercado de capitais. Tiramos o Estado da economia, a poupança que o Estado fazia foi aniquilada. Precisamos ter um mercado de capitais onde as despesas possam buscar recursos, se não este país não vai sair do impasse. O mercado de capitais é tão importante para o futuro deste país como a exportação.
Entrando na ALCA, vamos ter melhores condições de atrair capitais e, quem sabe, condicionar a entrada de novas empresas que formem uma plataforma para que o Brasil exporte mais. Poderíamos estimular estas empresas para criarem essas plataformas exportadoras.
Convém não esquecer que, na eventualidade pouco provável de sair uma ALCA sem que o Brasil esteja representado, estaríamos correndo o risco de perder posição competitiva para outros países da região, que estabeleceriam uma relação mais favorável com os Estados Unidos.
Por tudo o que aqui ouvi e tenho registrado, acho ainda improvável que o Congresso americano conceda ao Presidente Bush uma autorização total para negociar todos os acordos comerciais. É mais provável – isso é uma opinião pessoal – pensar numa aprovação para acordos regionais ou mesmo bilaterais como o que vem sendo discutido com o Chile. Não tenho a menor idéia se isso é melhor ou pior para o Brasil. Não fiz a minha cabeça. Não sei se é melhor que existam acordos regionais ou um acordo de grande amplitude.
As reações dos segmentos, ontem indicadas pelo Paulo Sotero, a existência de grandes segmentos da sociedade americana de sindicatos que são contra qualquer acordo da ALCA são forte indicativo das dificuldades que o Presidente George W. Bush está enfrentando para aprovar o projeto do TPA.
É curioso lembrar aqui que os mexicanos conseguiram o NAFTA – o Paulo lembrou isso ontem – com um grande esforço de lobby. Os mexicanos foram para os Estados Unidos defender o NAFTA, fizeram relações de corpo a corpo com empresários, com segmentos da sociedade com os quais tinham relacionamento. A Igreja mexicana envolveu-se pessoalmente com a aprovação do
NAFTA. Os bispos mexicanos iam até os bispos americanos da fronteira lembrar a importância do NAFTA como um projeto de interesse do México. Nós aqui estamos distantes. Por isso, acho muito difícil que a América do Sul não esteja mobilizada e seja aprovado um projeto dessa magnitude no Congresso americano.
E acho também curiosa a total falta de conhecimento. Se os sindicatos americanos estão preocupados porque acham que a ALCA vai tirar emprego dos Estados Unidos, para onde vão esses empregos? Deveriam vir para a nossa região. No entanto, os sindicatos aqui, como o Sr. Jakobsen acabou de mencionar em relação à CUT, são contra, porque acham que vão perder empregos. Esse é um jogo que todo mundo vai perder, lá e aqui. Confesso que não tenho alcance suficiente para poder solucionar esse grande impasse.
Finalmente, lembro, mais uma vez, Paulo Sotero. Recentemente, trouxemos um negociador mexicano do setor privado para falar na FIESP. Os mexicanos organizaram o chamado quarto ao lado, onde havia o governo, de um lado, e eles, do outro, negociando todo o processo do NAFTA. O Paulo lembrou ontem que existem vinte mil pessoas nos Estados Unidos envolvidas em um processo negocial como este. Se queremos ir para frente, certamente precisamos estar organizados, mobilizados, a sociedade toda reunida para dar esse apoio, se não vamos ficar aqui nos lamentando que, realmente, somos um país do Terceiro Mundo.
Obrigado.
HÉLIO COSTA – Sr. Presidente, pela ordem.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Pela ordem, concedo a palavra ao Deputado Hélio Costa.
HÉLIO COSTA – Sr. Presidente, evidentemente, sem querer falar em nome do Presidente Aécio Neves e dos organizadores do evento, mas, como deputado, esclareço que nossas instalações não comportam à mesa mais do que sete participantes. Mas lembrarei, Dr. Roberto, uma história do empresário John D. Rockefeller, que chegou, numa manhã, para participar de uma reunião de diretoria do seu grupo empresarial. Um dos diretores, que estava à cabeceira da mesa, levantou-se e convidou-o para ocupar o lugar. O Sr. John D. Rockefeller disse: “Fique onde está, meu filho, porque onde eu me sento é que é a cabeceira da mesa”.
Sr. Presidente, terei que me retirar para presidir a reunião de hoje da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Com muito prazer, com muita honra, vou ceder meu lugar ao Dr. Roberto Teixeira da Costa.
LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRÊA – Agora que as reivindicações empresariais foram atendidas, o Dr. Roberto Teixeira da Costa terá lugar à mesa. S. Sa. terá notado também que a Presidência deu-lhe mais tempo que aos demais debatedores, para que houvesse um certo equilíbrio. E S. Sa. o utilizou admiravelmente bem, como sempre faz. Creio que nos apresentou uma posição bastante clara e objetiva e que leva o nosso debate ao tema central, que permeia todo este seminário: o que é a ALCA, se devemos ou não participar da negociação e com que intensidade deve o Brasil empreender suas políticas em função desses objetivos.
Quero só fazer uma observação geral em relação a esse tema. Para efeito de simplificação, falamos aqui sobre a ALCA, algo que não existe. A ALCA é um processo in fieri, é um processo em negociação. Seria mais apropriado que falássemos na hipótese de uma ALCA. E essa é a postura com a qual o governo brasileiro vem trabalhando nessas negociações. Não imaginamos que possa existir uma ALCA predeterminada, predefinida ou pré-negociada. Estamos trabalhando para que ela atenda aos interesses dos diferentes segmentos da economia e da sociedade brasileiras.
O Presidente Fernando Henrique – eu queria ressaltar esse ponto – tratou disso com muita clareza no discurso que fez na última Reunião de Cúpula das Américas, realizada em Québec. S. Exa. disse – acho que todos recordarão – que o Brasil negociará de boa-fé e participará de todo o processo. E assim tem de ser feito, porque uma atitude de exclusão do Brasil seria negativa e incompreensível, tendo em vista a inserção no mundo de nossa economia e, enfim, de nossos fatores sociais, de nossos trabalhadores e empresários.
Vamos ver, no final, o que vai acontecer. Se essa negociação for boa, será aprovada pelo Brasil. Se não for boa, não será aprovada. Inclusive, há proposta veiculada, aqui recordada, de realização de plebiscito. É algo que está ao nosso alcance. É uma possibilidade que poderá ser soberanamente decidida pelo Congresso Nacional.
Tecnicamente, esgotamos as nossas duas horas. Pergunto aos organizadores o que devo fazer. Temos várias perguntas muito interessantes. Acho que teríamos muito prazer em respondê-las. Qual a decisão?
O Deputado Marcos Cintra informa que devemos encerrar este painel agora, para que o atraso não seja cumulativo. Cada pergunta será transmitida a quem foi dirigida. Os expositores estarão disponíveis ao redor da sala de conferência. De toda forma, as perguntas serão todas incorporadas aos anais do painel.
Agradeço aos expositores, aos debatedores e à platéia a participação neste debate.
Está encerrada esta sessão.
Relator
Eiiti Sato
O Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, na condição de Presidente da Sessão, deu início aos trabalhos destacando as principais questões que seriam objeto de discussão pelos expositores, debatedores e, na medida do possível, pelos demais participantes do seminário. Entre outros aspectos, na sua introdução aos debates, o Embaixador Seixas Corrêa destacou o conteúdo estratégico dos temas a serem tratados na sessão para as negociações com vistas à implementação da ALCA e o fato de que, para a posição negociadora do Brasil, a questão dos serviços e os aspectos ambientais e trabalhistas constituem, primordialmente, um conjunto de itens de uma agenda defensiva, enquanto os problemas de acesso a mercados, notadamente agricultura e medidas antidumping, formam uma agenda ofensiva para o comércio exterior brasileiro. Conforme o Embaixador Seixas Corrêa, em larga medida, esse quadro configura os termos dentro dos quais deverão ser conduzidas as negociações não apenas com vistas à implementação da ALCA, mas também com vistas à inserção da economia brasileira nas demais instâncias regionais e globais.
1. O relato dos expositores
Os expositores, apropriadamente, elaboraram um painel dos principais parâmetros e referenciais tanto do ponto de vista institucional quanto político, dentro dos quais se movem os debates sobre a criação de uma área de livre-comércio abrangendo as três Américas.
Em sua exposição, o Embaixador Marcos Caramuru apontou seis desafios ou dificuldades que tornam as negociações sobre serviços uma tarefa bastante complexa:
1. O tema serviços é bastante amplo e há pouca definição em termos normativos e conceituais, com uma expressiva variação de setor para setor e de entidade para entidade;
2. Os dados disponíveis referentes ao comércio de serviços não são apenas escassos, mas são também pouco desagregados não possibilitando o melhor conhecimento do comportamento de muitos itens relevantes;
3. A existência de uma forte interconexão entre serviços e investimentos desperta mais interesse pelo tema serviços, mas torna também a discussão mais complicada;
4. Tal como em outras áreas, também nessa questão constitui fonte de dificuldade a pouca clareza na definição entre a jurisdição federal e as instâncias de autoridade estaduais;
5. Existe um considerável déficit institucional no que se refere aos instrumentos de regulação das múltiplas facetas dos serviços e das questões ambientais e trabalhistas. Nos países de economia mais madura esse quadro se apresenta significativamente mais favorável;
6. Há dificuldades no sentido de se estabelecer orientações definidas e distintas para as negociações de amplitude regional em relação às negociações multilaterais mais gerais.
