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Marcos Cintra

Livro: A tragédia do Cruzado (2/2)

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CAPÍTULO 2: Sob o impacto do Cruzado

Constam deste capítulo textos publicados em março e abril, logo após a decretação do Plano Cruzado. Na primeira parte, "A reação imediata", o editorial "Por uma estabilidade econômica sem recessão" (01/03/86) aplaude o plano, principalmente por não fazer recair sobre os assalariados os custos do ajuste; no mesmo dia, em "Tudo ainda por fazer", no entanto, a Folha aponta as dificuldades para sua correta implementação. Respondendo em 01/03/86 à pergunta da Folha, "Você acha que havia necessidade de um plano de choque para a contenção do ímpeto inflacionário?", Tabacof declara que sim e deposita grandes esperanças na estratégia de estabilização; em resposta à mesma questão, Cavalcanti de Albuquerque aponta razões que justificam pessimismo em relação aos resultados do programa. Lozardo (02/03/86) apoia o Cruzado, Afif (02/03/86) e Macedo (02/03/86) torcem pelo sucesso, apesar de algumas ressalvas, e Dornbush (02/03/86) acha que o governo deu "um passo brilhante, oportuno e decisivo". Onofre (02/03/86) relata a enorme aceitação popular do plano, e Ourique (02/03/86) mostra que as autoridades estavam prevendo um congelamento não muito longo e flexível, e pretendiam resgatar a eficácia das políticas monetária e fiscal. Setubal (09/03/86) reflete o otimismo que tomou conta da população, Longo (05/04/86), mais realista, prevê dificuldades, ainda que contornáveis, com o déficit público, ao passo que Paulani (23/03/86) mostra perplexidade; Maksoud (24/04/86) discorda totalmente do programa antiinflacionário, e Barros (09/03/86) aponta os indícios de inconstitucionalidade do decreto-lei 2.283/86.

Em "A polêmica dos salários", Singer (04/03/86) inicia uma discussão para avaliar o impacto do pacote nos ganhos dos assalariados. Gomes (05/03/86), Cavalcanti de Albuquerque (06/03/86), Barelli (08/03/86), Luna (08/03/86), Arida (09/03/86), novamente Singer (11/03/86), Nassif (13/03/86) e Bacha (16/03/86) dão continuidade ao debate, que acabou sendo relativamente esvaziado pelos ganhos salariais obtidos ao longo do Plano Cruzado.

Na seção "Alertas iniciais", os editoriais "Cuidado com o déficit" (15/03/86) e "A emissão de Cruzados" (05/04/86) pedem cautela com os gastos públicos e com as emissões monetárias. Toledo (06/04/86) mostra que a premissa de que a inflação brasileira é inercial não é verdadeira, comprometendo a consistência do programa. Bresser Pereira (15/04/86) sugere como iniciar o descongelamento, e Kuntz (20/04/86) mostra que a economia achava-se superaquecida, havendo pressões inflacionárias de demanda.


A REAÇÃO IMEDIATA

POR UMA ESTABILIDADE ECONÔMICA SEM RECESSÃO

EDITORIAL10/03/86

Traumática por sua natureza, admirável por sua coragem, mas complexa em seus efeitos e em sua viabilidade, a decisão anunciada ontem pelo presidente Sarney tem o caráter de um recurso extremo. Rompendo uma política de contemporizações e ambiguidades, o governo aceita o desafio de implementar uma tática de choque contra a inflação e assume, com isso, os riscos e responsabilidades inerentes à medida.

Contudo, essas responsabilidades não são apenas suas; passam a ser, neste momento, da nação brasileira em seu conjunto. Cumpre enfrentá-las em sua plenitude. Tomada a decisão, não há dúvida de que recuos, incoerências ou burlas poderão comprometer irreparavelmente o novo programa, precipitando a economia no mais ingovernável quadro de confusão e turbulência. A confiança geral no receituário proposto é condição necessária para seu êxito. Sem a convicção de que é preciso apostar nessas determinações, colaborando com elas, e sem a disposição inflexível do governo em levá-las a efeito, não se experimentará simplesmente um insucesso casual, mas um colapso político de imprevisíveis consequências. Afirmando o propósito de não fazer recair sobre os trabalhadores o peso de sua política; avançando na concessão de benefícios como o seguro-desemprego e a escala móvel; e reafirmando seu compromisso de manter o crescimento econômico, o governo merece o crédito de confiança de toda a sociedade.

Conheceu-se, em anos recentes, uma recessão inédita na história do país — e foi repudiada pela voz unânime dos brasileiros. Conhecem-se os efeitos cruéis do agravamento inflacionário — e impõe-se combatê-los com a mesma unanimidade. Não cabem, a partir de agora, intransigências que possam anular todo um plano de estabilidade sem recessão, fazendo-o sucumbir pela reação particularista e subterrânea ao congelamento de preços, à nova política salarial ou à desindexação da economia.

Tampouco é admissível a atitude dos que, diante da necessidade de uma fiscalização implacável, civil e coletiva em favor das novas determinações, querem confundí-la com o tumulto e a depredação. Com máxima confiança, empenho e firmeza, mas dentro da lei, o programa deve ser implementado. Na expectativa de que obtenha rápido sucesso contra a inflação, mas com a consciência de que não se poderá esquecer o compromisso pelo crescimento, o programa deve ser aceito. É digno — e necessita — da sustentação de todos os brasileiros.

TUDO AINDA POR FAZER

EDITORIAL10/03/86

Uma boa parcela da sociedade passará este fim de semana tentando digerir o decreto-lei 2.283, que promoveu uma verdadeira reforma monetária, e cujas repercussões, neste momento, são imponderáveis. A necessidade de reduzir a inflação a patamares administráveis era inelutável. Métodos convencionais — políticas monetária e fiscal contracionistas — há muito não surtiam mais efeito. Os riscos de que a inflação viesse desestabilizar o processo produtivo eram cada vez maiores. Pode-se questionar, entretanto, a oportunidade dessa medida que, aparentemente, decorreu do anúncio de uma inflação elevada no mês passado, ainda que, em termos anualizados nos últimos doze meses, a inflação não estivesse muito acima do patamar em que se encontrava em maio e junho de 1985 — medidas pelas correções monetária e cambial. Ademais, não deixa de ser preocupante que o governo esteja empenhado nessa nova e difícil empreitada quando ainda não foi capaz de regulamentar satisfatoriamente suas medidas anteriores — pacote fiscal de dezembro, unificação orçamentária, etc.

