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Marcos Cintra

Habitação Popular: Avaliação e propostas de reformulação do sistema financeiro da habitação

Publicado:

Livro: Estudos Econômicos Volume 16 - Nº 1 - Instituto de Pesquisas Econômicas (USP) 1986



RESUMO

Principais Considerações:

  • O déficit habitacional brasileiro atinge proporções alarmantes. A crescente urbanização, o crescimento populacional e a sub-habitação (favelamento e encortiçamento) geraram um déficit habitacional que, para ser sanado, exigirá a construção de 13,6 milhões de habitações nas cidades e 3,7 milhões nas zonas rurais, durante a década de 80.

  • Nos primeiros 14 anos da década, nada foi feito para estancar o processo. Pelo contrário, agravou-se consideravelmente a questão, com maiores contingentes populacionais em condições de absoluta carência habitacional.

  • A atuação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), gerido pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), foi desapontadora, não tendo cumprido, nos últimos 20 anos, sua função primordial, ou seja, atenuar o déficit habitacional para as faixas de interesse social.

  • O BNH transformou-se numa gigantesca e diversificada estrutura, fugindo de suas metas inicialmente estabelecidas, atuando intensamente em áreas de responsabilidade de administração direta como saneamento, infraestrutura, planejamento urbano e comunitário, transporte, desenvolvimento urbano e outras áreas afins. Reduziu-se, assim, em um terço sua capacidade de atuação na área habitacional strictu sensu.

  • Ademais, o SFH, permitindo a hipertrofia do SBPE, bem como impondo frouxos controles nas áreas de atuação do BNH, criou condições para o distanciamento entre suas operações habitacionais e as populações de baixo poder aquisitivo, perdendo suas características operacionais de interesse social.

  • Ao invés de o SFH beneficiar a população carente de moradias, transformou-se num aparato financeiro cujos grandes beneficiários têm sido a classe média compradora de imóveis pelo SFH, as grandes construtoras e, principalmente, os agentes financeiros.

  • Considerando-se que 77% do déficit habitacional brasileiro acha-se localizado nas famílias de até 3 salários mínimos de renda mensal, o descolamento do BNH de suas funções sociais torna-se evidente ao constatar-se que, para aquela faixa de renda, canalizaram-se tão somente dos recursos disponíveis; para o SFH como todo, nota-se que somente 12% dos recursos disponíveis atenderam famílias naquela faixa de interesse social.

  • Financeiramente, o SFH acha-se apoiado em bases instáveis, tecnicamente incorretas. Os resíduos que provavelmente serão deixados sem cobertura pelos atuais mutuários serão de tal magnitude que o FCVS não terá a mínima capacidade de cobri-los, legando à sociedade brasileira um “furo” financeiro de proporções incalculáveis.

Recomendações:

  • Há necessidade de fazer o SFH voltar sua atenção exclusivamente para a produção habitacional (strictu sensu) de interesse social, ou seja, para famílias de renda até o teto máximo de 3 (ou 5) salários mínimos de renda mensal, proibindo-se operações que ultrapassem 900 UPC.

  • Retorno ao plano de amortização financeiramente correto, o Plano de Correção Monetária, pelo qual prestações e saldos devedores são corrigidos trimestralmente pela variação das UPC.

  • Sugestão 1: O fomento à atividade habitacional de interesse social será implementado exclusivamente pelo BNH, que passará a atuar como agente do governo. Os recursos do FGTS, acrescidos dos depósitos de poupança (cadernetas de poupança), passarão a ser captados exclusivamente em nome do BNH, podendo utilizar-se de taxas de juros flutuantes para garantir sua competitividade face a outros papéis.

  • Sugestão 2: O BNH, assim capitalizado, passaria a financiamentos tão-somente aos usuários finais dos serviços habitacionais, não mais operando com repasses via agentes financeiros, e nem tampouco financiando as atividades dos agentes (construtores, Cohabs ou Cooperativas Habitacionais).

  • Sugestão 3: Os atuais agentes financeiros do SFH, que compõem o SBPE, passariam a atuar como bancos hipotecários, vinculados ao Banco Central, com área de atuação especializada no mercado imobiliário, e independentemente do BNH.

  • Sugestão 4: Implementação, com as alterações que se fizerem necessárias, do disposto no artigo 23 da Lei 4380/64, que criou o BNH, tornando compulsória a subscrição de Letras Imobiliárias de emissão dos bancos hipotecários, no percentual mínimo de 5% sobre o valor das construções cujo custo unitário exceda 500 vezes o salário mínimo.

  • Sugestão 5: Estender o FGTS ao trabalhador informal e, ao mesmo tempo, limitar os créditos naquelas contas, rurais e urbanas, tão-somente à correção monetária plena, não remunerando-as com juros reais.

  • Dentro dos programas de aquisição da casa própria, o BNH deverá privilegiar a solução dos "12 estágios", baseada na aquisição do lote popular urbanizado e num processo orientado de “autoconstrução”. É importante ressaltar a necessidade de financiar mão-de-obra própria e/ou familiar no processo de autoconstrução, desembolsando recursos para a manutenção dos autoconstructores durante o período de obras.

  • Sugestão 6: Os planos de financiamento da casa própria do BNH deverão garantir plena equiparação salarial, limitando o comprometimento de renda familiar dos mutuários. A diferença entre o comprometimento de renda familiar contratual e aquele resultante do valor das prestações, quando este superar aquele, deverá ser coberta, a fundo perdido, pelo governo.

  • Sugestão 7: A adoção de programas orientados para a suplementação de aluguel para as faixas de renda inferiores, podendo tais planos serem desenvolvidos conjuntamente com prefeituras, companhias públicas locais e regionais e iniciativa privada. A forma de implementação financeira desses programas será a complementação do valor do aluguel em imóveis e em condições previamente determinadas, de forma a não comprometer mais do que uma percentagem estipulada da renda familiar.


1. A QUESTÃO DA HABITAÇÃO

O problema habitacional é dos maiores desafios para os responsáveis pelo planejamento econômico brasileiro. Não somente em função das altas taxas de crescimento demográfico, mas também pelo acelerado processo de urbanização, sucedem-se as crises de falta de moradias em condições adequadas de habitabilidade. A situação é agravada pela precária manutenção das unidades existentes, fazendo com que ao crescimento vegetativo da demanda habitacional somem-se não somente a elevada demanda de reposição das unidades deterioradas, mas também aquela oriunda da necessidade de substituição da sub-habitação. Esses quatro componentes da demanda habitacional brasileira — o crescimento populacional, a demanda oriunda do processo de urbanização, a reposição das unidades deterioradas e a substituição da sub-habitação — formam, conjuntamente, um quadro cuja gravidade não tem sido amenizada, mas intensificada, pela incapacidade de atendimento dessa crescente demanda habitacional.

Na tabela 1, constata-se que a população brasileira, além do elevado crescimento, segue um padrão de acelerada urbanização, fazendo com que a demanda habitacional se concentre, geograficamente, nas cidades. Surgem assim deficiências habitacionais urbanas graves, ao mesmo tempo em que as construções residenciais rurais são abandonadas, sofrendo acelerado processo de deterioração. Isso é particularmente evidente nas regiões agrícolas mais desenvolvidas, onde, por força das políticas econômica, trabalhista e agrícola seguidas nas últimas décadas, houve a gradual expulsão do trabalhador rural, assalariado ou não, impelindo-o a refugiar-se nas cidades.


Nota-se, ainda, que a urbanização ocorre de forma concentrada, de tal modo que grande parte da população situa-se em algumas poucas metrópoles. Em 1960, 32,8% da população urbana encontrava-se em cidades com mais de 500.000 habitantes. Segundo o Censo de 1980, somente as 10 maiores áreas metropolitanas do Brasil (1) abrigavam 35.676.528 habitantes, aproximadamente 45% de toda a população urbana brasileira.

Segundo projeções das Nações Unidas, as grandes áreas metropolitanas brasileiras deverão se posicionar entre as maiores do mundo. Em 1950, o Rio de Janeiro, com 2,9 milhões de habitantes, e São Paulo, com 2,5 milhões de habitantes, situavam-se, respectivamente, em 16º e 23º lugares dentre as 50 maiores áreas metropolitanas do mundo. Em 1975, São Paulo passou a ocupar o 9º lugar, com 8,3 milhões de habitantes. Previsões para o ano 2000 colocam São Paulo em 3º lugar entre as áreas metropolitanas mais populosas do mundo, com 26 milhões de habitantes, o Rio de Janeiro em 6º lugar, com 19,4 milhões, e Belo Horizonte surge em 49º lugar, com 5 milhões, tornando o problema habitacional urbano brasileiro um dos mais sérios a serem solucionados nos próximos anos.

Possivelmente, o mais importante componente da questão de habitação no Brasil encontra-se na sub-habitação. Moradias precárias, geralmente construídas com paredes e coberturas de taipa, sapé, madeira aproveitada, materiais usados e pisos de terra batida proliferam nas favelas, invasões, ocupações, alagados ou mocambos. Em 1970, nas zonas urbanas, chegavam a quase 1,5 milhões de habitações. Já em 1980, o total de habitações precárias aproximava-se de 3 milhões.

A este número de sub-habitações precárias é preciso adicionar a demanda habitacional oriunda das famílias residentes em cortiços. Embora localizadas em edifícios permanentes, essas habitações multifamiliares não apresentam as mínimas condições de sanidade e segurança para seus moradores. Em 1980, mais de 1 milhão de habitações estavam nessas condições, principalmente nas zonas urbanas.

O crescimento das favelas e outras formas de sub-habitação nos últimos anos tem sido espantoso. No Rio de Janeiro, existiam, em 1948, 105 favelas que abrigavam aproximadamente 6% da população. Em 1979, já eram 175 favelas, abrigando cerca de 1.500.000 de pessoas, ou cerca de 25% da população.

Este fenômeno, embora mais recente, também pode ser observado em São Paulo, onde, em 1958, menos de 1,5% da população habitava em favelas. Em 1978, mais de 10% da população fazia parte daquele contingente. Segundo VALLADARES (1983), em 1975, São Paulo possuía 117.000 favelados e 615.000 encortiçados. Já em 1984, de acordo com os dados disponíveis nas Secretarias Municipais da Família e do Bem-Estar Social (FABES) e de Habitação (SEHAB), mais de 4.000.000 de pessoas habitavam em favelas e cortiços na cidade de São Paulo; aproximadamente 25% da população do município. Invasões em áreas públicas (1.429), particulares (455) e mistas (202) abrigam mais de 600.000 habitantes.

No total, o número de sub-habitações, conforme a tabela 2, chegou a cerca de 14 milhões em 1980.

É importante observar que, durante a década de 70, as condições de habitação apresentaram certa melhora, embora ainda revestissem-se de gravidade. Durante aquele período, contudo, a evolução positiva deveu-se mais às condições econômicas favoráveis do que à intervenção governamental na área de construção de habitações populares e erradicação da sub-habitação.

Em 1980, como demonstrado na Tabela 3, as condições de habitabilidade dos domicílios eram inadequadas, principalmente nas zonas rurais, onde a maior parte da população não dispunha de água encanada, energia elétrica ou instalações sanitárias. Embora menos agudo, o problema também é visível nas cidades, onde a carência de condições apropriadas de salubridade pode ter consequências mais graves, em função da alta concentração populacional. Quase 20% das habitações não eram servidas com água encanada, 7% não possuíam qualquer tipo de instalação sanitária e mais de 10% utilizavam instalações sanitárias coletivas; quase 15% não possuíam serviços de energia elétrica.