Apesar dessas dificuldades, a negociação na área de serviços é inevitável, uma vez que mais de 60% da economia brasileira já se concentra nesse setor e, além disso, não apenas os serviços financeiros, mas muitos outros estão fortemente interconectados com a agricultura e a indústria. Por outro lado, o Brasil possui considerável expertise, podendo competir internacionalmente com sucesso em vários campos da engenharia, serviços de comunicações, audio-visual, entre outros. Na visão do expositor, portanto, a área de serviços deve ser considerada não apenas um campo que envolve questões importantes a serem negociadas pelas inevitáveis implicações e desdobramentos para outros setores, mas também um campo de oportunidades em que há interesses variados para o desenvolvimento econômico do País e sua inserção na economia regional e global. As negociações com vistas à ALCA ainda têm se concentrado mais nas questões comerciais, enquanto a área de serviços tem sido tratada apenas de forma genérica e superficial, todavia as discussões ainda estão em sua fase preliminar e será inevitável que, na agenda de negociações, haja um aprofundamento das discussões sobre os itens de serviços. Entre esses itens, já se destacam as telecomunicações e os serviços financeiros, objeto de proposta americana para que sejam firmados protocolos específicos. De qualquer modo, as dificuldades ou desafios apontados devem servir de parâmetros para as futuras discussões e para uma possível montagem de uma estratégia de negociação mais ampla que inclua não apenas a perspectiva de uma ALCA, mas também o fortalecimento da posição brasileira no cenário internacional mais geral.
O professor Mário Marconini apresentou os aspectos relacionados ao comércio de serviços no plano internacional, que, no seu entender, condicionam as negociações tanto no plano multilateral quanto aquelas visando ao estabelecimento de um acordo de integração regional. O primeiro desses aspectos refere-se ao fato de que serviços é um tema relativamente novo, tendo sido incluído na agenda das negociações internacionais na Rodada Uruguai. Esse fato indica que, associado à diversidade de formas e instrumentos pelos quais os serviços são prestados, o conhecimento a respeito do assunto é relativamente precário, exigindo que estudos sejam realizados e haja maior clareza a respeito do tema.
Outro aspecto apontado pelo professor Marconini refere-se à diferença que existe em relação ao comércio de bens. No comércio de bens, as questões aduaneiras desempenham um papel central, enquanto a área de serviços é conduzida essencialmente por meio de tarifas, em grande parte administradas por conjuntos de normas e exigências que são específicas para cada setor. A liberalização no setor deve levar em conta fatores muito mais complexos do que aqueles envolvidos no comércio de bens. Não há tarifas alfandegárias, há normas e condições regulatórias que condicionam a ação dos agentes prestadores de serviços, isto é, o nível de abertura de um mercado em relação à prestação de serviços transfronteiriços não é definida por meio de tarifas de importação ou estabelecimento de cotas. Dependendo da área, essas restrições podem incluir limites à participação de capital estrangeiro, obrigatoriedade de abertura de informações ou exigências legais envolvendo diplomas revalidados de profissionais, residência fixa, etc. Na verdade, reconhece-se a existência de um patamar de restrições, que deve ser aceito internacionalmente, mas esse patamar é pouco preciso e varia bastante de setor para setor.
Pode-se dizer que o Brasil já é uma economia de serviços. Com efeito, como já mencionado anteriormente, mais de 60% do PIB brasileiro é gerado pela área de serviços. Apesar dos evidentes desequilíbrios regionais e apesar de boa parte desses serviços serem originários de atividades bastante rudimentares, muitos desses serviços são fortemente baseados em competências e especializações sofisticadas, apresentando grande potencial de exportação. Serviços bancários e financeiros, engenharia, serviços de comercialização e administração de supermercados são apenas algumas dessas áreas em que o Brasil tem revelado grande capacidade competitiva.
Uma dificuldade importante apontada pelo professor Marconini refere-se ao fato de que há ainda setores onde a regulamentação é precária, confusa ou inexistente, enquanto em outros, como o bancário, a regulamentação é considerada pelos padrões internacionais demasiadamente restritiva. Esse é um quadro que deverá ser esclarecido nas negociações futuras, incluindo-se aquelas voltadas para a constituição da ALCA. A condição básica para as negociações é que, para cada setor, o Brasil apresente com clareza a situação regulatória.