A semelhança entre o "Plano Austral" e a reforma monetária de Israel com o plano de estabilização do governo Sarney não é tão grande como pode parecer à primeira vista. Antes do choque, a inflação daqueles países era, além de elevada, volátil, pois não havia indexação institucionalizada. Além disso, havia desequilíbrios crônicos no orçamento fiscal e no mercado cambial — moeda sobrevalorizada — que levavam a um excesso de demanda interna e déficits no balanço de pagamentos. É claro, a reforma lá tinha que ser completada com cortes no dispêndio, arrochos salariais, máximos e taxas de juros escorchantes. Afortunadamente, o Brasil dispensa, por enquanto, a transferência de renda entre setores, na medida em que o déficit público e seu nível de endividamento estão estabilizados — fontes primárias de inflação e pressões sobre a taxa de juros —, o emprego e os salários se recuperaram recentemente e há folga suficiente no mercado de divisas, por força da queda dos preços do petróleo.

Tendo convivido com uma inflação razoavelmente estabilizada por muitos anos, o Brasil desenvolveu um mercado financeiro de médio e longo prazo com correção monetária pós-fixada, cuja passagem para a nova moeda não é isenta de complicações. Igualmente difícil é a conversão para cruzados dos preços em geral, pois, com frequências dispares de reajustes na moeda antiga, não podem ser expressos em cruzados simplesmente cortando-se zeros. Portanto, ao contrário de economias que fizeram uma reforma em situação quase hiperinflacionária, o Brasil se defronta com o problema da conversão pelas médias para preços, salários e contratos reajustados com frequência espaçada.

Não se sabe ainda qual a situação dos detentores de ORTNs e CDBs pós-fixados com vencimento inferior a doze meses. O decreto-lei 2.283 suprimiu a correção monetária, mas evidentemente não aboliu a inflação em cruzados. Assim, a fixação do valor das novas OTNs em valores constantes significa uma perda de capital para esses investidores, equivalente à inflação na nova moeda — na verdade um expurgo ou um imposto sobre o valor desse capital —, que será apropriada pelos devedores, entre eles o governo. Esta redistribuição aleatória de renda pode ser evitada se o governo, na regulamentação do decreto, exigir a repactuação desses ativos e créditos por dívida contratada a taxas flutuantes. Também complicada é a conversão dos preços, sem ferir mínimos princípios de equidade e bom senso. Um exemplo típico é o do empresário que ia reajustar sua tabela de preços, fixada há três meses, na semana que vem e que agora não pode, sem grandes prejuízos, competir com aqueles concorrentes que, por acaso, o fizeram na semana passada. Isto será evitado se a passagem desses preços para a nova moeda contemplar, como no caso dos assalariados, reajustes diferenciados.

Aqui também não se sabe como ficará nesse ponto a regulamentação do programa. Se a inflação nos próximos doze meses ficar perto dos 20% ao ano e os juros reais não superarem 15% ao ano, o plano poderá ser considerado um sucesso. Entretanto, se a inflação em cruzados começar a subir acima desse patamar, desencadeará reajustes salariais automáticos, realimentando, assim, a alta dos preços e estimulando seu controle de forma irrealista pelo governo, o que acarretaria prejuízos não só para assalariados como para empresários. O perigo neste caso seria a desestabilização do processo produtivo – investimentos sendo direcionados para aplicações financeiras –, com elevação dos juros reais e queda do nível de atividade. Neste cenário, o novo programa poderia acabar levando a um resultado muito diferente daquele que ora experimentam as economias que optaram pelo choque ortodoxo.

O COMEÇO DO PROCESSO REGENERADOR

BORIS TABACOF10/3/86

Quando a minha filha me disse esta semana que o preço das aulas de natação do netinho seria de três ORTNs mensais, descobri, de repente, que o Brasil não tinha mais moeda. ORTN, IPCA, dólar, UPC, MVR... Toda a parafernália criada para substituir o pobre cruzeiro, desmoralizado e depauperado, não podia mais servir de paliativo para a medida heroica – realizar a reforma monetária no país.

Não se deve defender padrões monetários absolutos e rígidos, que já não existem em qualquer parte do mundo. A moeda não pode ser um fetiche intocável, enrijecendo todo o processo econômico, nos tempos atuais de tantas aspirações e mudanças. Mas não se podia mais conviver impunemente com a completa desmoralização daquele instrumento indispensável de troca usado pelo homem desde a mais remota antiguidade e que sempre foi um símbolo de riqueza ou pobreza, poder ou fraqueza, em todas as sociedades e regimes.

Desde a mais poderosa empresa até o mais modesto assalariado, todos dirigiam sua energia e engenho à tarefa mirabolante de bater a inflação, ganhando a corrida da correção monetária. E ai de quem se distraísse, mesmo por alguns dias, de acompanhar esse jogo frenético – corria o risco de perder qualquer ganho obtido legitimamente, no esforço comum de produzir e ser remunerado.

Na área empresarial, as distorções eram extraordinárias. O lucro apresentado nos balanços era menos afetado pela realização das operações normais da empresa – fabricar, transformar, montar, prestar serviços, vender – do que pelas influências ativas e passivas da correção monetária. Empresas há que aparecem como altamente lucrativas, apesar de deficitárias nas operações para as quais foram criadas. E vice-versa.

A febre financeira contagiava a todos, na ânsia de escapar da verdadeira doença degenerativa que atacava os ativos monetários. O resultado foi o de desviarem-se as poupanças, grandes e pequenas, dos investimentos reprodutivos, cujo retorno era mais lento, menor e até mais arriscado do que a mera especulação financeira.