A precária situação habitacional brasileira, detectada pelo Censo de 1980, provavelmente agravou-se. A profunda crise econômica que assolou a nação nos primeiros anos da década de 80 certamente aprofundou os problemas já existentes, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o desemprego e o arrocho salarial atuaram de forma mais intensa.


Segundo projeções do BNH, as necessidades habitacionais para a população urbana brasileira, para o período de 1980-85, são de aproximadamente 7 milhões de unidades (1). Desse total, aproximadamente 31% destinam-se ao atendimento de famílias com renda familiar de até 1 salário mínimo, 45% para aquelas com renda de 1 a 3 salários mínimos e 12% para as de 3 a 5 salários mínimos. No total, as famílias com renda de até 5 salários mínimos necessitam de cerca de 6 milhões de unidades, o que representa aproximadamente 85% das necessidades habitacionais urbanas totais.

As famílias com renda de 5 a 10 salários mínimos absorveriam 11% do total, e as demais, apenas 4% das necessidades totais estimadas. Nota-se, portanto, que se necessita, durante um período de 5 anos, de todo o acréscimo ao estoque habitacional produzido durante o período 1970-80, estimado em 7,7 milhões de unidades.

Vale observar ainda que a década de 1970 foi uma das mais prósperas de toda a história econômica brasileira, durante a qual o nível de atividade da construção civil obteve uma das mais altas taxas de crescimento jamais observadas. Por outro lado, o primeiro lustro da década de 80 marca uma das piores crises econômicas já vividas pela Nação, o que faz crer que uma parcela bastante reduzida das necessidades habitacionais estimadas teve condições de ser atendida.

A tabela mostra que, entre 1980 e 1983, o estoque de domicílios permanentes duráveis aumentou em 3.343.950 unidades. Supondo-se que a porcentagem de cortiços tenha permanecido constante, o estoque efetivo de habitações consideradas adequadas aumentou em 3.191.558 unidades, ao passo que, segundo as projeções do BNH, o aumento no período deveria ter sido de 4.200.000 unidades. Vê-se, portanto, que, no período de 1980-83, houve um déficit de 1 milhão de unidades habitacionais.


A seguir, são apresentadas estimativas de necessidades habitacionais para o período de 1980-90, para o Brasil e para as regiões urbanas. Foram utilizados dados do Censo de 1980 referentes ao crescimento populacional, população, tamanho médio das famílias, número total de habitações existentes e sua distribuição entre normais e subnormais. Utilizou-se, ainda, uma taxa de depreciação fixa de 2% ao ano, o que pressupõe uma vida útil de 50 anos para prédios residenciais.

A tabela 5 mostra os resultados obtidos para as necessidades habitacionais até 1990: são mais de 17 milhões de unidades, sendo quase 14 milhões nos centros urbanos. Vale notar que a maior concentração de novas unidades situa-se nas camadas de baixa renda. As famílias com renda de até 5 salários mínimos, que compõem cerca de 70% do total, absorverão 88,9% das necessidades globais. A faixa intermediária de 5 a 10 salários mínimos necessita, proporcionalmente, da metade do que representa no total do número de famílias. Já aquelas com renda superior a 20 salários mínimos têm uma necessidade habitacional de apenas 2% do total estimado, embora representem 5% do número de famílias.



Fica caracterizado, portanto, que as necessidades concentram-se nas camadas populacionais de baixa renda. Por serem, justamente, as menos capazes de solucionar adequadamente seus problemas habitacionais, configura-se uma grave questão social a exigir a intervenção governamental no encaminhamento das soluções que toda a sociedade exige serem encontradas.

Em entrevista transcrita no dia 3 de dezembro de 1984 na Gazeta Mercantil, o presidente do BNH, Nelson da Matta, declarou ser o déficit habitacional brasileiro de 8 milhões de habitantes. Pelas nossas estimativas, caso as necessidades de 17,3 milhões de unidades para a década de 80 fossem atendidas linearmente, até o final de 1974 deveriam ter sido construídas aproximadamente 7 milhões de unidades.

Como o déficit (necessidades menos o acréscimo ao estoque) é estimado em 8 milhões, conclui-se que durante os primeiros 14 anos da década nada foi obtido em termos de melhoria na grave questão da habitação no Brasil.

Características do Modelo Operacional do S.F.H.

Frente à gravidade dos problemas habitacionais detectados, resta saber qual tem sido a sistemática de atuação do governo no equacionamento da questão durante as duas últimas décadas.

A Lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, deu início ao atual modelo habitacional, instituindo a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social e criando o Banco Nacional de Habitação. Autorizou ainda o funcionamento de Sociedades de Crédito Imobiliário, a emissão de Letras Imobiliárias e tomou outras providências visando à institucionalização de um sistema financeiro para a aquisição da casa própria.

Algumas características da legislação original devem ser destacadas como meio de captar mais claramente o modelo de ação originalmente concebido: a) A atuação de órgãos oficiais era, preferencialmente, restrita às atividades de coordenação, orientação, bem como à assistência técnica e financeira, ficando reservado aos Estados e Municípios a elaboração e execução de planos diretores, projetos e orçamentos para a solução de seus problemas habitacionais. À iniciativa privada caberia a promoção e execução dos projetos de construção de habitações. A principal meta era a construção da casa própria. b) Prioridades na aplicação dos recursos em conjuntos habitacionais de interesse social, destinados a eliminar a sub-habitação, com ênfase nos projetos de cooperativas e outras formas associativas de construção da casa própria. c) As aplicações dos órgãos federais deveriam ser efetuadas, até 50%, no Estado de origem dos recursos, com um mínimo de 60% em habitações de valor unitário inferior a 60 vezes o maior salário mínimo e um máximo de 15% em habitações de valor unitário compreendido entre 200 e 300 vezes o maior salário mínimo, vedadas aplicações acima deste limite. Para o setor privado, as aplicações seriam no mínimo 60% em habitações de valor inferior a 250 salários mínimos, vedadas aplicações de valor unitário superior a 400 salários mínimos. d) O BNH era um banco central dos demais agentes financeiros, tendo ainda atribuições de garantia de créditos e de depósitos, de redesconto e de segurador de vida e de renda dos mutuários.

Vale lembrar ainda que, entre outras, a fonte de recursos do BNH adviria da cobrança de 1% sobre a folha de salários das empresas e da emissão de Letras Imobiliárias.

Em 1966, foi regulamentado o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), dando organicidade às instituições financeiras públicas e privadas orientadas para a captação e aplicação de recursos no setor habitacional, tendo sido criadas 37 sociedades de crédito imobiliário (SCIs), além de várias Associações de Poupança e Empréstimos (APEs). Em 1966, foi instituído o FCTS, cujos depósitos passaram a ser feitos no BNH, em substituição à antiga arrecadação sobre a folha de salários.

Pela análise das principais metas e características operacionais do BNH, é possível concluir que a intenção original era a criação de uma estrutura de apoio, orientação e controle para o fomento da construção habitacional (casa própria) de interesse social, com características operacionais semelhantes ao Federal Housing Administration (FHA) nos EUA, que opera como órgão regulador das Mutual Savings (as nossas APEs) e dos Savings and Loans (as nossas SCIs). A FHA não faz empréstimos, não executa, nem planeja empreendimentos imobiliários, atuando tão-somente como órgão segurador de empréstimos hipotecários imobiliários concedidos pelas instituições financeiras, podendo ainda, com sua intervenção, possibilitar financiamentos em condições mais favoráveis aos mutuários de menor poder aquisitivo. Ademais, o BNH acumularia as funções exercidas pela Federal Savings and Loans Insurance Corporation, seguradora da poupança do público nas entidades do sistema.

A estruturação definitiva do BNH/SFH ocorreu somente no início da década de 70, distanciando-se consideravelmente do modelo inicialmente proposto. Em anexo, encontram-se reproduzidas sua estrutura organizacional e as principais linhas de financiamento existentes atualmente.

O sistema atingiu tal vulto e tal multiplicidade de programas e objetivos que hoje diferencia-se substancialmente das metas inicialmente estabelecidas. A análise do organograma do BNH indica que suas metas operacionais multiplicaram-se, atingindo, além da habitação popular, as áreas de saneamento, infraestrutura e planejamento urbano e comunitário, transporte, apoio nas áreas técnicas, financeira, de estudos e pesquisas, apoio à indústria da construção civil e de materiais, assessoria a Estados e Municípios, treinamento, desenvolvimento urbano, infraestrutura de serviços industriais de utilidade pública, fomento ao artesanato, comércio e pequena indústria, recuperação urbana e inúmeras outras.

Distanciou-se, destarte, de sua meta primordial — a casa própria para a população de baixa renda — passando a adotar um conceito de habitação mais amplo, abrangendo não somente a posse do imóvel e, consequentemente, os serviços habitacionais daí resultantes, mas também toda uma gama de serviços complementares, desde a infraestrutura e equipamentos urbanos até o planejamento e o desenvolvimento das cidades em questão. Ultrapassou o objetivo concreto de atendimento a uma demanda privada não-satisfeita, não efetivada, chegando a uma concepção pública da cidade como locus de habitação coletiva. Em outras palavras, de uma agência de fomento à produção de bens de consumo privados transformou-se em órgão governamental de fomento, coordenação e investimento, orientado ao atendimento da demanda habitacional, entendida agora como um serviço cujas externalidades a transformam em um bem público.

Destarte, o BNH é, virtualmente, um departamento governamental regulador, fiscalizador e fomentador das atividades de construção habitacional, sendo responsável por 70% da indústria da construção civil e de serviços, equipamentos e infraestrutura urbana.


Além de assumir uma tarefa que inicialmente só deveria incentivar (a construção habitacional), passou também a desenvolver, dentro do âmbito do BNH/SFH, uma função eminentemente pública que não vinha sendo atendida a contento pela alçada municipal (equipamentos e infraestrutura urbana).

Na realidade, o alargamento das funções do BNH foi uma resposta ao centralismo fiscal, que imobilizou as prefeituras como agentes supridores de serviços públicos em geral. Tornou-se um órgão híbrido que, de um lado, passou a exercer atividades de formação de capital, investimento e controle na área de construção habitacional — para isso, precisou transferir do setor privado para sua esfera de domínio todos os pontos nevrálgicos do processo de tomada de decisão e controle da atividade de produção e financiamento da construção habitacional — e, por outro lado, passou a suprir as deficiências dos Estados e Municípios, vitimados por um modelo fiscal centralizador, desenvolvido no Brasil nos últimos 20 anos.

Vale lembrar que a impossibilidade dos Municípios em suprir a demanda por serviços de infraestrutura urbana gerou um modelo de atendimento a essa demanda que poderia ser caracterizado como "urbanização privada", cabendo aos empreendedores imobiliários a tarefa de implantar e, muitas vezes, operar equipamentos urbanos de caráter público. Até mesmo o governo, por intermédio de empresas estatais, geralmente municipais, vem adotando critérios de mercado para o atendimento da demanda por esses serviços, introduzindo sérias distorções nos critérios de investimento e custeio dessas atividades.

A transformação do BNH em um departamento governamental de suprimento de serviços públicos, entre outras atividades, fica patente ao observar-se que mais de 39% dos municípios, representando 82% da população urbana brasileira, têm financiamentos e contratos de suprimento de água encanada com aquele órgão. Segundo o Planasa, mais de 100 milhões de pessoas deverão ser beneficiadas pelos projetos de saneamento básico do BNH até o final da década, o que é uma medida da descaracterização de suas metas, em que pese ter sido forçado a desempenhar tais funções de enorme significado social, pela evidente fragilidade dos municípios brasileiros.