O professor Pedro da Motta Veiga, o terceiro expositor da sessão, tratou das questões trabalhistas e ambientais relacionadas ao comércio. Essa questão também emergiu com mais destaque nos foros internacionais a partir da Rodada Uruguai, quando as chamadas questões de fronteira (especialmente tarifas e cotas de importação) passaram a dividir espaço nas negociações com os chamados novos temas (TRIPS, TRIMS, entre outros) e as barreiras não-tarifárias. A associação das questões ambientais e trabalhistas com o comércio, em grande medida, produziu divisões entre os países industrializados e os países em desenvolvimento nas negociações comerciais.
A alegação geralmente associada a essa questão é que os padrões trabalhistas constituem fonte geradora de condições de competitividade consideradas injustas. Desse modo, as discussões vão além das questões de fronteira e, em conseqüência, deveriam servir de justificativa para que instâncias internacionais pudessem intervir na ordem doméstica, forçando a implementação de padrões trabalhistas considerados justos. Na caso de países como o Brasil, contudo, que possuem uma legislação trabalhista considerada bastante avançada, a atitude dos negociadores dos países industrializados, notadamente dos Estados Unidos, têm sido o de cobrar o cumprimento da legislação doméstica existente. Cada país deve fazer cumprir sua própria legislação. Os Estados Unidos devem fazer cumprir a sua legislação, o México a legislação mexicana e o Brasil as suas próprias normas legais. Obviamente, esse fato constitui uma fonte de vulnerabilidade considerável para os negociadores brasileiros, uma vez que as dificuldades de enforcement não se restringem apenas à aplicação de normas trabalhistas relativas a produtos exportáveis, mas a todas as questões que afetam a sociedade de uma forma geral. Na verdade, no País, há um sentimento generalizado de impunidade que se estende por todas as formas de ilícitos e, nesse quadro, a posição brasileira se apresenta igualmente frágil em instâncias negociadoras como a ALCA ou a OMC e no âmbito da Organização
Internacional do Trabalho.
Por outro lado, o professor Motta Veiga também considera que as negociações sobre essas questões apresentam pontos de potencial convergência que permitem visualizar perspectivas de acordo. Um desses pontos refere-se ao fato de que as exigências relativas a cláusulas trabalhistas referem-se a itens como a proibição de emprego de mão-de-obra escrava, do trabalho forçado, de trabalho infantil ou da prática de discriminação racial ou de gênero. Essas são condições combatidas com vigor em países como o Brasil, sendo sua ocorrência claramente eventual e, para os efeitos de comércio exterior, realmente insignificante. Seria muito mais problemático se essas exigências de cláusulas trabalhistas para um comércio justo se concentrassem sobre questões como níveis salariais, tempo de serviço e outros benefícios associados ao emprego que, inevitavelmente, retirariam significativos fatores de competitividade de muitos países em desenvolvimento.
No que se refere às cláusulas ambientais, a precariedade dos acordos internacionais envolvendo comércio e meio ambiente tem feito com que as controvérsias surgidas sejam tratadas por meio dos mecanismos de solução de controvérsias do GATT e agora da OMC. Barreiras sanitárias e fitossanitárias não derivam de normas consolidadas, inclusive porque a maioria dessas questões são relativamente recentes. Num plano mais geral, as dificuldades de se estabelecer um regime internacional mais definido para o meio ambiente se manifestam, por exemplo, nos impasses em relação ao Protocolo de Kyoto.
Entre as conclusões apontadas pelo professor Motta Veiga, cabe destacar o fato de que essas questões já estão sendo objeto de discussão no âmbito regional e que as questões trabalhistas, apesar de seu aparente potencial de conflito, estão mais perto de se chegar a acordos razoáveis. Além disso, apesar de não serem totalmente infundadas as preocupações com possíveis protecionismos baseados em cláusulas ambientais e trabalhistas, aparentemente, o avanço das discussões deverá reduzir esses temores na medida em que essas discussões se concentrem mais nas questões fundamentais que, em larga medida, não afetam diretamente a competitividade dos países em desenvolvimento.
2. Os debatedores
O Deputado Hélio Costa foi o primeiro debatedor da sessão. Insistiu que a pergunta fundamental não tem sido respondida: participar ou não participar da construção da ALCA? Estaria o Brasil preparado para integrar um sistema hemisférico de livre-comércio?