Por tudo isso, a reforma monetária, agora chamada de "programa de estabilidade econômica", era inevitável e só poderia ser realizada sob a forma de um choque na economia e na própria sociedade.

Como, quando e em que dose essa reforma deve ocorrer passou a ser a questão crucial. O governo, numa atitude corajosa, enfrentou o problema, já que progressos consideráveis haviam ocorrido em relação a outras variáveis econômicas, mas a taxa de inflação expressa pela correção monetária criava uma rigidez intransponível, jogando a inflação passada para o futuro.

A essência da reforma centrou-se, assim, na questão da correção monetária, que foi pura e simplesmente extinta daqui para a frente. O povo brasileiro inicia um complicado processo de retreinamento, de mudança de hábitos, de alterações psicológicas. Vai haver necessidade de mudar reflexos, já que viver com a inflação criava até atitudes inconscientes. Em suma, o sucesso das reformas vai depender de uma disposição coletiva, já que o próprio governo reconhece que não tem sozinho o poder de mudar uma situação que perdura há décadas.

Essa vontade política da comunidade passa por algumas dificuldades que podem pôr em risco o processo regenerador. Parece que a maior de todas está na área sindical. Se os trabalhadores não absorverem e aceitarem o programa econômico como um todo, ou seja, se além de se beneficiarem da conservação dos ganhos reais que obtiveram em 84 e 85 e mais o abono geral de 8%, se além de receberem o efeito benéfico do congelamento de preços, tentarem ainda assim obter das empresas mais vantagens, especialmente salariais, todo o programa será posto em risco.

Os empresários devem pagar um preço pesado, já que os preços se estabilizam após um período de achatamento das suas margens e custos fixos, que só foram repassados aos preços em 80% do real (o inverso do que aconteceu com os salários nesse mesmo período). É óbvio que todos os segmentos da sociedade devem compartilhar dos esforços sinceros e leais que deverão conduzir o país a um novo patamar, a partir do qual o país pode aspirar a um crescimento seguro e equitativo. Se a política ora adotada não for bem-sucedida, restarão poucas opções ao país e os caminhos poderão ser mais difíceis e dolorosos. A firme disposição dos cidadãos, imbuídos do mais elementar bom senso, deverá isolar aqueles que procurarem tirar proveito das perplexidades naturais de um período de transição. O sucesso da reforma monetária interessa à esmagadora maioria dos brasileiros, que não se deixará arrastar pelos que estão sempre dispostos a embarcar em aventuras políticas.


Riscos de um plano prematuro

MARCOS CINTRA

A questão levantada pela Folha exige uma resposta qualificada, na medida em que é preciso um ambiente econômico dentro do qual o plano de choque será aplicado.


Inicialmente, cabe indagar sobre as reais probabilidades de sucesso do programa. A "necessidade" de sua implementação aumenta na proporção direta de suas possibilidades de sucesso. Projetos com as características reformistas do pacote baixado pelo governo brasileiro têm, infelizmente, elevado grau de risco, denotando assim que o ímpeto inflacionário poderá persistir em cruzados. Neste sentido, não haveria necessidade de um plano de choque, mas sim de medidas econômicas preparatórias capazes de assegurar o sucesso do programa a ser posteriormente implementado.


Entre as várias causas que poderão comprometer o sucesso do plano de estabilização, gostaria de destacar três. Duas delas referem-se à não eliminação de causas estruturais do processo inflacionário, a saber, as reivindicações por elevados aumentos de salários reais e a incapacidade da administração em controlar os déficits públicos. A terceira relaciona-se à factibilidade material das medidas propostas.


As negociações entre governo e trabalhadores estão longe de terem chegado a um ponto em que as lideranças sindicais aceitem, sem maiores reações, a nova política salarial. Na realidade, o governo concede aos trabalhadores aumentos reais de salários médios além do que seria suportável pelo setor produtivo, agravado, este último, pelo rígido congelamento de preços. O resultado será uma forte compressão das margens de lucro do setor, o que resultará em pressões recessionistas inevitáveis. Por outro lado, os aumentos reais de salários poderão ser considerados insuficientes pelos trabalhadores, não obstante as garantias oferecidas pela escala móvel e pelo seguro desemprego.


Quanto ao déficit público, nota-se que o equilíbrio orçamentário observado nos últimos dois meses está longe de poder ser considerado uma conquista definitiva. O déficit foi financiado pela elevação da carga tributária, mas poderá, em contrapartida, gerar fortes pressões contracionistas no setor privado da economia, iniciando assim um novo ciclo de agravamento das contas governamentais de forma indolor.


Essas duas circunstâncias desmentem as declarações do ministro João Sayad ao afirmar na entrevista de ontem que não é preciso alterar a estrutura do sistema econômico (sendo necessário apenas eliminar a inflação inercial) já que, segundo ele, as pressões inflacionárias teriam sido extirpadas anteriormente.


O atual plano econômico envolve riscos que poderiam ter sido reduzidos numa fase preparatória. Nota-se, contudo, que foi deflagrado prematuramente, e nesse sentido, a oportunidade de sua adoção reduz-se sensivelmente.


UM PLANO MONETÁRIO GRADUAL E INTELIGENTEERNESTO LOZARDO2/3/86

A reforma monetária do governo não foi feita ao acaso. Várias medidas anteriores foram tomadas, permitindo que as autoridades monetárias formassem um cerco para realizar um ataque definitivo ao maior inimigo brasileiro, a inflação inercial.

Primeiro foi o retorno ao atrelamento das correções monetária e cambial ao IPCA. Depois veio o pacote fiscal, cujo objetivo foi aumentar a arrecadação do governo para enfrentar um déficit público de Cr$ 200 trilhões. Restava, portanto, eliminar das contas do Tesouro Nacional a grande sangria monetária: a conta movimento do Banco do Brasil. No entanto, esta já foi extinta, restando, ainda, terminar com os pesados subsídios ao trigo e ao álcool que perfazem o total de US$ 1,5 bilhões. Assim que estes subsídios forem eliminados, o déficit público estará bem equacionado e, caso os ministros não se comprometam, por motivos políticos, a efetuarem gastos além do orçado, o orçamento público ficará equilibrado em 86.