A análise da Tabela 6 demonstra que o objetivo habitacional, propriamente dito, vem absorvendo 50% das aplicações do BNH; as operações complementares à habitação tiveram uma participação ligeiramente aumentada nos últimos anos, atingindo 18%; o desenvolvimento urbano aumentou significativamente, atingindo mais de 30% do total, com especial ênfase no saneamento, que duplicou sua participação no total das aplicações; e, finalmente, as demais operações reduziram-se sensivelmente, atingindo 2% do total. Segundo declarações à imprensa no dia 5 de fevereiro de 1985, o presidente do BNH declarou que somente 25% dos recursos daquele órgão estariam, naquele momento, sendo aplicados na produção de habitações.

Vê-se, portanto, que a habitação deixou de ser a atividade primordial do BNH, que passou a dividir os recursos disponíveis com outras tarefas, principalmente obras de desenvolvimento urbano.


4. ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO SFH/BNH NA HABITAÇÃO

4a. Limitações Impostas ao Setor Privado

A forma de atuação do BNH na área de habitação é peculiar. É excessivamente solta e inorgânica na fase de planejamento e avaliação de necessidades, e excessivamente centralizada e burocratizada na fase de implantação dos projetos. O sistema controla, impondo regras e procedimentos no que se refere à execução de projetos específicos, sem atentar, como deveria, para a definição de uma escala de prioridades de interesse social e locacional. Já, como ocorre com o modelo administrativo público do país, o Estado vem perdendo paulatinamente suas características clássicas de controle, fiscalização e complementação nas deficiências da economia de mercado, a favor de uma atitude intervencionista e até competitiva com o setor privado. Este último, embora ainda seja o instrumento operacional básico do sistema habitacional, vem perdendo o poder de decisão e controle de sua própria atividade, que se transfere paulatinamente para o âmbito da burocracia estatal.

A estrutura operacional do setor habitacional, excluindo-se os dois extremos do espectro de renda (aqueles de alto poder aquisitivo e as camadas populacionais carentes), tem-se tornado de tal forma dependente do SFH que, no mercado formal, pouco se constrói ou se vende sem sua participação.

Isso ocorre não somente por causa das deficiências do setor imobiliário que, com exceção da atividade de parcelamento do solo, se moldou a esta prejudicial sujeição aos recursos do SFH, castrando a agilidade e a iniciativa do setor privado, mas também pela inflexibilidade dos órgãos governamentais que têm impedido que os vínculos de dependência se dissolvam, que reapareçam ou sejam criados mecanismos adequados para enfrentar situações de crise e, assim, reativar o setor imobiliário.

Exemplos claros são as restrições impostas na intermediação financeira para o ramo imobiliário quando fora da estrutura do SFH. Isso ocorre até mesmo naqueles sub-setores, como o de comercialização de lotes urbanizados, que não se encontram enquadrados nas linhas de financiamento do BNH. Vários dispositivos legais impedem que empréstimos externos sejam contratados pelo setor ou que bancos comerciais ou de investimento descontem títulos gerados a partir de atividades imobiliárias, transformando agentes financeiros do BNH em detentores de poderes oligopolistas no financiamento dessas atividades. Da mesma forma, as restrições impostas às práticas comerciais impõem sérias barreiras ao bom funcionamento do setor, impedindo o franco desenvolvimento de um sistema de produção, financiamento e comercialização de imóveis que dependa do aparato financeiro-burocrático do Banco Nacional da Habitação.

4b. Avaliação de Desempenho em Participação do SBPE

É igualmente preocupante a constatação de que o modelo operacional do SFH vem perdendo sua característica de interesse social, na medida em que admite que parcela ponderável dos recursos captados e aplicados esteja no âmbito de controle de iniciativas financeiras privadas, pouco atuantes nas faixas de baixa renda.

Há uma clara contradição no relacionamento entre o BNH e o setor privado, pois aquilo que o segundo pode fazer com eficiência (o planejamento e a implementação de projetos habitacionais) vem sendo submetido, injustificadamente, a um crescente processo de dependência em relação ao primeiro; já as atividades de captação de recursos financeiros para a sustentação do SFH, que, a exemplo do FHA norte-americano, dependem da atuação pública (a credibilidade e as garantias oferecidas, que, por sinal, têm acarretado pesado ônus à sociedade por ser o governo o segurador do sistema), encontram-se entregues, em grande parte, ao setor financeiro privado, que assim se transformou no grande beneficiário do SFH.

O Estado assume os riscos, garante os recursos, assegura a continuidade do sistema e, a seguir, repassa ao capital financeiro privado parte da massa de recursos captados pela poupança forçada (FCTS), além de propiciar as condições para a captação de recursos oriundos da poupança voluntária (depósitos de poupança). Convém ressaltar que o BNH transformou-se em um banco de segunda linha, atuando, mediante empréstimos e refinanciamentos, por intermédio dos agentes financeiros, como as SCI’s, as APE’s (que hoje encontram-se absorvidas pelos conglomerados financeiros, não obstante serem sociedades mutualistas que, por sua natureza, deveriam ser controladas pelos depositantes), as Cohabs, os Institutos de Previdência, Caixas Econômicas e outras entidades financeiras, a critério do BNH.

Os programas do BNH para a faixa de interesse social estão segmentados, teoricamente, nos seguintes programas: lotes urbanizados (para a faixa de renda familiar até 1 salário mínimo), as Cohabs (para famílias de 1 a 5 salários mínimos) e os INOCOPS (para famílias de 5 a 10 salários mínimos). As Companhias de Habitação (Cohabs municipais ou estaduais) são, simultaneamente, agentes financeiros e promotores do BNH, eliminando assim a intermediação financeira e produtiva capitalista. Os programas cooperativos (desenvolvidos pelos INOCOPS) eliminam, teoricamente, a atuação de produtores capitalistas.

Na prática, contudo, a divisão de papéis não ocorre da forma prevista, e as principais características operacionais desses grupos de entidades tornam-se desvirtuadas, não havendo entre eles as diferenças de abordagem e finalidades que, idealmente, deveriam existir; são estruturas operacionais criadas artificialmente, não resultando nas diferenças de comportamento esperadas.

O exame das linhas de financiamento do BNH revela a preocupação no atendimento a áreas de interesse social, principalmente no âmbito da Carteira de Operações de Natureza Social e da Carteira de Erradicação da Sub-Habitação. Desafortunadamente, programas como o Ficam e o Proareas, de alto conteúdo social, têm sido inoperantes.

A efetiva funcionalidade de programas de interesse social esbarra em dois problemas fundamentais, componentes da estrutura básica da atual política habitacional. Em primeiro lugar, os recursos são captados a custo elevado. Os recursos do FGTS, das cadernetas de poupança e da emissão de letras imobiliárias exigem remuneração acima da capacidade de pagamento da maior parte da população-alvo dos programas habitacionais de interesse social. Assim sendo, são canalizados para aplicações que propiciem níveis de remuneração compatíveis com seus custos, ou seja, são canalizados para o financiamento de edificações para as camadas populacionais de renda mais elevada.

Em segundo lugar, como dito acima, o BNH é uma instituição de segunda linha e utiliza, em grande parte, o sistema financeiro privado para a obtenção da necessária capilaridade na consecução de seus objetivos. Mais uma vez, este modelo de ação discrimina contra programas cujo valor unitário de financiamento seja mais baixo (embora possam atender a um número significativamente maior de famílias). Isto ocorre em função dos custos unitários de administração, cobrança e fiscalização mais elevados, se comparados a financiamentos de maior volume por unidade. A procura por aplicações de maior valor unitário é reforçada pela remuneração mais elevada permitida para unidades habitacionais orientadas para as classes de renda mais alta.


A Tabela 7 mostra a composição do saldo de recursos do SFH.

A primeira constatação refere-se à crescente desproporção entre os recursos do SBPE e do BNH. Em 1972, a relação entre os saldos do SBPE e do BNH era de 1,141, tendo permanecido em patamares semelhantes até 1975. A partir de então, o SBPE ultrapassou o ritmo de crescimento do BNH, chegando em 1979 a ser quase 14 vezes maior que este último.

O crescimento dos recursos captados pelo SBPE deveu-se ao alto ritmo de expansão dos depósitos de poupança durante todo o período analisado. Enquanto o índice geral de preços aumentou 8,90 vezes, os saldos dos depósitos de caderneta de poupança expandiram-se 8.168 vezes, sendo que os das caixas econômicas aumentaram 14.990 vezes, e os das SCIs e APEs, 24.200 vezes.

Nota-se, portanto, a hipertrofia do SBPE em relação ao BNH, um segmento do mercado cujos recursos fogem do âmbito das aplicações de interesse social, objetivo que motivou a criação de todo o aparato do Sistema Financeiro da Habitação. Nota-se ainda o maior dinamismo dos agentes financeiros privados que controlam, hoje, a maior parte dos depósitos de poupança.

No conjunto, o saldo de recursos do SFH expandiu-se acentuadamente em termos reais até 1979, crescendo a uma taxa média anual de 25,34%. Em 1980 e 1981, houve uma queda real, parcialmente compensada pelo crescimento observado durante 1982. Durante 1983 e 1984, no entanto, a queda real no saldo de recursos foi violenta, reduzindo-se em aproximadamente 20% ao ano. É importante lembrar que o saldo real dos depósitos de poupança praticamente estagnou entre 1978 e 1984, ao passo que os recursos do BNH sofreram sensíveis reduções.

Os recursos, e consequentemente as aplicações, do BNH advindos do FGTS são pró-cíclicos na medida em que aceleram eventuais tendências conjunturais. Quedas na taxa de emprego reduzem os recolhimentos do FGTS ao mesmo tempo em que aumentam os saques. O círculo vicioso se completa na medida em que a redução dos empréstimos do BNH aumenta a taxa de desemprego.


Sem dúvida, o setor de construção civil é, individualmente, o maior observador da mão de obra urbana. No momento em que essas atividades perdem dinamismo, surgem importantes reflexos na taxa de emprego, no nível de renda interna e, consequentemente, na dimensão do mercado doméstico, que, por sua vez, gera ou aprofunda tendências econômicas recessivas. Vê-se, portanto, que a estrutura de capitalização do BNH aprofunda as recessões conjunturais, que, por sua vez, concorrem para enfraquecer as possibilidades de atuação daquele órgão nas áreas de interesse social, justamente quando são mais necessárias. Isto torna a estrutura operacional do BNH de limitada valia nos programas de interesse social, pois é justamente nas épocas cíclicas de recessão que sua atuação deveria intensificar-se, evitando sancionar os efeitos dos ciclos conjunturais no bem-estar das famílias de baixa renda.

Pelo lado do ativo do SFH, nota-se também a perda de importância do BNH frente ao SBPE. A redução de valores observada no passivo do SFH em 1980, e mais drasticamente em 1982, somente foi sentida pelas aplicações ativas em 1984, como pode ser visto na Tabela 8. O crescimento dos empréstimos e dos saldos de recursos foi igual até 1975. A partir de então, o crescimento dos volumes captados foi mais alto, sem a contrapartida pelo lado das aplicações, demonstrando assim que houve perda da eficiência do sistema, medida como o total de empréstimos concedidos em relação aos recursos captados.

Com efeito, entre 1972 e 1975, aproximadamente 70% dos saldos de recursos do SFH encontravam-se, pelo lado do ativo, em contas de empréstimos. A partir de 1976, essa relação começou a cair, chegando em 1978 a 43%, voltando a aumentar a partir de 1980. Em 1982, atingiu 60%, e em 1983 e 1984, os empréstimos chegaram a 83% do montante do saldo de recursos.