Para o Deputado Hélio Costa, há muitas questões anteriores a serem respondidas. Algumas delas apontadas pelos expositores como, por exemplo, as dificuldades na regulamentação e implementação de regras trabalhistas apontadas pelo professor Motta Veiga. Outra ordem de dificuldade apontada é o enorme desequilíbrio entre as economias participantes que diminui drasticamente o poder de barganha do Brasil em relação aos Estados Unidos e ao Canadá. Essa disparidade é visível quando uma empresa como a EMBRAER consegue sucesso e, por essa razão, é acusada de ser demasiadamente competitiva pelo Canadá, porque a empresa canadense perdeu a concorrência para uma empresa brasileira. O deputado aponta questões tributárias que, no seu entender, reduzem as possibilidades de exportação de produtos brasileiros para o mercado norte-americano e, em certas circunstâncias, aviltam os preços dessas exportações, ocasionando perdas substanciais. Na avaliação do Deputado Hélio Costa
“quanto mais nos aprofundamos nesses estudos (a conveniência de integrar a ALCA), nas audiências públicas realizadas, mais ficamos preocupados, até porque as disparidades são enormes, as diferenças são muito grandes, a assimetria é preocupante demais”.
O segundo debatedor da sessão foi o Sr. Murilo Celso de Campos Pinheiro, do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. Na sua apreciação, o projeto de criação da ALCA tem sido apresentado como um caminho para a modernidade em um mundo globalizado, no entanto, a pergunta fundamental a ser formulada é: a quem interessa a ALCA? No seu entender, “claro está que, na forma em que se apresenta, trata-se de um ótimo negócio para os Estados Unidos e uma grande ameaça para os povos latino-americanos”.
O Sr. Campos Pinheiro entende que há uma verdadeira armadilha para os países menos desenvolvidos, construída sobre cinco orientações problemáticas para esses países:
1) mercados de trabalho flexibilizados e precarizados;
2) livre invasão de fluxos financeiros;
3) liberalização unilateral de mercados;
4) estabelecimento de controle sobre a propriedade intelectual; 5) eliminação de controles sobre os investimentos externos.
Na sua avaliação, o Sr. Campos Pinheiro entende que o projeto de criação da ALCA não contempla satisfatoriamente as necessidades de desenvolvimento tecnológico do País, que deveria haver um plebiscito a respeito da participação do Brasil na ALCA e que fosse criado um fundo que funcionasse como mecanismo de “autofinanciamento do desenvolvimento econômico e social de todos os países-membros do bloco (os latino-americanos)”.
O terceiro debatedor da sessão foi o Sr. Kjeld Jakobsen, da Central Única dos Trabalhadores. Apresentou uma visão bastante crítica em relação ao projeto de criação da ALCA. Na sua percepção a ALCA deverá ser uma extensão do NAFTA e, ao contrário do que seria de se esperar, livre-comércio nessa acepção não significa desregulação: “o acordo do NAFTA possui mais de dois mil artigos e as regras da OMC/GATT... ultrapassam algumas centenas”. Nesse sentido, “o que está em discussão não é a eliminação de regras, mas a criação de novas regras e a quem elas beneficiam”.
Entre os pontos críticos indicados pelo Sr. Jakobsen, os seguintes podem ser relacionados. No que se refere aos investimentos, muito provavelmente o que deverá ser aplicado no caso da ALCA é o capítulo 11 do acordo do NAFTA, que protege abertamente a ação das empresas multinacionais e que foi rejeitado pelos países da OCDE por considerar uma cláusula verdadeiramente draconiana. A área de serviços, entendida basicamente como objeto de privatização, tem sido um bom exemplo do fracasso da orientação que deve prevalecer numa possível ALCA: no Brasil, a recente crise no fornecimento de energia e, mesmo nos Estados Unidos, o caso da crise das companhias elétricas do Estado da Califórnia. Assim sendo, o fornecimento de serviços essenciais como saúde, educação e abastecimento de água não deveriam ser incluídos nessas negociações.
O Sr. Jakobsen foi o único participante da mesa que tratou especificamente da questão das compras governamentais e, também nesse campo, sua avaliação é bastante crítica. Considera que, aparentemente, as discussões correntes sobre esse tema referem-se basicamente às instâncias estaduais e municipais, sugerindo, portanto, que já existe um consenso quanto às compras a serem efetuadas pelo Governo Federal que devem incluir, por exemplo, a renovação da frota de aviões de combate da FAB. “Será que alguém imagina que vamos poder participar efetivamente do programa espacial norte-americano ou do projeto Guerra nas Estrelas? Alguma empresa brasileira terá esse direito?” pergunta o Sr. Jakobsen.
Em relação às questões ambientais e trabalhistas associadas ao comércio, além de insistir na necessidade de que sejam tratadas levando-se em conta os muitos aspectos sociais envolvidos, também apontou para a atitude contraditória de países como os Estados Unidos, que levantam a questão da precariedade das condições de trabalho como base de uma competitividade desleal, enquanto, por outro lado, estimulam a degradação do trabalho nas maquiladoras no México ou nas zonas francas de exportação da Ásia. Nessas áreas, conforme o Sr. Jakobsen, a condição para atrair os investimentos tem sido a inexistência de sindicatos, de legislação trabalhista que proteja os direitos do trabalhador e a proibição das greves.