Fica claro que o governo preferiu um programa gradual de acertos nas suas contas e de combate à inflação, sem comprometer o crescimento econômico. A inflação inercial, ou seja, a correção monetária dos ativos financeiros, que corresponde a mais de 50% da inflação, funciona como uma força que encontra energia nela própria. A única forma de acabar com esse monstro hidra da inflação brasileira seria eliminando o processo de indexação automática de preços e ativos financeiros.

A reforma monetária proposta pelo governo garante a queda da inflação inercial pelos seguintes motivos: elimina o cruzeiro e cria uma nova moeda, o cruzado, com três zeros a menos que a moeda antiga; elimina a correção monetária dos ativos financeiros e congela os preços de produtos, não mais existindo a correção automática de preços; estabiliza os ganhos reais de salários por 12 meses e dá um ganho ao assalariado e um bônus de 8%; estabiliza os aluguéis e as prestações do BNH por um ano; altera o perfil da poupança voluntária com a trimestralidade dos ganhos em IPCA e juros de 6% ao ano; cria a OTN com valor de Cz$ 106, em lugar da ORTN; e fixa a paridade cambial em 13,80 Cz$/US$.

Dentro desse quadro de medidas, evidencia-se a estabilidade dos preços que eram anteriormente reajustados automaticamente, eliminando o maior fator de incerteza à retomada dos investimentos privados, ou seja, a inflação inercial.

Com essas medidas, não há dúvida de que iremos observar uma queda da inflação nos próximos meses, podendo chegar a quase zero nos meses de abril e maio. Para quem esperava uma inflação de 350 a 400% ao ano em 86, poderá contar com uma taxa de inflação inferior a 80% até dezembro.

Com os preços congelados, estabilidade nos ganhos reais de salários e eliminação do déficit público, a política monetária poderá atuar no sentido de manter o atual estado de liquidez do sistema financeiro. As taxas reais de juros do governo podem reduzir de patamar, chegando a um nível inferior a 15% ao ano. No entanto, cabe alertar que o plano de estabilidade econômica apresentado pelo governo poderá falhar caso o crescimento mensal da base monetária permaneça igual ou superior à taxa de inflação. É extremamente importante que o governo também congele a emissão de títulos públicos e a expansão da base monetária nos próximos 12 meses. Caso contrário, ele será obrigado a efetuar reajustes automáticos de 20% aos assalariados mais cedo do que o esperado, e rever não só a paridade cambial fixada em 13,80 Cz$/US$, como o valor fixado da OTN. Se a base monetária não for devidamente controlada, o atual programa perderá sua credibilidade, comprometendo a ordem social vigente e o crescimento econômico esperado.

Em resumo, pode-se concluir que a reforma monetária proposta visa estabilizar preços e promover o crescimento econômico, mas exige um comando austero e autoridade plena no controle das contas do governo e no orçamento monetário. Neste particular, a Secretaria do Tesouro, a ser criada, assumirá um papel singular no controle e na alocação dos recursos federais. O plano de reforma monetária é inteligente e representa a última medida de que o país precisava para reverter o processo inflacionário e garantir o crescimento econômico viável.

"CHOQUE HETERODOXO", O ÚLTIMO RECURSO?GUILHERME AFIF DOMINGOS2/3/86

O "choque heterodoxo" anunciado à nação pelo senhor presidente da República como um ato heróico de combate à inflação só se tornou necessário, embora não suficiente para o fim a que se destina, porque o governo perdeu totalmente nos últimos meses o controle sobre o processo inflacionário, face à expansão do déficit público e da emissão de moeda ao longo do segundo semestre do ano passado, fatores aos quais se somaram os reajustes salariais reais e a quebra da safra agrícola. Não bastasse a grande expansão da liquidez e da demanda existente, o governo, pelo pacote fiscal, reduziu a retenção do imposto de renda na fonte, aumentando a demanda e a liquidez da economia. Surpreendeu, portanto, a todos a preocupação do governo em procurar conter a demanda que ele mesmo, com sua política econômica, se encarregou de acelerar.

Os índices inflacionários dos últimos quatro meses, evidenciando a tendência da economia brasileira de caminhar para a hiperinflação, acabaram criando no governo um sentimento de pânico que precipitou a adoção do "choque heterodoxo", que, ao que se sabe, vinha sendo estudado pelas autoridades para uma eventual aplicação no futuro.

O raciocínio implícito no conjunto de medidas adotadas agora é o de que a única causa da inflação presente é a inflação passada, que se projeta sobre os preços pelo efeito da correção monetária ou das expectativas inflacionárias dos agentes econômicos. Segundo esse diagnóstico, bastaria eliminar a correção monetária, promovendo a desindexação, e atuar sobre as expectativas, via congelamento dos preços, para que a inflação desaparecesse como por encanto, sem perdas nem ganhos para nenhum agente econômico.

Outras hipóteses implícitas no raciocínio do "choque heterodoxo" são a de que os preços relativos estão alinhados, isto é, todos estão com seus preços atualizados, e a de que não existe outra causa que possa provocar inflação, como o déficit público e emissão de moeda para seu financiamento.

Analisemos essas hipóteses para avaliar a consistência e a coerência do "choque heterodoxo" aplicado. Os preços dos diversos bens e serviços transacionados no país (e para o exterior) não eram todos reajustados pelos mesmos critérios. As exportações tinham seus preços atualizados diariamente pela desvalorização cambial, alguns produtos industriais estavam submetidos ao CIP e, com pedidos de reajustes pendentes, outros estavam livres e com mercados favoráveis, enquanto outros, embora livres de controles, estavam contidos pela condição de mercado. Os preços e tarifas do setor público não apresentavam todos a mesma situação, com alguns tendo sido reajustados recentemente enquanto outros apresentavam grande defasagem.

Quanto ao déficit público, o fato de que em janeiro e fevereiro foi possível financiá-lo com um mínimo de expansão monetária e sem a colocação de títulos públicos não é garantia de que ele tenha sido definitivamente eliminado, porque existe uma forte sazonalidade na receita pública. Não se pode esquecer que o orçamento aprovado pelo Congresso era deficitário.