Outra constatação importante refere-se ao fato de que o BNH, sendo um banco de segunda linha, efetua suas operações ativas por intermédio dos agentes financeiros, envolvendo, assim, taxas de repasse. Em 1972, 60% dos empréstimos do BNH eram realizados por esta modalidade de operação; em 1977, esse percentual ultrapassou 80%, e mais recentemente aproxima-se de 75%. Vê-se, portanto, que são os agentes financeiros, privados ou estatais, que se beneficiam dos rendimentos financeiros do sistema, visto que, além de captar a maior parte dos recursos do SFH, ainda repassam três quartas partes dos recursos do BNH. Além disso, embora sejam responsáveis pela maior parte do saldo de recursos, esses agentes não representam a mesma proporção em relação aos empréstimos, mesmo incluindo os repasses do BNH, o que demonstra a ineficácia do SBPE como mecanismo de fomento às atividades imobiliárias.

Ressalte-se ainda que, conforme demonstrado pela Tabela 8, os empréstimos do BNH às instituições financeiras concentram-se sobretudo junto aos bancos (comerciais, de investimento e de desenvolvimento) e às SCIs e APEs, restando parcelas pouco significativas para as caixas econômicas.



Outrossim, conforme demonstrado pela Tabela 10, que a relação entre o saldo de empréstimos e os recursos disponíveis (depósitos, repasses e recursos próprios) é maior no BNH do que nas SCIs e APEs. Para o SFH como um todo, aproximadamente 6% dos recursos são aplicados em títulos financeiros (ORTNs e LTNs) ou mantidos como encaixe.

Vê-se, portanto, que: a) uma parcela crescente dos recursos do SFH é captada e aplicada a nível do SBPE, cujos objetivos não se enquadram no atendimento à habitação de interesse social; b) a nível do BNH, somente metade de seus recursos é orientada para a demanda habitacional, e outros 20% para operações complementares.

Conclui-se que a estrutura operacional do SFH é marcada por características que não contribuem para o eficiente funcionamento do sistema. Embora seu objetivo primordial tenha sido o atendimento à demanda populacional de interesse social, uma parcela significativa dos recursos é orientada para os mercados de renda mais elevada. Embora o SFH dependa fundamentalmente das garantias governamentais oferecidas, o BNH atua como um banco de segunda linha, oferecendo perspectivas de alta rentabilidade ao setor financeiro (privado e oficial), que se beneficia, portanto, de fortes externalidades. Vê-se, portanto, que o BNH se transformou em uma grande agência de desenvolvimento urbano, sobrepondo-se aos objetivos habitacionais. Sua estrutura operacional financeira não está direcionada, como deveria, para o atendimento dos objetivos de interesse social inicialmente propostos.

Ver-se-á agora, dentro das atividades orientadas à produção habitacional, qual a participação do BNH no equacionamento da questão do déficit nos segmentos populacionais de interesse social.

Constatou-se que 88% do déficit habitacional brasileiro encontra-se nas faixas de renda familiar de até 5 salários mínimos, e aproximadamente 77% do déficit nas famílias de até 3 salários mínimos. No entanto, as aplicações do SFH não têm sido compatíveis com esse perfil da demanda habitacional.

Segundo a Tabela 11, somente cerca de 20% dos recursos do SFH foram orientados para o atendimento da faixa de renda até 3 salários mínimos, onde se situam mais de três quartas partes do déficit habitacional brasileiro.


No outro extremo, para as faixas de renda familiar de mais de 10 salários mínimos, responsáveis por cerca de 30% do déficit habitacional, foram canalizados 62% dos recursos, comprovando que, embora a atuação do SFH possa estar efetivamente redistribuindo renda inter-regionalmente, como alegado, com certeza está agravando seu perfil de distribuição pessoal. A Tabela 12, mais recente, corrobora as conclusões obtidas, embora os dados não sejam estritamente comparáveis.

Em parte, a explicação para o evidente distanciamento do SFH de seus objetivos habitacionais encontra-se, em primeiro lugar, na crescente participação do SBPE na captação de recursos, e consequentemente em aplicações habitacionais fora das áreas de interesse social. Dentro das limitações legais, o SBPE orienta seus recursos para unidades habitacionais de maior valor unitário, uma linha de ação coerente com seus objetivos de maximização de lucros. Além das melhores garantias e custos administrativos unitários mais baixos, os imóveis residenciais de maior valor revelam-se capazes de suportar os custos de captação mais elevados do SBPE.

As Tabelas 13 e 14 mostram que o número de financiamentos contratados pelo SBPE, cerca de 22% do total até 1967, atingiu, a partir de 1972, mais de 50%, tendo chegado a 62% em 1974, declinando a partir de então. Nos anos iniciais desta década, situou-se em torno de 50%.

Por outro lado, os financiamentos orientados para os estratos de renda de interesse social, até 5 salários mínimos de renda familiar, concentrados nas Cohabs, tiveram sua participação no total reduzida de 30% na década de 70 para cerca de 15% nos primeiros anos da década de 80. Da mesma forma, a faixa econômica teve sua participação reduzida de 20% para 7%, e somente a faixa média e outros programas tiveram aumentos nos financiamentos contratados.


Cumpre observar que, pelos padrões do BNH, são considerados como aplicações de interesse social programas como Cooperativas Habitacionais e outras, cujo valor de financiamento pode atingir mais de 2.000 UPCs. Tais financiamentos, a juros de 3,5% e amortizados em 25 anos, exigiriam uma renda familiar do mutuário acima de 6 salários mínimos. É na faixa de até 3 ou 5 salários mínimos, onde efetivamente se encontra o interesse social, o que, nas condições acima descritas, exige que o valor do financiamento não ultrapasse o limite de 800 UPCs.

No entanto, se há discrepância entre o número de financiamentos habitacionais contratados e as reais necessidades para a faixa de interesse social (até 800 UPCs), tal evidência torna-se ainda mais dramática no cotejo das aplicações monetárias do BNH. Não somente a faixa de interesse social abrange uma parcela reduzida dos financiamentos, em torno de um quinto durante a década de 80, mas, obviamente, tais contratos são de menor valor unitário por atenderem às camadas populacionais de baixa renda.

Pelos dados das Tabelas 15 e 16, observa-se a preponderância das aplicações fora da faixa de interesse social, conforme definido acima. Do total de aplicações habitacionais, as de interesse social situam-se, nos últimos anos, entre 35% e 40% do total, tendo anteriormente a 1979 situado-se em tão somente 16%.

Considerando-se que as aplicações em desenvolvimento urbano e apoio técnico-financeiro representam aproximadamente um terço das aplicações globais do BNH, conclui-se que o valor de financiamentos orientados para as camadas de renda de até 5 salários mínimos reduz-se a cerca de um quarto do total aplicado.

Considerando-se ainda que, conforme demonstrado na Tabela 18, a participação do BNH no saldo de financiamentos do SFH tem-se situado em torno de 50%, chega-se à chocante constatação de que a percentagem dos recursos do SFH orientados para as aplicações de interesse social restringe-se a apenas cerca de 12%, ou seja, um oitavo do total potencialmente disponível para a finalidade que, em última análise, foi a causa geradora de sua criação.


  1. As Contradições Financeiras do SFH: Avaliação de Seu Potencial Explosivo

Nesta seção será demonstrado que as condições de financiamento do SFH encontram-se apoiadas em bases instáveis, podendo isso causar a total desintegração econômico-financeira do sistema.

A complexidade do mecanismo de sustentação financeira do SFH advém da necessidade de compatibilizar aplicações de longo prazo (chegando a 30 anos) com formas de captação de recursos de curto prazo, dentro de um ambiente econômico caracterizado por taxas inflacionárias de três dígitos. Ademais, na tentativa de neutralizar os efeitos corrosivos da inflação, não se conseguiu a sincronização nos reajustes dos ativos e passivos do SFH, sendo os reajustes efetuados de forma defasada, a exemplo de expressos em moedas distintas sobre as quais são aplicados índices de correção diferentes. Assim, ao passo que o saldo devedor dos mutuários é corrigido trimestralmente pela UPC, as prestações são reajustadas, anual ou semestralmente, pelas UPCs ou pelos índices de correção salarial, com redutores ou não, e os salários, por sua vez, são expressos em cruzeiros.

Vale lembrar que o BNH tem feito tudo ao seu alcance na tentativa de compatibilizar os efeitos da inflação com a capacidade de pagamento dos mutuários. Desde sua criação, vem tentando acomodar-se a novas situações conjunturais: criou novos sistemas de amortização, dilatou prazos, alterou os índices de reajuste das prestações, reduziu-os, ofereceu subsídios e bônus, permitiu opções de alterações contratuais, reduziu o CES, etc. Tentou sempre compatibilizar o reajuste das prestações com a capacidade de pagamento dos mutuários, numa tentativa de reduzir os índices de inadimplência, que atingiram proporções elevadas durante os anos de 1983 e 1984.

De modo geral, o BNH tem procurado sempre reajustar o valor das prestações pelo mais baixo dos dois seguintes valores: índice de correção do salário mínimo ou índice de variação das ORTNs. Inicialmente, as prestações eram corrigidas pelo salário mínimo; em 1973, como os salários vinham aumentando mais rapidamente que as ORTNs, optou-se pela correção monetária. Em 1983, com o arrocho salarial característico dos últimos anos, retornou-se com o Decreto-Lei 2.065, art. 23, que estabeleceu a variação do salário mínimo para o cálculo dos reajustes das prestações.

A Tabela 19 reproduz a relação entre o índice de reajuste do salário mínimo e os de reajuste das prestações do SFH. Nota-se que durante o período de 1965 a 1972 a perfeita paridade entre salários e prestações foi mantida. Com a alteração de 1973, houve uma queda no comprometimento de renda com as prestações do SFH, sendo que até 1982 os reajustes acumulados dos salários foram mais de duas vezes superiores aos das prestações. Nos últimos dois anos, ocorreu uma drástica reversão dessa tendência, gerando os problemas que eclodiram em 1983 e 1984. Mesmo assim, os reajustes acumulados do salário mínimo estão pouco abaixo do dobro dos reajustes das prestações, tomando-se o ano de 1965 como base inicial de comparação.

Ocorre, porém, que a diversidade entre o índice de reajuste das prestações — o qual deve ser amoldado à capacidade de pagamento dos mutuários — e a política salarial — utilizada para corrigir os saldos devedores dos financiamentos e os depósitos de poupança, que acompanham a variação das ORTNs para neutralizar a corrosão inflacionária — gera um descompasso entre contas a receber e contas a pagar, cujas dimensões tornam-se imprevisíveis. A falta de sincronismo entre esses reajustes agrava a questão, que torna-se ainda mais preocupante com a atual elevação dos patamares da inflação.

A defasagem entre os reajustes dos saldos devedores (trimestral) e os das prestações (semestral ou anual) gera um resíduo, decorrente do fato de que a cada pagamento o mutuário estará amortizando uma parcela menor de sua dívida, aumentando o pagamento de juros embutidos em cada prestação.

Como o saldo devedor é reajustado trimestralmente e a prestação permanece constante durante um prazo mais longo (6 meses ou 1 ano), o pagamento mensal representa, naqueles intervalos, um número menor de UPCs. Assim, o número de UPCs amortizado varia em função inversa da variação trimestral das ORTNs (as UPCs), ao passo que o valor dos juros embutidos nas prestações cresce de forma direta. Dependendo dos valores relativos dos reajustes, seria possível que os juros devidos sejam maiores que o valor da prestação, com a diferença sendo incorporada ao saldo devedor. Assim, o financiamento tornar-se-ia eterno, não sendo jamais amortizado.