No conjunto, o Sr. Jakobsen não vê nenhuma vantagem na implementação de uma área de livre-comércio e sugere a realização de um plebiscito, uma vez que uma iniciativa dessa natureza deve interessar a toda a sociedade.
A visão do quarto debatedor da sessão contrasta com a dos demais. O Dr. Roberto Teixeira da Costa primeiramente alegou não concordar com a possível realização de plebiscito, entre outras coisas porque, na sua avaliação, a experiência plebiscitária no Brasil havia sido um fracasso. Alega que, como parlamentarista convicto, viu o parlamentarismo ser derrotado no início dos anos sessenta, sem que houvesse um melhor conhecimento do que viriam a ser efetivamente presidencialismo e parlamentarismo. Os debates sobre a criação da ALCA, contrariamente ao que alguns participantes afirmaram, na sua avaliação, não têm sido fechados e restritos. Como outros setores, o meio empresarial tem participado ativamente desses debates quer em seminários quer em discussões mantidas nas páginas oferecidas pelo jornalismo econômico bastante ativo no País.
No entender do Dr. Teixeira da Costa, como empresário, a questão que deveria responder seria: caso o projeto da ALCA fosse oferecido a uma empresa da qual fizesse parte da direção que resposta deveria dar? Sua resposta é totalmente afirmativa. “Negociar é preciso, a não-participação poderia implicar perdas significativas; não podemos e não devemos tratar esses assuntos com emoção e sim com racionalidade”, argumenta.
Na avaliação do Dr. Teixeira da Costa, seria muito bom que a sociedade e as instituições estivessem preparadas e organizadas em condições consideradas ideais para iniciar ou conduzir qualquer negociação. Teria sido ótimo que a conjuntura internacional tivesse favorecido a formação de uma verdadeira associação sul-americana a partir do MERCOSUL. Isso não foi possível, no entanto, na visão do debatedor, o País não precisa alimentar o complexo de inferioridade que considera que sentar-se à mesa de negociação deverá significar, inevitavelmente, um mau negócio e além disso, “não existe essa idéia de termos de levar mais dez anos nos preparando para entrar no jogo”. Apesar de subscrever muitas das críticas levantadas pelos vários participantes do seminário, considera que a melhor maneira de lutar pela retirada de restrições é a participação ativa nas negociações tanto no âmbito multilateral mais geral da OMC quanto no plano regional, como é o caso da ALCA.
Um aspecto considerado pelo debatedor como de grande relevância para trazer mais solidez à economia brasileira é a constituição de um mercado de capitais mais eficiente na captação de poupança em condições de financiar o desenvolvimento e até mesmo as exportações brasileiras: “tiramos o Estado da economia, a poupança que o Estado fazia foi aniquilada, precisamos de um mercado de capitais...”. Essa seria uma condição que ajudaria a reduzir substancialmente os níveis de vulnerabilidade da economia brasileira tanto em relação a crises externas quanto em relação a iniciativas em curso no meio internacional.
A formação de sistemas regionais implica concessões e eliminação de restrições a serem feitas pelas economias maiores. Historicamente, isso teria ocorrido com a Alemanha em relação à Europa e até mesmo com o Brasil em relação ao MERCOSUL, não havendo, portanto, razão para acreditar que não deverá acontecer com os Estados Unidos em relação à ALCA. Apesar de tudo, argumenta o Dr. Teixeira da Costa, sabe-se que as negociações não serão fáceis e nem serão rápidas. No caso do NAFTA, lembra o debatedor, o arranjo se deveu em grande medida a um intenso trabalho de lobby feito pelos mexicanos, que envolveu até mesmo a igreja católica daquele país, numa mobilização ampla para convencer congressistas americanos a respeito da oportunidade da iniciativa. Por fim, se os sindicatos americanos e muitos congressistas estão preocupados com a ALCA por julgarem que esse arranjo deverá provocar a perda de empregos nos Estados Unidos, para onde deveriam ir esses empregos senão para os demais mercados de trabalho? Essa é ainda uma questão em aberto, uma vez que também aqui os sindicalistas estão preocupados com a perspectiva de que muitos empregos deverão ir para outro lugar.
3. Uma avaliação dos debates
De uma forma geral, muitos aspectos positivos do debate podem ser apontados. Em primeiro lugar, como foi destacado pelos participantes da Mesa, a iniciativa da Câmara dos Deputados no sentido de realizar o seminário é muito oportuna e, sob muitos aspectos, inovadora. A importância da interação do País com o meio externo é crescente e a participação mais efetiva do Poder Legislativo na formulação da política externa tornou-se uma necessidade, sendo muito apropriado que o debate das questões externas fundamentais se inicie antes que acordos internacionais e propostas específicas sejam formalmente apresentadas à consideração do Congresso.