Um outro ponto crucial em relação às hipóteses de alinhamento dos preços relativos é que os salários no Brasil não eram corrigidos na mesma data-base, o que exigiu a concessão de um reajuste a todos os salários para equipará-los. Isso introduz complicações em relação ao congelamento dos preços, porque algumas empresas terão que suportar correção dos salários de prazos mais longos que outras.

A não ocorrência de todas as hipóteses necessárias para que o "choque heterodoxo" obtenha sucesso fará com que os diversos segmentos da sociedade sejam diferentemente atingidos pelos seus efeitos. Alguns poderão ganhar, outros manterão suas posições, muitos perderão com maior ou menor intensidade.

Quem reajustou seus preços mais recentemente poderá não sofrer perdas, enquanto os que estão com seus preços defasados não poderão corrigi-los durante o congelamento. Os trabalhadores serão grandes perdedores no processo de ajuste, na medida em que seus salários serão corrigidos pelo seu "valor real médio", a exemplo do que ocorreu com o salário mínimo, que passou de Cr$ 600.000 para Cr$ 800.000, equivalentes a Cz$ 800, com um reajuste de 33,3%, enquanto a inflação no período novembro/fevereiro foi de 64%. Isso, por exemplo: em novembro de 1985, o salário mínimo valia o equivalente a 10 kg de carne, em dezembro comprava 9 kg, e assim por diante até chegar a 5 kg em fevereiro. Na média, dava para comprar, por hipótese, 7,5 kg de carne. Depois de seis meses, o reajuste permitirá ao assalariado adquirir com um salário mínimo apenas 7,5 kg de carne ao invés dos 10 kg que comprava em novembro.


Esse conceito de salário real médio pode ser compreendido do ponto de vista econômico, mas não pode ser aceito do ponto de vista ético. O salário do trabalhador perde seu poder aquisitivo devido à inflação, pela qual ele não é responsável. Cabe ao governo manter a moeda estável para que seu poder de compra não se deteriorar. O mínimo que se pode esperar da política governamental é que essa perda salarial seja reposta integralmente. O decreto-lei baixado pelo presidente Sarney torna definitiva a perda transitória do salário, e mesmo a concessão de um abono de 8% não é suficiente para cobrir essa perda.

Ainda há muitos pontos do "choque" que precisam ser analisados e que dependem de medidas complementares. Creio que se pode afirmar que o sucesso dessa nova política econômica depende fundamentalmente da eliminação do déficit público e da emissão de moeda para sua cobertura.

Como o presidente Sarney demonstrou coragem para a aplicação desse violento "choque" sobre o setor privado e a classe trabalhadora, é lícito esperar que ele usará a mesma coragem e determinação para conter o gasto público e, com isso, assegurar o êxito desse programa. Esses são os nossos votos.


A REFORMA MONETÁRIA NO BRASILRudiger Dornbusch2/3/86

O governo deu um passo brilhante, oportuno e decisivo ao escolher a reforma monetária para interromper o processo inflacionário. Restaurou a economia para sua tarefa fundamental, que é criar empregos e promover o progresso econômico, ao invés de servir como um paraíso para especuladores.

Há um ano, quando André Lara Resende e Pérsio Arida apresentaram pela primeira vez sua proposta de reforma, que terminou sendo conhecida como "Proposta Lara-Arida", eu fui cético. Naquela época, a inflação não era tão explosiva como é agora, o orçamento do governo não estava equilibrado como está atualmente, e a proposta parecia talvez inteligente demais para ser aceita imediatamente. Muita coisa mudou desde então e eles certamente merecem reconhecimento por promoverem essa mudança dramática para estabilizar a economia brasileira.

Desde o ano passado, o Brasil enfrentou diversos desafios: os preços mundiais do petróleo desabaram, o dólar entrou em colapso — e a taxa de câmbio brasileira acompanha o dólar — e as taxas internacionais de juros caíram. Com isso, o serviço da dívida externa também diminuiu. Os programas de investimento dos anos setenta, que antes eram interpretados como gigantismo militar, mostraram-se instrumentos magníficos para a substituição de importações e aumento das exportações. A reforma fiscal, aprovada no final do ano passado por um Congresso aparentemente inconsciente dos grandes aumentos de impostos nela embutidos, gerou recursos suficientes para equilibrar o orçamento.

O fato é que no começo de 1986, por uma sorte incrível e também como um retorno a boas medidas de política econômica, o Brasil se colocou numa posição onde a inflação era o único problema existente. Mais do que isso, a única razão para a continuidade da inflação não residia primariamente no déficit orçamentário, mas em uma indexação que estava ligada à inflação passada e aumentava os custos salariais, forçando aumentos nas taxas de câmbio e nos preços do setor público, gerando um círculo vicioso.

O Brasil agora tomou medidas decisivas, seguindo o exemplo da Argentina e de Israel, ao adotar uma reforma monetária. O apoio público que se desenvolveu para suportar essa reforma, incluindo o forte e imediato apoio dos professores Bulhões e Simonsen, fez com que a reforma monetária fosse a única opção, dominando claramente as políticas depressivas à moda do FMI.

De uma forma geral, as medidas da reforma monetária são simples: uma nova moeda, que é fixada em termos de dólar, controles rigorosos dos preços, reforçados pelo apelo ao público, que se transformou em inspetor dos preços, fixação de uma taxa de juros nominal, fixação dos salários sujeitos a uma escala móvel e, naturalmente, uma infinidade de outros detalhes.

O ponto básico, entretanto, é que não se pode conceber um programa que pudesse fixar de forma mais amarrada todos os preços na economia. O programa, desta forma, é exatamente o oposto da perspectiva do mercado livre. Normalmente, os bancos credores e o FMI estariam em alerta. Mas a experiência de Israel e da Argentina lhes ensinou a prudência. O fato básico é que existe a necessidade de coordenar as expectativas em torno do novo objetivo de estabilidade dos preços, e nada pode funcionar melhor do que o fato de que os preços estão, na verdade, estáveis. Naturalmente, existe o problema de mais longo prazo de que os controles terão que ser relaxados e de que as pessoas acreditarão na estabilidade dos preços sem o controle. É muito melhor usar os controles para treinar o público nesta grande experiência.