Este problema só deixaria de existir caso os reajustes das prestações fossem superiores aos reajustes trimestrais do saldo devedor, o suficiente para neutralizar o resíduo acima mencionado. Assim, supondo-se que os reajustes das prestações sejam anuais, a Tabela 20 mostra em quanto os reajustes das prestações deveriam superar a correção monetária anual para que todo o financiamento fosse amortizado no prazo previsto, ou seja, para que não restem saldos residuais.

Inicialmente, os reajustes eram feitos de acordo com os aumentos do salário mínimo. Nota-se, pela Tabela 20, que as prestações deveriam ser corrigidas a percentuais mais elevados para compensar a defasagem entre os reajustes da prestação e do saldo devedor. Com uma correção monetária de 25%, os reajustes deveriam ser 7% mais elevados, chegando a 9,62% para uma correção monetária de 200%. Para uma correção monetária de 250%, os reajustes deveriam ser, respectivamente, 9% e, para uma correção de 300%, 10% mais altos.


Em confronto com os dados da Tabela 21, nota-se o seguinte:

a) Os índices de correção monetária situaram-se, em média, em torno de 25% até 1975, atingindo 215% em 1984. Isso exigiria que, para a exata amortização do financiamento, as prestações fossem reajustadas pelo menos em 7,5% acima da correção monetária até 1980, e mais de 100% após essa data.

b) Até 1973, quando os reajustes das prestações tomavam como base de cálculo os coeficientes de reajustes salariais, somente nos anos de 1967, 1969, 1970, 1972 e 1973 as prestações foram superiores à correção monetária, respectivamente em 8%, 2% e 11%. Nos demais anos, as prestações foram reajustadas abaixo da correção monetária, em 1966 e em 1965, 1968 e 1971.

c) Entre 1974 e 1984, os reajustes das prestações foram sensivelmente inferiores às variações da correção monetária, com exceção de 1980 (quando a correção monetária esteve congelada) e dos anos de 1975 e 1977, quando foram superiores em 8% e 23%, respectivamente.

As discrepâncias observadas durante o período de 1965 a 1984 já foram, segundo declarações do presidente do BNH, suficientes para gerar, até agosto de 1984, um saldo residual a descoberto no valor de aproximadamente 5% do total dos créditos do SFH.

Vê-se ainda que as perspectivas de estabilidade financeira do sistema estão abaladas pela elevação dos índices inflacionários ocorridos a partir de 1981. Ademais, as recentes mudanças, que reintroduziram a variação salarial como base de reajustes das prestações, tenderão a agravar ainda mais a questão, pois, a partir de 1982, os salários passaram a ser corrigidos por índices abaixo da correção monetária.

Vale lembrar também que as medidas vinculadas à reintrodução do Plano de Equivalência Salarial limitam os reajustes das prestações ao máximo de 7 pontos percentuais acima da correção monetária. De tal forma que, para quaisquer coeficientes de correção monetária acima de 100% ao ano (e igual inflação, se ambos continuarem atrelados), haverá sempre saldos devedores residuais, mesmo que os índices de correção salarial da categoria profissional ultrapassem, ainda que sensivelmente, a correção monetária. No entanto, se houver reajustes salariais mais elevados do que a correção monetária e esta se situar abaixo de 100% ao ano, será possível que não sobrem resíduos após o término dos contratos.



A comparação dos valores da Tabela 22 com os da Tabela 20 mostra que somente com quedas acentuadas na inflação e/ou aumentos salariais mais elevados do que a correção monetária será possível a amortização integral dos saldos devedores. No caso das alternativas apresentadas, somente com taxas de inflação de 75% ou menos e reajustes salariais pelo menos 2 pontos percentuais acima da correção monetária seria possível a amortização integral do financiamento e até mesmo a recuperação de parte ou da totalidade dos resíduos já acumulados no passado. Assim, uma inflação de 75% exigiria um reajuste salarial pelo menos 5 pontos percentuais mais elevado; já para uma inflação de 50%, seriam suficientes aumentos entre 3 e 14 pontos percentuais mais altos.

Vê-se, portanto, que o SFH está numa posição de grande instabilidade, exigindo que os índices inflacionários sejam drasticamente reduzidos nos próximos anos e que os mutuários obtenham sensíveis reposições salariais. Caso contrário, não conseguirá sobreviver a médio ou longo prazo, legando à sociedade brasileira um dos maiores buracos financeiros da sua história econômica.

A título de ilustração, a Tabela 23 mostra a relação entre reajustes das prestações e a correção monetária, para que restem saldos residuais de 50%, 100% e 150% do valor do contrato ao final de um prazo de 15 anos, sob hipóteses alternativas de correção monetária.

É importante ressaltar que não basta que os reajustes das prestações sejam suficientes para não deixar resíduos; é necessário que também consigam neutralizar os efeitos desestabilizadores gerados pelos resíduos acumulados no passado. Por outro lado, como pode ser observado pela comparação entre os reajustes salariais e os reajustes das prestações, o comprometimento de renda dos mutuários do SFH aumentou, principalmente para os contratos assinados após 1982, o que forçou os índices de atraso nos pagamentos a se aproximarem dos limites considerados preocupantes.

Além disso, na ausência de reajustes trimestrais de salários, torna-se impossível eliminar de vez a questão dos resíduos resultantes do descompasso temporal entre reajustes de salários e de prestações. O comprometimento de renda decorrente de um sistema financeiro matematicamente correto — onde os períodos e os percentuais de reajuste da prestação e do saldo coincidiriam, usando coeficientes de indexação neutralizadores do efeito da correção inflacionária — oscilaria entre um piso contratualmente determinado e um teto móvel determinado pela inflação, sendo essa oscilação tanto mais ampla quanto mais elevados os índices de elevação de preços.

Diante dessas questões, foi criado o CES (Coeficiente de Equiparação Salarial), que, em sua forma atual, constitui-se num índice multiplicador sobre as prestações devidas, com o objetivo de compensar os saldos residuais eventualmente deixados pelos mutuários. Na sistemática atual, esses saldos teriam de ser cobertos pelos recursos do FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais).

Ultimamente, o CES é de 1,25 para reajustes anuais e para reajustes semestrais. Vale lembrar, como evidenciado pelas Tabelas 24 e 25, que tais valores não são suficientes para evitar a ocorrência de saldos devedores não amortizados, frente aos atuais níveis de inflação.


A Tabela 24 mostra que, caso a correção das prestações seja igual à dos saldos devedores, um CES de 1,25 para reajustes anuais somente possibilitará a liquidação exata do financiamento se a inflação situar-se ligeiramente abaixo de 100%. Com taxas de correção monetária de 200%, o CES de 1,25 não será suficiente para quitar 50% da dívida (o CES necessário, então, seria 1,269). Em relação ao CES de 1,15 para reajustes semestrais, nota-se que ele seria suficiente para amortizar o financiamento caso os índices de correção monetária estejam entre 200% e 250%.

Nota-se, neste caso, o interesse que o BNH vem mostrando em convencer os mutuários a optar pelo reajuste semestral, pois eventuais quedas nos níveis de inflação farão com que as amortizações ultrapassem os valores reais dos financiamentos contratados. Contudo, a Tabela 24 pressupõe reajustes iguais para prestações e saldos devedores, uma hipótese ainda não verificada empiricamente desde 1980.

Na Tabela 25, foi calculado o CES para liquidar o financiamento no prazo contratual, sob três hipóteses alternativas da relação entre reajustes das prestações e do saldo devedor. Supondo-se, como tem ocorrido, que os reajustes das prestações situem-se abaixo da correção monetária (embora acima dos reajustes salariais), a hipótese de relação igual a 0,95 indica que o CES anual de 1,25, bem como o semestral de 1,15, pressupõem taxas de inflação de apenas 50%. A níveis inflacionários mais elevados restarão, para serem cobertos pelo FCVS, saldos residuais consideráveis. Para taxas de inflação de 200%, o CES anual deveria ser 1,70 (para a relação 0,95) e o CES semestral deveria situar-se em 1,35.

A atual estratégia do BNH prevê uma curva de correção monetária de gradiente negativo bastante acentuado, atingindo 150% em 1985, 118% em 1986, e estabilizando-se neste nível nos anos seguintes.

Supõe-se ainda que, a partir de 1986, o salário mínimo crescerá 3% acima da correção monetária (hipótese 1) ou 5% acima (hipótese 2). Se estas estimativas se concretizarem, vê-se pela Tabela 25 que o valor atualmente fixado para o CES (1,15 para reajustes semestrais) deverá ser suficiente para a amortização integral dos financiamentos, bem como para certa recuperação dos resíduos acumulados no passado.

Tudo dependerá, no entanto, da precisão das previsões formuladas pelo BNH. Caso sejam realizadas, terá-se uma situação paradoxal, na qual um sistema habitacional de conteúdo eminentemente social estará impondo aos mutuários a amortização de valores superiores aos contratados nos financiamentos, dentro dos prazos contratuais.


Conclui-se, portanto, que as condições de amortização dos financiamentos do SFH, dados os atuais níveis de inflação, mais cedo ou mais tarde exercerão pressões insustentáveis sobre o sistema, ameaçando a insolvência do FCVS. Somente reduções drásticas, ou aprimoramentos significativos, na inflação poderão evitar que o pior aconteça. Caso contrário, o governo será forçado a intervir na sustentação de um sistema cujos desequilíbrios poderão atingir montantes incalculáveis.

6. PROPOSTAS DE REFORMULAÇÃO DO SFH

6.1 Premissas Básicas

As propostas de reformulação do SFH aqui contidas partem de algumas premissas:

Premissa 1: O SFH foi criado com o objetivo fundamental de resolver a questão habitacional de interesse social. Entende-se como "interesse social" as necessidades da faixa populacional de até 3 salários mínimos — onde se concentram 77% do déficit habitacional brasileiro — podendo, em condições diferenciadas, ser concedidos financiamentos para famílias até o teto de 5 salários mínimos. Segundo o critério do BNH, o valor máximo de financiamento para famílias com renda até 1,6 salários mínimos é de 1.450 UPC, e para famílias até 3,5 salários mínimos, o valor máximo é de 9.000 UPC. Assim, os financiamentos na faixa de interesse social não deverão ultrapassar a faixa de 800-900 UPC, atingindo famílias de até 5 salários mínimos.

Segundo um recente estudo do BNH, nas faixas até 8 salários mínimos encontram-se 52% dos mutuários do SFH, e o saldo de financiamentos a essas famílias chega a apenas 6,3% do total. A premissa a ser aceita é que, sendo os recursos escassos, há necessidade de maximização de seus efeitos, de forma a atender com o mínimo essencial o maior número possível de famílias carentes de habitação. Vale lembrar que, caso os 93% do saldo de financiamentos que não são aplicados nas faixas de até 3 salários mínimos fossem reorientados, seria possível potencializar o desempenho na área social do SFH, multiplicando por 150 o número de famílias atendidas naquelas faixas de interesse especial. Supondo-se que o número de mutuários chegue hoje a cerca de 14.000, e se a totalidade dos recursos disponíveis fosse canalizada para a faixa de interesse social, com o mesmo volume de recursos seria possível atender a mais de 30.000 famílias, solucionando a questão da carência habitacional.