Outro aspecto positivo de caráter geral que deve ser mencionado é o fato de que expositores e debatedores compuseram um painel bastante ilustrativo das questões envolvidas nas negociações com vistas à construção da ALCA no que se refere ao tema da sessão. Ao confrontar percepções de especialistas, representantes de agências governamentais e de segmentos sindicais e empresariais, além dos próprios parlamentares, foi possível ter uma visão panorâmica bastante fiel do quadro político em que se inserem as negociações relativas à ALCA. Na verdade, o tempo destinado aos trabalhos da sessão foram claramente insuficientes para que os temas pudessem ser tratados de modo mais detalhado e, nesse sentido, cabe destacar a competência com que a sessão foi conduzida pelo seu presidente, o Embaixador Seixas Corrêa, que deu o equilíbrio e a objetividade necessários para que se extraísse o máximo proveito dos debates tanto para a Mesa quanto para o público.
Talvez em razão da exigüidade do tempo, a questão das compras governamentais praticamente não foi tratada nas discussões. Apenas o Sr. Kjeld Jakobsen fez referência específica a esse tema, que, aparentemente, deverá ocupar considerável parte das atenções dos negociadores no âmbito do projeto da ALCA. Por sua importância, esse tema mereceria uma discussão mais detalhada. Em grande medida, as compras governamentais são hoje um dos mais importantes instrumentos de política dos governos. Servem para estimular setores da economia em dificuldade e para promover a geração de competências nacionais em setores de importância estratégica. No caso do Brasil, alguns setores como a construção naval, por exemplo, que já revelaram dispor de capacidade tecnológica reconhecida, talvez pudessem ser revigorados por meio desse recurso.
Entre as sugestões ou conclusões que puderam ser extraídos dos debates cabe destacar:
a) As questões relacionadas à área de serviços são bastante amplas e variadas, sendo muito difícil estabelecer uma orientação uniforme para todos os setores. Serviços financeiros, engenharia, telecomunicações, etc., são setores de atividade que possuem peculiaridades, marcos normativos e níveis de disponibilidade de dados muito variados, exigindo, portanto, a negociação caso a caso;
b) Tanto o tema serviços quanto as questões trabalhistas e ambientais não podem ser tratados separadamente das questões comerciais e, principalmente, dos temas relacionados a investimentos;
c) A inclusão de cláusulas trabalhistas não representam, necessariamente, fatores de redução de competitividade das economias em desenvolvimento, uma vez que os padrões incluídos geralmente referem-se a padrões como a proibição do trabalho escravo ou do trabalho infantil e não a níveis de remuneração, estabilidade do emprego ou quaisquer outros elementos que podem afetar diretamente os custos de produção. Trabalho escravo ou trabalho infantil são práticas condenadas e punidas no Brasil e em todos os países do Continente;
d) É inevitável que os temas tratados no âmbito da sessão sejam objeto de negociação no âmbito do projeto de construção de uma área de livre-comércio no Continente, entretanto os limites das negociações deverão sempre levar em conta, de um lado, instâncias mais amplas como a OMC e arranjos mais gerais, como, por exemplo, os protocolos e acordos globais sobre o meio ambiente. De outro lado, deverão ser levados em conta também compromissos bilaterais e regionais mantidos com países e regiões não pertencentes ao bloco;
e) Dois dos debatedores sugeriram a realização de um plebiscito para consultar a sociedade brasileira sobre a conveniência de o Brasil integrar a ALCA. Trata-se de proposta compartilhada por entidades sindicais internacionais e de outros países, sendo, portanto, uma tese a ser examinada e tratada politicamente pelas instâncias envolvidas com a implementação de ações externas.
PAINEL 1 (24/10/2001). Murilo Celso de Campos Pinheiro, Pedro Luiz C. da Motta Veiga, Embaixador Marcos Caramuru de Paiva, Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Mário A. Marconini, Deputado Hélio Costa, Kjeld Jakobsen, Deputado Marcos Cintra, Roberto Teixeira da Costa.
PAINEL 1 (24/10/2001). Mário A. Marconini e Deputado Hélio Costa.