Mas por que haveria alguém capaz de acreditar que o programa brasileiro vai funcionar? Não é verdade que, na história monetária mundial, dois em cada três programas de estabilização falharam? Além disso, a profusão de controles nesta circunstância não é uma indicação de que o programa pode ser declarado morto antes mesmo de começar? As principais razões são que, quando uma estabilização ocorre, ela não é uma operação simples como amarrar sapatos: as dificuldades políticas fazem com que o governo tente estabilizar mesmo que o orçamento ainda não esteja sob controle. A taxa de câmbio é fixada, mas não ao nível sustentável, porque isso significaria cortes nos salários reais, além do que é politicamente possível. Em geral, muitas vezes, as precárias condições iniciais são reforçadas por notícias ruins, que podem levar um programa já sobrecarregado ao fracasso.

A celebrada estabilização na Alemanha em 1923 foi precedida por dois fracassos, assim como a estabilização na Polônia em 1923 ou a famosa reforma de Poincaré na França em 1926. No caso do Brasil, há espaço para um grande otimismo. Em primeiro lugar, o orçamento, descontando-se o componente da inflação no serviço da dívida, está praticamente equilibrado. Não está claro se o déficit é, na realidade, zero, 2% ou mesmo 3%, mas ele é com certeza muito pequeno, comparável ao da Alemanha e ao do Japão. Ele é baixo, mesmo se descontados os aumentos de impostos da reforma fiscal de dezembro e os recolhimentos de impostos reais que inevitavelmente virão quando o fim da inflação também acarretar o fim da erosão dos recolhimentos de impostos devido à inflação.

Igualmente importante é o fato de que o equilíbrio externo brasileiro mostrou melhorias impressionantes durante os últimos dois anos. O superávit, excluindo o pagamento de juros, foi quase suficiente para cobrir o total do serviço da dívida externa, e isso em um ano em que o crescimento foi de 8%. Naturalmente, este ano será ainda melhor. Devido à grande queda do preço do petróleo, que aumenta o superávit da balança comercial em US$ 2 ou 3 bilhões, ou seja, 25% do total das despesas com importação. Outro elemento positivo é o fato de que o Brasil seguiu a queda do dólar, que se depreciou nos últimos doze meses, e assim ganhou em competitividade externa, talvez algo em torno de 15%.

Finalmente, as taxas de juros mundiais estão caindo, assim como a Alemanha tomou juízo.

Isso significa ainda mais economia das receitas cambiais para um país devedor como o Brasil. As reduções nos "spreads" — que estão ficando na moda — e, certamente, com um programa bem-sucedido de estabilização, o Brasil se coloca como o primeiro na fila para um tratamento especial.

Desta forma, existe uma margem confortável para enfrentar problemas inevitáveis. O desafio agora é tornar o congelamento salarial aceitável para os trabalhadores e não ter piedade das empresas que estão em posição oligopolista e que possam subverter a estabilidade dos preços. Se conseguir isso, o programa certamente vai sobreviver por meio ano ou mais. A questão agora é se preparar para a transição de médio prazo, quando a economia terá que conviver com preços estáveis sem os controles onipresentes.

Confiança na taxa de câmbio e no orçamento são os elementos principais para a credibilidade do programa. Os controles agora permitem ao governo viver numa lua-de-mel, durante a qual estabelece os fundamentos para a transição. Para não parecer muito otimista, é necessário apontar um programa amplo.

Durante o período de alta inflação, os bancos viveram um Carnaval. Os custos operacionais eram fantásticos porque eles podiam facilmente se proteger em um sistema onde pagavam pouco pelos depósitos e empréstimos e emprestavam a mais de 200%. A estabilidade dos preços significa uma crise para o sistema financeiro e um desafio para o governo evitar o colapso do sistema financeiro sem jogar dinheiro de graça para os banqueiros. Durante os próximos três meses, a atitude mais frequente será de ceticismo: "os preços estão estáveis, mas...". A evidência na Argentina prova que um período de pelo menos 3 meses deverá passar antes que os economistas defensores do mercado livre parem de se queixar e de argumentar que "os controles de preços devem ser abolidos", que "a taxa de câmbio deve ser flexível", que "é preciso maior controle monetário" e todas as coisas que eles gostam de falar e que os fazem tão chatos...

Tudo isso coloca uma carga sobre as costas do governo, que se depara com um grande ceticismo do público, dos profissionais e de alguns grupos de interesse. Esperamos que o retorno da estabilidade de preços e uma política de crescimento prudente consiga o apoio da classe trabalhadora para um investimento do qual, em última análise, será a principal beneficiária.


SOB CHOQUE, SOBRE O CHOQUEROBERTO MACEDO2/3/86

Assumi o risco de escrever sobre um tema a respeito do qual continuo indagando. Depois de tantas perguntas, minha opinião foi sendo formada ao longo de discussões realizadas desde quinta-feira à tarde, quando a notícia do choque chegou ao meu conhecimento.

Agradeço aos interlocutores que me esclareceram. Houve também aqueles que confundiram, mas deixo-lhes também um crédito, neste caso de Cr$ 1 bilhão, assinado em 26 de fevereiro de 1966, a ser pago no mesmo dia de 2020, na forma do artigo 9º do decreto-lei que concretizou o choque.

Não concordo com o nome de "heterodoxo", pois a rigor este termo se aplica ao que é oposto à ortodoxia. Nosso choque tem elementos ortodoxos. Por exemplo, a reforma do padrão monetário, a taxa de câmbio fixa e as medidas fiscais e monetárias de dezembro e janeiro, que limparam o terreno e devem ser vistas hoje como parte integrante do choque. Esses aspectos se completam com ingredientes ditos "heterodoxos", mas indispensáveis ao choque numa economia fortemente inflacionada e indexada, como é o caso de uma desindexação, ainda que parcial, e das regras de conversão, para cruzados, de rendimentos e ativos financeiros expressos em cruzeiros.