Premissa 2: O Sistema Financeiro de Habitação deve ater-se ao provimento de habitação no sentido restrito, isto é, abrigo ou moradia para as famílias de baixa renda. A oferta de bens de consumo coletivo, como saneamento, infraestrutura social e urbana, desenvolvimento urbano e outros, são responsabilidades da administração direta e não deverão fazer parte das atribuições do SFH. O modelo usado para prover a população de obras de saneamento e infraestrutura urbana é hoje, em grande parte, baseado no mercado, com a venda desses serviços. Isso é elitista e injusto, já que grande parte das obras urbanas realizadas no passado não foi paga pelos atuais beneficiários diretos, e não se deve esquecer que o atendimento de tais serviços de uso coletivo é parte das atribuições do Estado, que deve realizá-las por meio de suas receitas ordinárias.

Evidentemente, tal premissa aponta na direção de uma maior descentralização tributária, de forma a devolver aos poderes públicos locais a autonomia financeira necessária para cobrir os gastos de investimento e custeio de tais obras. Atualmente, dada a penúria dos poderes locais, a responsabilidade de obras de infraestrutura vem recaindo sobre a iniciativa privada (construtores e loteadores), num modelo de "urbanização privada", onde os custos são repassados aos adquirentes de imóveis, e no qual os padrões técnicos de qualidade e uniformidade dos equipamentos não são atendidos a contento. Em geral, daí advém grande parte das causas da enorme desorganização e ineficiência dos padrões de atendimento da demanda por serviços públicos urbanos.

Premissa 3: Subsídio ao mutuário não é novidade dentro do SFH. Já houve, e continua havendo, de forma que a necessidade de manejar este poderoso instrumento de atendimento de obras ou serviços de interesse social não deve ser descartada "a priori".

Os subsídios que o SFH já vem dispensando aos seus mutuários são explícitos e implícitos:

  • Subsídios implícitos: Aqueles que estão embutidos nas condições de financiamento do SFH, passando muitas vezes despercebidos, como, por exemplo:

  • Os juros privilegiados: Em alguns programas, os juros cobrados estão abaixo do custo dos recursos alocados. Assim, as taxas médias em programas como Cohab (3,03%) e Pronorar (1,716%) são, na realidade, subsidiadas, uma vez que o custo médio ponderado daqueles recursos é de 8,16%, podendo, com a introdução do FAHBRE, ser reduzido a 6% ao ano. A diferença entre essas taxas ativas e o custo dos recursos é um subsídio implícito já concedido pelo SFH.

  • Os saldos devedores (resíduos) contratuais: Seja pelo tabelamento da correção monetária (como em 1980), seja pelas correções das prestações abaixo da correção monetária, os contratos do BNH deverão deixar resíduos volumosos, cuja cobertura deverá implicar aporte de recursos adicionais além dos disponíveis no FCVS. Os resíduos significam que o mutuário não amortiza a totalidade do financiamento contratado, transferindo ao BNH o ônus da diferença, um vultoso subsídio implícito.

Segundo SCHONTAG (1984), existem hoje 2,5 milhões de mutuários com contratos pelo antigo PES, cujas prestações não são oneradas pelo atual CES e que deverão deixar altos saldos devedores; 1,0 milhão de mutuários pelo novo PES, porém com valores do CES de 1,11 ou 1,15 (estes mutuários encontram-se no terço médio de seus contratos) e que deverão deixar saldos devedores, salvo bruscas reduções nas taxas de inflação; 500 mil mutuários nos planos mais recentes, que também deverão deixar resíduos, caso a inflação não se reduza para menos de 100% ao ano; e 100 mil mutuários pelo plano de correção monetária (PCM) que resgatarão o exato valor do financiamento contratado.


Vê-se, portanto, que os subsídios implícitos são volumosos, favorecendo indiscriminadamente todas as faixas de renda. Além disso, não há previsão para a obtenção dos recursos necessários para a sua cobertura, faltando, portanto, transparência para uma correta avaliação da sua relação custo-benefício. Existem ainda os subsídios explícitos, como as vantagens oferecidas pelo Decreto 1358/74 e a recente concessão do "bonus" aos mutuários do SFH.


Como os subsídios implícitos, o bônus do SFH padece de graves defeitos no que se refere aos princípios de equidade e transparência, não sendo, portanto, uma política eficiente de transferência de renda em favor dos segmentos classificados como de interesse social.

Premissa 4: O SFH não deve agir de forma a desgastar ainda mais sua credibilidade. Precisa reconquistar confiança junto ao público de seus programas, concedendo financiamentos que sejam integral e exatamente amortizados, ou seja, o retorno ao plano de correção monetária (PCM), pelo qual prestações e saldos devedores são corrigidos trimestralmente pela variação das UPC.

É possível que o maior entrave para a reconquista de confiança seja a instabilidade do sistema, que se caracterizou nos 20 anos desde sua criação, pelas constantes mudanças em seus procedimentos operacionais. O SFH precisa estabelecer regras claras, justas e, acima de tudo, financeiramente corretas, de forma a possibilitar a eficiente continuidade de suas funções. Assim, é inadmissível que o SFH continue a ser um sistema aleatório, uma verdadeira roleta russa para os mutuários, angustiados pelas incertezas e riscos inerentes a contratos de longo prazo, como o habitacional. O mutuário não sabe se amortizará integralmente ou não o valor do seu financiamento, se será subsidiado ou taxado, na aquisição de sua casa própria.

Assim, impõe-se o retorno ao plano de correção monetária (PCM), no qual as prestações e saldos devedores são corrigidos trimestralmente, de forma a proteger os recursos ativos e passivos da corrosão inflacionária. Considera-se o retorno ao PCM uma premissa, e não uma sugestão de reformulação, já que é absolutamente injustificável, econômica, financeira e eticamente, que os critérios tenham sido alterados, sobretudo com pleno conhecimento de que os financiamentos não seriam exatamente amortizados.

Se a aplicabilidade do PCM depende da adequação entre o comprometimento inicial de renda pelos mutuários e a sua respectiva capacidade de pagamento, determinada em grande parte pela política salarial, é outra questão, para cujo equacionamento algumas sugestões serão avançadas mais adiante.

Aceitas as premissas 1 a 4, as propostas de reformulação do SFH aqui sugeridas serão agrupadas em blocos de medidas complementares entre si.

6.2. Revisão das Funções dos Organismos que Compõem o SFH

Como evidenciado anteriormente, o SFH não tem desempenhado suas funções sociais, passando a abranger um leque de atividades e funções que, embora importantes, são pouco condizentes com seus objetivos primordiais. Antes, tais funções devem ser atribuídas à administração direta, a quem compete desenvolvê-las.

No sentido de retomar suas metas originais, sugere-se a separação de atividades entre o BNH e os agentes do SBPE. O primeiro se consolidaria como um órgão governamental encarregado de planejar e implementar programas habitacionais restritos apenas na faixa de interesse social, para famílias de até 5 salários mínimos de renda mensal. Já o segundo segmento, os agentes financeiros do SBPE, passariam a desempenhar as mais variadas funções ligadas ao financiamento das atividades imobiliárias. Assim, o BNH deixaria de ser um "banco" e os agentes do SBPE passariam a sê-lo na mais completa acepção da palavra.

A maximização do número de beneficiários por unidade de recursos captados exige uma separação, tanto na captação quanto na aplicação, entre, de um lado, a habitação popular de interesse social e, de outro, as demais atividades do setor imobiliário. Vale lembrar que os agentes financeiros do SFH são os grandes privilegiados do atual sistema. Como demonstrado acima, funcionam sob a proteção e garantia do governo, auferindo retornos certos, isentos dos riscos que caracterizam a atuação governamental.

Por outro lado, certos segmentos da construção civil também foram beneficiados, funcionando com enorme grau de alavancagem financeira, o que lhes possibilitou atuar, praticamente, só com capitais de terceiros. Os agentes financeiros, contudo, são os maiores favorecidos, atuando de forma lucrativa, independentemente dos riscos que caracterizam a atuação dos outros componentes do sistema. Trabalham com um "spread" e não "perdem" nem com a inflação, nem com a redução real dos salários, nem com menores índices de reajustes ou com sistemas de amortização reduzidos. (1)

Ademais, as práticas utilizadas pelos agentes financeiros frequentemente produzem receitas que ultrapassam, em muito, a remuneração que ostensivamente percebem, elevando sobremaneira os juros efetivos. Os deságios cobrados, taxas de abertura de crédito, de cadastro, de cobrança, além de outros expeditos (como a utilização das viradas trimestrais do valor das UPC), aumentam substancialmente a taxa de juros efetivamente cobrada dos mutuários. Assim, o "spread" real não é aquele dado pela diferença entre a remuneração dos recursos captados (pouco mais de 6% nas cadernetas de poupança) e a taxa média de juros cobrada aos mutuários (cerca de 10%). (Desta diferença, cerca de três quartos seriam custos administrativos, deixando um "spread" líquido de 1%, como recentemente divulgado) (1). Contudo, os juros efetivamente cobrados poderão chegar ao dobro do estipulado no contrato, o que, considerando-se que, em geral, parcela substancial do valor das prestações refere-se ao pagamento de juros, encarece sobremaneira os financiamentos, desvirtuando e descaracterizando os objetivos sociais do SFH.

A conclusão de que os agentes financeiros são os grandes beneficiários do "modus operandi" do SFH não significa, em absoluto, querer policiar lucros, mas sim não permitir que os mesmos sejam gerados a partir do comprometimento dos objetivos sociais do SFH, nem que se dê prosseguimento ao atual modelo de privatização de ganhos e socialização de perdas. Ademais, como demonstrado acima, os agentes do SBPE pouco atuam na faixa de interesse social, concentrando suas atividades nas faixas de renda intermediária e alta. Vale lembrar que os financiamentos concedidos aos estratos de renda acima de 11 salários mínimos, que são 8% dos mutuários, absorvem mais de 25% do saldo total de financiamentos do SFH. (3)

Camargo (1979) também aponta na direção da falta de compatibilização entre fontes e usos dos recursos, acentuando discrepâncias no processo de apropriação do valor gerado pelo SFH. O ônus do SFH, ao nível da origem e captação de recursos, tem recaído sobre os assalariados e a classe média, via os mecanismos de poupança (voluntários - SBPE e o compulsório - FGTS), e ao nível do retorno, sobre os mutuários (populações de baixa renda) e prefeituras municipais. A utilização e a apropriação do valor gerado ao longo dos processos produtivos das habitações e conjuntos apontam para os agentes ligados à produção e, dentro dela, a três categorias de agentes: o setor imobiliário e funcional urbano, os construtores (incluindo a indústria de materiais de construção) e os agentes financeiros que funcionam como promotores. A par destas três categorias, o próprio BNH, como gestor de todos os recursos do SFH, também passa a se apropriar de parte do valor gerado, o que também pode acontecer no caso das empresas públicas.

Assim,

Sugestão 1: O fomento à atividade habitacional de interesse social seria implementado exclusivamente pelo BNH, que passaria a atuar como agente do governo. Os recursos do FCTS, acrescidos dos depósitos de poupança (cadernetas de poupança), passariam a ser captados exclusivamente em nome do BNH, podendo utilizar-se de taxas de juros flutuantes para garantir sua competitividade face a outros papéis. Assim, considerando-se que os custos de captação dos depósitos de poupança são mais reduzidos em virtude da garantia governamental dada àquela aplicação, e que a poupança representa cerca de 10% do saldo de haveres não-monetários totais, a transferência daqueles recursos exclusivamente para operações de natureza social faria com que a aplicação daqueles fundos fosse mais consentânea com suas origens. A exclusividade de captação de depósitos de poupança em nome do BNH garantiria o retorno do SFH às suas origens, proporcionando melhor atendimento da demanda habitacional. A rede de captação poderia permanecer a mesma hoje existente, recebendo os atuais APEs, SCIs e Caixas Econômicas uma comissão pelos serviços prestados, atuando sempre em nome e por conta do BNH.