Uma percepção que pode ser extraída tanto dos debates dessa sessão quanto do seminário como um todo é o entendimento de grande parte dos participantes de que o projeto ALCA é um projeto do governo dos Estados Unidos. Muitas vezes a rejeição ao projeto ALCA é confundida com rejeição aos Estados Unidos. Por outro lado, outros parecem entender que a constituição da ALCA é inevitável e que, portanto, cabe apenas negociar o espaço que caberá ao Brasil nesse arranjo. Nesse quadro, torna-se difícil discutir as possibilidades mais objetivas para o País. Na verdade, o projeto da ALCA é um projeto a ser construído por todos os países do Continente. Na eventualidade do projeto ser implementado, obviamente, as diferenças na participação dos países estarão condicionadas pelas assimetrias de poder e pelas perspectivas de benefícios também assimétricos. No entanto, apesar da assimetria de poder ser evidente e
indiscutível, na questão dos benefícios as oportunidades e riscos não precisam necessariamente pender sempre favoravelmente para o mais poderoso. Quanto mais amplas forem as negociações, mais variados serão os objetivos e interesses dos participantes. Por outro lado, as relações diplomáticas e comerciais com os Estados Unidos ao longo deste século sempre foram intensas, mesmo nos momentos em que se praticou uma política externa independente. O que está sempre em jogo é a qualidade dessas relações, que varia ao longo do tempo. Os Estados Unidos continuarão sendo parceiros de primeira grandeza para o Brasil com ou sem a ALCA.
Acordos sobre comércio, serviços, investimentos e outras dimensões das relações
Brasil/Estados Unidos continuarão a ser negociados independentemente da ALCA vir a existir. Além disso, essas relações também dependem do quadro geral da realidade política e econômica interna e externa. Em grande medida, por exemplo, as dificuldades ora enfrentadas pela Argentina influenciam negativamente a posição negociadora brasileira, uma vez que enfraquece o MERCOSUL e dificultam o fortalecimento da economia da região.
Finalmente, não está claro até que ponto os Estados Unidos realmente desejam a construção de uma ampla área de livre-comércio no Continente. Alguns sindicatos e setores industriais americanos têm-se manifestado contrários à ALCA. A autoridade necessária a ser concedida pelo Congresso ao Executivo americano para negociar o arranjo (fast track) tem sido objeto de controvérsia entre os congressistas e, mesmo que esse mecanismo de negociação seja aprovado, a aprovação poderá vir acompanhada de restrições tais que, virtualmente, retire o interesse do Brasil e de outros países na implementação da iniciativa. Historicamente, cabe lembrar que, nos anos imediatos ao fim da Segunda Guerra Mundial, o governo americano propôs à comunidade internacional a construção de uma Organização Internacional do Comércio (OIC). Apesar de ter sido um projeto elaborado pelo próprio governo americano, a iniciativa foi frustrada pelas forças políticas e econômicas daquele país, que, no Congresso, rejeitou a proposta expressa na Carta de Havana, que já contava com a adesão de dezenas de países. O caso mais ilustrativo e significativo para o tema em discussão neste seminário talvez tenha sido o episódio, em fins do século XIX, no qual o Secretário de Estado James Blaine tentou construir um arranjo regional muito semelhante à ALCA. Na carta enviada aos chefes de Estado do Continente, o governo americano convocava a realização de uma conferência continental com o objetivo de discutir:
PRIMEIRO. Medidas tendentes a preservar e promover a prosperidade dos diversos Estados americanos.
SEGUNDO. Medidas tendentes à formação de uma união alfandegária americana, sob a qual fosse promovido, tanto quanto possível e de forma lucrativa, o comércio das nações americanas.
TERCEIRO. O estabelecimento de comunicação regular e freqüente entre os portos dos diversos Estados americanos e com os portos de cada um dos outros Estados.
QUARTO. O estabelecimento de um sistema uniforme de normas alfandegárias em cada um dos Estados americanos independentes, para regular o processo de importação e exportação de mercadorias, taxas de direitos aduaneiros, um método uniforme de determinar a classificação e valor de tais mercadorias nos portos de cada país, e um sistema uniforme de faturas, e ainda a questão de saneamento e quarentena de navios.
QUINTO. A adoção de um sistema uniforme de pesos e medidas, leis de proteção e direitos de patentes, direitos autorais e marcas registradas de cidadãos de qualquer país em outro, e para a extradição de criminosos.
SEXTO. A adoção de uma moeda de prata comum, a ser cunhada pelo governo de cada país-membro, destinada a ser moeda legal em todas as transações comerciais entre os cidadãos de todos os Estados americanos.
A carta incluía ainda outros aspectos das relações continentais tais como a solução pacífica de controvérsias e, de fato, a Primeira Conferência Panamericana realizou-se em Washington, entre outubro de 1889 e abril de 1890. O resultado, porém, ficou muito aquém das expectativas de Washington. Pode-se dizer que o resultado mais concreto da conferência foi o estabelecimento da União Panamericana, um edifício que serviria de escritório de representação comercial para as Repúblicas americanas em Washington e que, cerca de meio século depois, veio a abrigar a sede da Organização dos Estados Americanos (OEA).