No que tem de novidade ou "heterodoxo", nosso choque vai além do argentino e poderia ser chamado de "heterodoxo ou quadrado". Deixo de lado o seguro-desemprego, que aplaudo de pé - desde 1981 vinha brigando por ele - e cuja presença no decreto só se explica pela necessidade de dourar a pílula, pois sua coerência, como o resto, só se sustentaria se o governo aguardasse uma recessão como resultado do choque, o que não é o caso.

As novidades que pretendo destacar aqui são a garantia de continuidade imediata da indexação para as contas de poupança e a introdução da escala móvel para o reajuste dos salários, com este ocorrendo automaticamente se a inflação em cruzados alcançar 20%. A permanência da indexação das cadernetas talvez seja uma novidade apenas aparente, pois ela também se inscreve como uma medida de caráter monetário-fiscal, ao ampliar o espaço para o endividamento do Tesouro a juros privilegiados.

Já a escala móvel parece-me não só uma autêntica novidade, como envolve também um alto risco para o sucesso do choque, dentro de um cenário que contemplo da seguinte forma. Juntamente com o choque, o governo provocou um aumento geral de salários nominais no processo de transformação de cruzeiros para cruzados. Embora a ideia tenha sido a de trazer os salários para o seu valor real médio nos últimos seis meses, a concessão de 8% a mais, juntamente com o fato de que os reajustes de todas as categorias profissionais coincidirão no mesmo instante e tempo - em circunstâncias normais, os reajustes se diluem ao longo do ano - deve provocar um súbito e significativo aumento de salários nominais no conjunto da economia. Não fosse o congelamento, as empresas procurariam repassá-lo aos preços. Contudo, o resultado do congelamento não será absoluto nos primeiros momentos e sua eficácia deverá diminuir com o tempo. Nessas condições, na primeira oportunidade haverá a tentativa de repasse. Há também o problema de que o governo deixou para a última hora e acabou suspendendo os reajustes de alguns preços importantes - gasolina, álcool, leite, automóveis etc. - ao mesmo tempo em que há preços não "congelados", fixos há algum tempo e que estavam às vésperas de novos reajustes. Agora foram suspensos, mas estão na conta dos "reajustes corretivos" que pressionarão o controle de preços nos próximos meses. Em outras palavras, pode-se dizer também que, como não estávamos próximos da hiperinflação, a economia ainda não estava madura para o choque. Os preços relativos não estavam adequadamente alinhados e problemas de implementação impediram que isso ocorresse, além de o próprio choque impor uma pressão sobre os salários que, por si só, cria novos problemas.

A questão fundamental está em conter a pressão inflacionária que os agentes econômicos exercerão nos próximos meses ao tentarem recuperar posições perdidas tanto pelo próprio choque quanto pelo fato de que este pegou muita gente de surpresa, na véspera de um novo reajuste de preços não concretizado (louve-se também, aliás, o sigilo com que tudo foi guardado, fugindo à tradição em que a "informação privilegiada", como no caso de algumas maxidesvalorizações no passado, chegava ao conhecimento de muita gente).

Se a tentativa de recuperação de posições for "bem-sucedida" e, como consequência, a inflação chegar a 20% num prazo relativamente curto - digamos, de três a seis meses -, a escala móvel, que igualmente apresenta o problema de atingir todas as categorias ao mesmo tempo, se encarregará de recomeçar uma nova aceleração do processo inflacionário. Aí poderemos voltar ao que ninguém deseja, ou seja, às taxas de inflação a que levava a política anterior, esta realmente uma estranha experiência, por contrariar tanto a ortodoxia quanto a heterodoxia econômicas, ao desprezar por muito tempo a disciplina fiscal, a questão monetária e o papel dos salários no processo inflacionário.

Embora discordando do "timing", encontrando aqui e ali divergências de concessão e alertando sobre esses problemas de implementação, é precisamente por não pretender voltar ao Brasil tão inflacionado dos últimos anos que vejo o choque, agora uma realidade, aceitavelmente bem articulado, com boas chances de sucesso e torço por ele. Não apenas como economista, mas também como todo brasileiro que gostaria de dizer que a inflação já era.

PARA LOPES, REAÇÃO POPULAR GARANTE O SUCESSOJOSÉ ONOFRE2/3/86

Nas primeiras 48 horas de aplicação do seu Plano para o Programa de Estabilidade Econômica, o governo já obteve o requisito considerado fundamental para essa operação: a participação dos consumidores como força de vigilância no cumprimento, pelos pontos de venda, do congelamento de preços. "Foi importante essa reação saudável da população", disse o professor Francisco Lopes, da PUC-Rio, desde outubro um dos principais assessores informais de André Lara Rezende e Pérsio Arida, os economistas do governo que articularam o projeto.

Lopes é considerado o responsável pela formulação das ideias do Plano Austral argentino, uma experiência - junto com a de Israel - que deu origem à decisão brasileira de desindexar a economia. "Mas há diferenças entre a experiência argentina e o que está sendo feito no Brasil. No Austral houve o congelamento dos salários. O cruzado traz a livre negociação e a escala móvel. O programa brasileiro defende muito mais a renda do trabalhador. É extremamente progressista", disse Lopes. As reações contrárias - surgidas de empresários e da Central Única dos Trabalhadores - são avaliadas pelo professor Lopes como naturais nos primeiros dias de execução do plano. "Os opositores são os que não entenderam e os que ganhavam com a inflação alta. O importante é que a economia foi desindexada. Vamos entrar num mundo de inflação de um por cento. Dois por cento já será muito", diz Lopes. Ele confia que a experiência de listas com os produtos de preços congelados e a estrutura de controle de preços dão ao governo condições para controlar a aplicação do seu projeto "mas o mecanismo mais eficaz é o clima que se criou na população compradora". Uma possível reação empresarial, com o desaparecimento de produtos e o surgimento do mercado negro, é uma hipótese recusada por Lopes. "Não houve mercado negro na Argentina", diz ele. Admite que surjam problemas, causados por uma inadaptação de trabalhadores e investidores que, acostumados a conviver com uma inflação muito alta, levarão algum tempo para perceber as vantagens da nova situação econômica. "Há trabalhadores, com reajuste previsto para março, que estavam calculando uma modificação de 100% em seu salário e não terão, o que significa que terão perdido poder aquisitivo". Esclarece que o plano nasce de ideias que amadureceram nos últimos dois anos, em cima de experiências concretas, ao ponto de poderem ser executadas sem sequelas. "Prevejo um grande movimento nas bolsas de valores e duvido que o dólar paralelo vá subir. Não acredito em evasão de capitais. O Brasil continua a ser um país com enormes possibilidades de investimento, principalmente agora. O fundamental é que as pessoas se engajem no processo".