Sugestão 2: O BNH, assim capitalizado, passaria a conceder financiamentos tão somente aos usuários finais dos serviços habitacionais, não mais operando com repasses via agentes financeiros, e nem tampouco financiando as aquisições de títulos e empréstimos na intermediação da construção. A faixa de renda a ser atendida pelo BNH será definida de forma a limitar a concessão de financiamentos às famílias com renda de até cinco salários mínimos.

A subscrição compulsória de Letras Imobiliárias fornecerá recursos adicionais, de forma progressiva, para o desenvolvimento das atividades imobiliárias. A subscrição compulsória será uma condição para a concessão de autos de vistoria (habite-se) para toda e qualquer construção imobiliária residencial, comercial, de serviços e industrial, sendo o banco emissor de livre escolha do adquirente do título (resguardada a possibilidade de parcela a ser estipulada pelo governo, que pode ser de emissão do BNH, em condições de rentabilidade comparáveis às do mercado livre).

Considerando que esses recursos terão custos altos, a subscrição compulsória de Letras Imobiliárias será, provavelmente, um promissor mercado cativo para a colocação de títulos pelos bancos hipotecários. Com esses recursos, financiarão os segmentos imobiliários não atendidos pelo BNH (famílias de renda acima de 5 salários mínimos, construtores, incorporadores, corretores, etc.).

A conjugação das propostas acima garantiria um fluxo de recursos específicos para as atividades de interesse social (cadernetas de poupança e FGTS), potencializando as possibilidades de atendimento do BNH. Ademais, criaria um segmento imobiliário do mercado financeiro livre mais dinâmico, em consonância com as demais atividades financeiras produtivas brasileiras. Garantir o escoamento do fluxo de produção de moradias para a população de interesse social, o BNH estaria incentivando sua construção, sujeitando-a de forma saudável e eficiente à concorrência do mercado.

Redução de Custos e dos Encargos Financeiros para a Faixa de Interesse Social

Além dos artifícios financeiros largamente utilizados que elevam sobremaneira os custos efetivos dos financiamentos do SFH, há uma lista extensa de outros encargos que aumentam o custo da casa própria. São particularmente preocupantes nas transações dentro da faixa especial, devido à inexistência de poupança prévia dos mutuários para enfrentar esses custos acessórios, normalmente exigidos antecipadamente. Aqui incluem-se a taxa de abertura de crédito, taxa de expediente, comissões de cobrança, seguro, contribuições ao FGTS, ao Fundab, taxas de cartório, registro, hipotecas e emolumentos às prefeituras e demais órgãos governamentais. Toda essa parafernália de custos, alguns embutidos no preço do imóvel e outros de caráter acessório, pode inviabilizar uma operação de financiamento, sobretudo para as famílias de baixa renda. Esses custos podem chegar a até 10% do valor do contrato de financiamento.

O maior efeito redutor de custos, porém, poderá ser conseguido via redução dos juros. Além de medidas que reduzam os custos acessórios, os juros nos financiamentos do BNH para os mutuários da faixa social deverão ser reduzidos ao máximo permitido pelos custos de captação.

Vale lembrar que os juros reais, pelas razões descritas, ultrapassam os valores dos juros contratuais, razão pela qual é imprescindível que sejam desenvolvidos esforços para minimizar as discrepâncias entre os juros contratual e efetivo. Como mencionado antes, o custo dos recursos do BNH está em torno de 14,10% ao ano, sendo as taxas ativas nas carteiras de operações com Cohabs e Promorar na faixa de 3% e 1,7%, respectivamente. A sugestão é a absorção pelo BNH das cadernetas de poupança, que rendem 6% ao ano, tenderá a aumentar suas taxas de juros passivas. Contudo, passando as cadernetas a ser monopólio do BNH, e transformando-se na única aplicação garantida pelo governo (e que, além do mais, caracteriza-se pela simplicidade de procedimentos de saques e depósitos, e relativa liquidez), os juros oferecidos poderão, teoricamente, ser reduzidos sem comprometer o fluxo de aplicações. Há evidências históricas de que a redução da rentabilidade das cadernetas, resultado de índice de correção monetária aquém da inflação, não reduziu significativamente os depósitos.

Como medida complementar na tentativa de reduzir o custo de captação do BNH, é preciso:

Sugestão 5: Estender o FGTS ao trabalhador rural e, ao mesmo tempo, limitar os créditos nessas contas, rurais e urbanas, apenas à correção monetária plena, não remunerando-as com juros reais.

A extensão do FGTS ao trabalhador rural poderia incorporar ao sistema aproximadamente um terço da população economicamente ativa do país. A indenização por tempo de serviço ainda vigente no campo é um instrumento ineficaz para a garantia do trabalhador rural, que se transforma cada vez mais acentuadamente em trabalhador volante, sem vínculo empregatício. A instituição do FGTS às atividades agropecuárias, além de fortalecer o BNH, poderia também contribuir para a reversão do êxodo rural, atenuar a questão do bóia-fria e para a fixação do trabalhador rural no campo, desinchando os centros urbanos congestionados.

Segundo dados do Censo de 1980, os assalariados do setor agrícola somavam quase 5 milhões de pessoas. Dada a distribuição salarial para este grupo de trabalhadores, estima-se que a extensão do FGTS poderia resultar numa arrecadação mensal equivalente a 375.000 salários mínimos, ou em um fluxo adicional anual de cerca de 4.500.000 salários mínimos. Muito embora haja saques, trata-se de uma soma significativa, considerando que em novembro de 1984 a arrecadação bruta do FGTS chegou a 2.638.000 salários mínimos. Portanto, o FGTS rural reforçaria o atual fluxo em aproximadamente 18%.

Vale lembrar que o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço veio substituir a instituição da indenização por tempo de trabalho. O funcionário, no seu desligamento da empresa, recebia como indenização por cada ano de serviço uma quantia baseada em seu salário corrente. O FGTS estabelece que os empregadores adiantem ao FGTS o equivalente a um salário mensal por ano de serviço do trabalhador. Portanto, a mera correção dos valores adiantados pelos empregadores seria suficiente para a equiparação dos benefícios do FGTS aos da indenização por tempo de serviço.

Atualmente, o FGTS remunera seus depósitos a taxas que variam entre 3% e 6% ao ano, o que o transformou em um virtual depósito de poupança ou em um fundo de previdência e aposentadoria, em duplicidade de ação com o IAPAS. A eliminação do pagamento de juros aos depósitos do FGTS, mantendo-se apenas a correção monetária plena, seria uma importante medida no sentido de reduzir o custo dos recursos do Sistema Financeiro da Habitação. Possibilitaria, portanto, a redução dos juros cobrados aos mutuários e a consequente dinamização do setor habitacional popular.

Atente-se ao fato de que esta medida visa o fortalecimento do sistema, bem como o atendimento à habitação de interesse social, e que, em última análise, implica justificável transferência de recursos para os assalariados não possuidores de moradia própria. A redistribuição favoreceria também aqueles que se encontram desempregados, na medida em que reativaria o setor imobiliário, grande absorvedor de mão-de-obra.

As medidas acima justificam-se na medida em que tornarão possível a concessão de financiamentos habitacionais às famílias de baixa renda, com reduzidas taxas de juros reais. Convém lembrar que os juros representam uma parcela substancial das prestações. Em um financiamento de 15 anos, as prestações seriam mais altas com uma taxa de juros de 10% do que com uma de 4%, sendo que a prestação é 7% mais elevada.

Vê-se, portanto, a importância e as relevantes vantagens sociais na adoção de medidas que possibilitem a redução dos juros reais cobrados nos financiamentos de interesse social.

Alteração do "Product Mix" de Serviços Prestados pelo BNH

Os atuais programas habitacionais populares são, em sua virtual totalidade, orientados para a edificação de conjuntos residenciais, solução "tecnocrática" emuladora dos padrões de classe média. Tem-se ignorado soluções intermediárias, porém de grande alcance social, como programas de aquisição de lotes urbanizados, programas de apoio financeiro e técnico para a auto-construção, programas de financiamento para aquisição e distribuição direta de material básico de construção, bem como programas de apoio e financiamento de casa própria em "estágios", ou seja, aquisição de lote e posterior auto-construção.

Em conformidade com aquela visão tecnocrática da questão, criou-se um corpo legislativo urbanístico altamente elitizante e burocratizado, impedindo o desenvolvimento de formas intermediárias de atendimento à demanda habitacional das camadas populacionais carentes, restando-lhes como alternativa a favelização e o encurtamento. Segundo VALLADARES (1983), a favela tem sido caracterizada como "solução" habitacional, oferecendo vantagens como melhor localização, economia em transporte, inexistência de aluguel e custos nulos pelo terreno (restando como custos somente as melhorias efetuadas). Obviamente, trata-se de uma "segunda melhor" alternativa, dadas as precárias condições de habitabilidade encontradas.

Assim, surge a necessidade de opções intermediárias, que ofereçam condições mínimas de habitabilidade a custos compatíveis com a renda da população-alvo e com a necessidade de maximizar o número de famílias atendidas. A solução do problema habitacional brasileiro para as camadas de baixa renda deve passar pela alternativa dos "2 estágios", ou seja, o financiamento da compra do lote urbanizado e da posterior auto-construção da habitação. Esta alternativa pode ser complementada pela deselitização e desburocratização que rege o parcelamento do solo, tanto no âmbito federal quanto municipal, ampliando a faixa de interesse social para os setores mais empobrecidos e excluídos da urbanização formal.

Reflexões Finais sobre o "Minipadrão"

As propostas acima visam a reestruturação do sistema de financiamento da habitação, com o objetivo de atender, de forma eficiente e sustentável, a demanda habitacional da população de baixa renda. Em função da complexidade do setor e das variáveis envolvidas, é imperativo que o processo de implementação seja acompanhado de um planejamento detalhado e de uma análise contínua dos resultados, a fim de ajustar e otimizar as estratégias adotadas. A abordagem proposta busca equilibrar os interesses dos diversos agentes envolvidos e garantir um acesso mais justo e amplo à moradia, contribuindo assim para a melhoria das condições de vida e para o desenvolvimento social e econômico do país.

Esta forma de produção habitacional minimiza a necessidade de poupança financeira, geralmente inexistente nas camadas populacionais de baixa renda, e se apoia no trabalho excedente, um recurso real disponível na maioria das famílias carentes. Além disso, possibilita que a construção residencial ocorra no ritmo e na forma desejados pela família que nela habitará. Evita-se, assim, os inconvenientes dos grandes conjuntos residenciais, bem como se minimiza a renda familiar exigida para a obtenção dos financiamentos.

Dois pontos importantes neste programa seriam a orientação necessária ao auto-construtor, possivelmente com o aproveitamento da estrutura das INOCOOPS e dos próprios empreendedores capitalistas, e a presença de uma rede de abastecimento de materiais de construção credenciados pelo BNH, possibilitando a oferta de materiais padronizados a custos reduzidos.

A proposta acima tem como objetivo satisfazer a demanda por imóveis residenciais próprios, um princípio arraigado na política habitacional brasileira.

Garantia de Equivalência Salarial Plena

O SFH vem tentando ser um programa lastreado no princípio da auto-suficiência financeira. O pressuposto básico de seus programas tem sido o de que os custos de operação e de capitalização do sistema devem ser integralmente financiados pelos próprios mutuários. Assim sendo, perde-se muito do seu conteúdo social, transformando-se num sistema eminentemente financeiro e empresarial, assumindo, por vezes, funções de estimulador do capital privado.

A meta da auto-suficiência explica a existência de vários fundos como o FCVS, FUNDHAB, FAHBRE, FAL, FGDLI, além de seguros de crédito, de morte e multiplicadores como o CES. Todas essas contribuições encarecem o preço final do imóvel. Os próprios mutuários arcam com estes custos, o que restringe e elitiza o âmbito assistencial do SFH. Portanto, torna-se necessário retirar a conotação financeira das atividades imobiliárias de interesse social sem, no entanto, como vem ocorrendo atualmente, transformá-las casuisticamente num imensurável rombo nas finanças públicas.

É válido ressaltar que até mesmo em nações avançadas, como os EUA, a política habitacional de interesse social se apoia em vultosas concessões de subsídios explícitos. Segundo Taggart (1970), "o simples fato é que milhões de famílias agora têm, e continuarão por algum tempo, uma renda muito baixa para arcar com o mínimo padrão de abrigo. (...) A responsabilidade por ajudar essas famílias recai quase inteiramente sobre o governo federal."

Assim, torna-se necessário a adoção de linhas de ação coerentes com os objetivos sociais do programa, delimitando rigidamente sua atuação, bem como tornando seus custos os mais transparentes possíveis. Desta maneira, justifica-se a presença de subsídios explícitos, os quais, devidamente dimensionados, devem fazer parte do orçamento fiscal da União.

Evita-se, portanto, que a política habitacional continue sendo um mecanismo concentrador de renda pessoal, já que seus recursos são captados principalmente junto às famílias de renda baixa (FGTS dos assalariados) e média-baixa (depósitos de poupança de assalariados especializados, pequenos comerciantes, pequenos rentistas etc.), ao passo que suas aplicações privilegiam o mutuário de perfil econômico de renda superior.

Preconizou-se atrás a adoção de critérios operacionais de financiamento que amortizem exatamente a dívida contraída. Isto exigiria correções trimestrais, tanto das prestações quanto dos saldos devedores (PCM). Como, contudo, os salários são geralmente reajustados semestralmente, os níveis de comprometimento de renda aumentam no trimestre entre os reajustes salariais.

Sugestão 7: Os planos de financiamento da casa própria do BNH deverão garantir plena equiparação salarial, limitando o comprometimento de renda familiar dos mutuários. A diferença entre o comprometimento de renda familiar contratual e aquele resultante do valor das prestações, quando este superar aquele, deverá ser coberta, a fundo perdido, pelo governo.

Assim, para financiamentos a famílias de até 3 salários mínimos, com um teto de 800 UPC, a plena equivalência seria garantida num dado percentual de comprometimento de renda familiar.

Os custos de subsídios da solução preconizada, se cotejados aos "furos" potenciais que o atual sistema financeiro enseja, têm a vantagem de garantir o atendimento às famílias de até 3 salários mínimos de renda familiar, para as quais os financiamentos unitários não deverão ultrapassar 600 UPC. Um financiamento pelo teto (600 UPC), a juros de 6% ao ano, em um prazo de 15 anos, resultaria em prestações, agora isentas de taxas, contribuições ou CES, de UPCs mensais. Mantendo-se a relação UPC/salário mínimo igual a 1,073 (último trimestre de 1984), as prestações iniciais seriam de um salário mínimo, ou 16% de comprometimento de renda para uma família de 3 salários mínimos mensais; um financiamento de 300 UPC nas mesmas condições representaria um comprometimento de renda de 12% para famílias de 2 salários mínimos de renda familiar.

O quadro abaixo avalia as necessidades de subsídios sob algumas hipóteses alternativas. Foi utilizado como exemplo um financiamento de 600 UPC, amortizável em 15 anos à taxa de juros de 6% ao ano. As hipóteses usadas na simulação pressupõem uma taxa de correção monetária constante, ao nível de 185% ao ano, alternativamente, uma correção monetária descendente iniciando-se ao nível de 232% no primeiro ano, 185% no segundo ano, 100% nos terceiros e quartos anos, 75% nos quintos e sextos anos, e, a partir de então, uma correção monetária estável. Em relação aos reajustes salariais, há 14 hipóteses, todas mantendo a semestralidade dos reajustes salariais, a trimestralidade das correções das prestações e dos saldos (PCM), com valores para a relação entre índices de reajustes salariais sobre os índices de reajustes das UPC iguais a .98, 1 .00 , 1,02 e 1, 05.


Nota-se que os subsídios necessários para o plano de equivalência salarial plena dependem, com muito maior intensidade, da queda das taxas de inflação (e de correção monetária) do que dos reajustes salariais situarem-se acima ou abaixo da correção monetária. Desta forma, mesmo com o prosseguimento do arrocho salarial, os subsídios reduzem-se a tão-somente 2% do empréstimo caso a inflação seja decrescente (o nível dos subsídios requeridos seria da mesma ordem de grandeza que no caso de uma política de reposição salarial de 0,05% com estabilidade nos patamares inflacionários).

Verifica-se, portanto, que a garantia de equivalência salarial plena para financiamentos de interesse social, dentro das condições mencionadas acima, acarretaria um custo, em termos de subsídios, que parece ser de magnitude perfeitamente absorvível pelo governo, dado a favorável relação custo/benefício que um projeto desta natureza caracterizaria.

Tomando-se a cidade de São Paulo como exemplo, constata-se a seguinte distribuição de renda familiar para as populações residentes em favelas e cortiços associados ao Plano Habitacional do Município de São Paulo: a população carente com renda inferior a 2 salários mínimos não tem condições viáveis de aquisição de imóvel. Já as famílias com 2 a 3 salários mínimos poderiam, com alguma compressão de despesas, gerar poupanças para a aquisição da casa própria. Aqueles com 2 a 2,75 salários mínimos poderiam dispor de cerca de 6% a 8% de seus orçamentos, enquanto as famílias com 3 a 3,75 salários mínimos teriam possibilidades de alocar entre 12% e 16% de seus rendimentos para financiar a casa própria. Assim, as sugestões mencionadas acima são exequíveis, desde que aqueles percentuais de comprometimento de renda não sejam ultrapassados, havendo possibilidades de se enquadrarem nas poupanças propostas a maior parte da população cortiçada (27%) e cerca de 35% da população favelada (65% das famílias têm renda inferior a 2 salários mínimos).

Se as condições mínimas de arcar com o financiamento são atingidas por ocasião dos reajustes salariais (pico de renda real), as condições do plano de correção monetária, reajustando as prestações trimestralmente, farão com que a relação UPC/SM se eleve durante o trimestre imediatamente anterior ao reajuste salarial.

A plena equivalência salarial aqui proposta garante que os efeitos desta variação no comprometimento de renda do mutuário sejam absorvidos, a fundo perdido, pelo BNH. Vale lembrar ainda que a eventual adoção de reajustes salariais trimestrais, bem como aumentos de renda do trabalho familiar, poderão reduzir ou até mesmo eliminar a necessidade de subsídios. Outrossim, torna-se importante que o plano proposto seja realista e adequado às condições do mercado de trabalho formal e informal onde se insere a maioria das famílias de baixa renda, bem como adotar o trimestre móvel.


6.6. Locação Habitacional

Para as famílias com renda inferior a 2 salários mínimos, são necessários outros programas que atendam suas necessidades habitacionais.

A concepção de que a questão habitacional passa necessariamente pela aquisição da casa própria é uma falácia, como tem sido demonstrado, entre outros trabalhos, por Bolaffi (1981). Com efeito, segundo Bonduki (1983), o atual padrão urbanístico das cidades brasileiras está calcado na casa própria e no padrão periférico de sua localização. Este fenômeno é recente na história, remontando apenas à década de 1920 e, com maior destaque, à década de 1930 com a implementação do Plano de Avenidas e o trabalho do Prefeito Prestes Maia. Até então, a moradia alugada era a forma predominante de atendimento à demanda habitacional.

A crise econômica dos anos 1980, com o violento arrocho salarial, justifica esforços na reversão parcial dos padrões habitacionais prevalecentes no passado, com diminuição da ênfase na aquisição da casa própria e maiores incentivos a formas alternativas de atendimento à demanda habitacional.

A Tabela 27 demonstra as transformações ocorridas na distribuição entre domicílios próprios e alugados, fornecendo evidências de importantes precedentes para a adoção de uma política habitacional apoiada no imóvel de aluguel.

Sugestão 8 : Adoção de programas orientados para a suplementação de aluguel para as faixas de renda inferiores, podendo tais planos serem desenvolvidos conjuntamente com prefeituras, companhias públicas locais e regionais e a iniciativa privada. A forma de implementação financeira desses programas seria a complementação do valor do aluguel em imóveis e em condições previamente determinadas, de forma a não comprometer mais do que uma porcentagem estipulada da renda familiar.

Trata-se, como esperado, de um programa de interesse social de desembolsos a fundo perdido, o que se torna perfeitamente compatível com o objetivo de um sistema que pretende ser de prestação de serviços habitacionais de interesse social, e não exclusivamente um sistema financeiro da habitação, como vem sendo até o presente.

Na proposta de suplementação de aluguéis, pretende-se atingir aquelas famílias que estão impossibilitadas de adquirir imóveis próprios. Possivelmente, para as faixas de até 2 salários mínimos de renda familiar, os subsídios locatícios seriam altos, podendo cobrir praticamente a totalidade do aluguel. Este programa deverá sempre, no entanto, exigir comprometimento de 8% a 10% da renda do locatário, e não perdurar além de um prazo pré-estipulado.

  1. Considerações Finais

É evidente que qualquer tentativa de implementação das medidas aqui sugeridas exigirá maior detalhamento e minuciosa avaliação de custos e benefícios. Não obstante, o plano de reforma do SFH proposto reveste-se de característica essencial à sobrevivência do sistema: é um plano global e integrado. Foges-se, assim, do casuísmo que tem sido a tônica dominante de todas as alterações já introduzidas na política habitacional brasileira.

Infelizmente, não há como evitar que a obtenção das metas sociais do programa desembolque na concessão de subsídios. Por outro lado, vale relembrar que os subsídios sempre existiram, só que de forma velada e pouco transparente para os planejadores do orçamento público brasileiro. O potencial explosivo das finanças do SFH poderá, ademais, desarticular por completo este poderoso instrumento de atuação na área social.

O SFH, ao longo dos últimos 20 anos, foi desconfigurado, tendo-se transformado em um enorme aparato financeiro, cujo conteúdo social tem sido desproporcionalmente baixo face ao seu peso econômico: é responsável pela gestão de fundos cujo valor total atinge cifras equivalentes a 6 vezes os meios de pagamento da Nação, à atual dívida pública interna, a uma terça parte do total dos empréstimos do sistema financeiro ao setor privado, e mais de duas vezes superior à receita orçamentária do governo federal. O estouro deste sistema, como poderá ocorrer caso profundas reformas não sejam implementadas, terá consequências imprevisíveis.

Finalmente, cabe salientar que a estrutura do SFH não comporta bruscas alterações de rumo, tornando-se essencial a gradual adequação de sua atual configuração às reformas aqui propostas. Isto, por sua vez, exigirá outros estudos e outras propostas, capazes de reorientar seus rumos sem rupturas e sem maiores prejuízos, não somente para os 60 milhões de depositantes de poupança, ou para os trabalhadores titulares das contas do FGTS, mas também para a Nação como um todo.

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