O CONGELAMENTO NÃO SERÁ LONGO, DIZ CARDOSO DE MELLOARMANDO OURIQUE2/3/86

O governo Sarney não pretende manter o congelamento de preços por um período muito longo, segundo o assessor especial do ministro da Fazenda, João Manoel Cardoso de Mello. A estratégia é trazer a inflação a zero ou próximo disso durante alguns meses, para depois permitir uma variação salutar nos preços relativos.

"A inflação será controlada sem trauma", disse, enfatizando que o programa brasileiro não guarda muitas semelhanças com o tratamento de choque do Plano Austral argentino, de julho do ano passado. Ao contrário do caso argentino, o governo Sarney preferiu não tabelar os juros. Também não realizou uma maxidesvalorização cambial, que inibiria a demanda interna.

"O programa brasileiro é flexível", afirmou. "O segredo é que não tem choque", acrescentou Cardoso de Mello, em entrevista à Folha na noite de sexta-feira. Segundo ele, o Plano Austral aguçou a recessão argentina por ter tabelado as taxas de juros em níveis muito elevados e por ter congelado os preços por um período muito longo. Além disso, a economia argentina carecia de qualquer dinamismo no momento do "choque".

No Brasil, a reforma monetária está sendo implementada num momento de forte expansão econômica, após os trabalhadores terem obtido ganhos reais de salário e o governo ter colocado o déficit orçamentário sob controle. Cardoso de Mello disse que o programa anunciado na sexta-feira "não foi improvisado". "Estamos trabalhando desde a terceira semana de setembro para criar condições propícias", afirmou. A operação mais complexa executada pelo governo nos últimos meses, em preparação à reforma monetária, foi o alinhamento dos preços relativos dos produtos industrializados.

Segundo Cardoso de Mello, praticamente todos os produtos controlados pelo CIP estão com os seus preços relativos alinhados conforme a média de preços praticados entre dezembro de 1984 e fevereiro de 1986. O Ministério da Fazenda, disse, apurou, através de listagens do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os preços médios de centenas de produtos nesse período de 15 meses. Com esta informação, desde a terceira semana de setembro, o governo alinhou os preços relativos segundo suas médias. Essa operação exaustiva terminou na última quarta-feira, com o aumento para as tarifas de energia elétrica.

Esse alinhamento de preços industriais, segundo Cardoso de Mello, foi imprescindível para o êxito da reforma monetária. Se a defasagem entre preços estivesse muito acentuada no dia 27, o governo não conseguiria manter o congelamento sem provocar um trauma recessivo. O governo, segundo Cardoso de Mello, não será inflexível na manutenção dos atuais preços relativos. Depois de ajustar os preços, o governo poderá adaptar as medidas de acordo com a evolução econômica, favorecendo assim o dinamismo da economia. Com um volume elevado de reservas cambiais, os principais preços agrícolas serão mantidos com o auxílio de importações (alternativa que a Argentina não teve). Eventualmente, os preços agrícolas também poderão variar.

Com a expansão da economia, disse Cardoso de Mello, a indústria brasileira atingiu nos últimos meses "margens escandalosas" de lucro. Dessa forma, as empresas poderão absorver com facilidade o congelamento de preços. Cardoso de Mello não teme o risco de a indústria reduzir sua produção por problemas de custos. "A empresa que reduzir a produção perderá o seu mercado para as concorrentes", disse. Mencionou também que a iniciativa privada não terá dificuldades para absorver o abono de 8% concedido aos trabalhadores pelo decreto-lei 2.283. Lembrou que a indústria costuma embutir nos seus preços a defasagem de 30 a 60 dias entre a entrega da mercadoria e o pagamento da venda. Com a inflação zerada, essa diferença será convertida em lucros.

O governo não precisou realizar uma maxidesvalorização cambial porque a paridade do cruzeiro para o exportador de produtos industrializados estava desvalorizada em pelo menos 7% no último dia 26. O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado) aumentou mais nos últimos meses por pressão do choque agrícola, o que favoreceu o exportador de produtos industrializados. Além disso, desde os últimos meses do ano passado, o dólar sofreu uma desvalorização de 26% contra outras moedas fortes, o que também favoreceu as exportações brasileiras, que atingiram níveis recordes em janeiro e fevereiro.

A reforma fiscal de dezembro, segundo Cardoso de Mello, foi outro passo importante para criar condições adequadas às medidas anunciadas na sexta-feira. O governo conseguiu controlar o déficit orçamentário (com a ajuda da transferência de recursos das cadernetas de poupança para o Banco Central). Em janeiro e fevereiro, o governo retirou Cr$ 24 trilhões (com o resgate de títulos da dívida pública) da economia. A reforma monetária, afirmou Cardoso de Mello, permitirá uma redução acentuada da dívida pública e um aumento expressivo da arrecadação (favorecida pela ausência de inflação entre o fato gerador do imposto e o seu pagamento).

A reforma monetária, segundo ele, está devolvendo ao governo "o comando da política fiscal e monetária". E acrescentou: "Agora poderemos fazer política econômica". A maior preocupação de Cardoso de Mello no momento é com a imposição inicial do congelamento de preços. "Nisso, seremos implacáveis, estamos dispostos a fazer o que for necessário para impor o congelamento", afirmou Cardoso de Mello, que espera o apoio da população nesse sentido.



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