SÃO PAULO, SP - Ex-secretário da Receita no governo Jair Bolsonaro (PL), o professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) Marcos Cintra afirma que a aprovação da Reforma Tributária está garantida, mas sua implementação dependerá de medidas para desonerar a folha de pagamento do setor de serviços, que julga prejudicado pelas mudanças propostas.
Crítico do novo sistema criado pela PEC 45, aprovada no Senado na quarta-feira (8), Cintra diz não ver alternativa para promover essa desoneração, e também evitar uma falência do sistema previdenciário, que não seja uma nova CPMF.
"Ninguém gosta de CPMF. Eu sou o único. Mas acho que a realidade vai se impor. Se não for por uma superação desse preconceito criado em torno desse imposto, pela absoluta ausência de alternativa", afirma Cintra em entrevista à Folha.
A defesa da volta desse tributo e disputas políticas estão entre os motivos que o levaram a deixar o comando do fisco em setembro de 2019.
Cintra afirma que o agronegócio, mais estruturado e politicamente poderoso, vai sair da reforma pagando menos tributos. O setor de serviços, no entanto, foi parcialmente beneficiado, segundo o ex-secretário.
"Se não houver desoneração de folha, acho que a PEC 45 não se sustenta. O governo vai ter de jogar a toalha."
Cintra critica as estimativas do Ministério da Fazenda sobre a alíquota dos novos tributos e avalia que ela pode chegar a mais 33% por fatores como maior sonegação e litigiosidade.
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Leia trechos da entrevista.
* Reforma Tributária*
O texto que saiu do Senado, não acredito que sofrerá grandes mudanças. A urgência do governo é grande, é conhecida. Existem os dividendos políticos que querem colher o mais rapidamente possível de um projeto de Reforma Tributária aprovado.
A estrutura fundamental do novo sistema está dada. Não adianta discutir sobre leite derramado. Agora o que resta é avaliar os impactos e o que é que nós podemos prever daqui para frente com a aprovação desse projeto e a sua efetiva implementação.
Quando começarmos a fazer as leis complementares, provavelmente vamos conhecer qual será a alíquota efetivamente necessária para manter 12,5% [do PIB] de arrecadação com a tributação do consumo. Vamos ver se vai ser 27%, 30%, 32%, 33%.
Aí pode ser que a discussão da desoneração de folha se torne essencial no setor de serviços.
Agora, esse combate vai começar a ocorrer a partir do ano que vem. Em 2024, 2025, vamos ter uma enxurrada de projetos de lei, até mesmo de PECs [propostas de emendas à Constituição], corrigindo, aperfeiçoando, modificando ou até mesmo anulando partes da PEC 45.
*Desoneração da folha*
Quando estava na Receita, eu elaborei o projeto da CBS [contribuição federal que acabou incorporada à reforma pelo Congresso], que depois basicamente foi ajustado para se adequar à PEC 45. Eu não era contra a reforma do IVA federal, na época o CBS. Inclusive tivemos um projeto.
Agora, o que acabou influenciando a minha permanência na secretaria foi que nós percebemos que o IVA federal, com as características que hoje estão na PEC 45 e que nós queríamos que estivessem também na CBS, envolveria um deslocamento muito grande de carga tributária, em desfavor do setor de serviços.
O projeto original não era ser contra um IVA moderno como esse que está sendo implantado aqui, só que ele deveria vir acompanhado de uma desoneração de folha.
Aí ia entrar o tributo sobre movimentação financeira. Para desonerar a folha e equilibrar a carga tributária entre o setor de serviços e os demais.
Não havia conflito. O uso de um tributo sobre movimentação financeira seria complementar ao CBS, para atenuar alguns dos desequilíbrios muito profundos que o projeto acarretaria. E isso está acontecendo agora na PEC 45.
Prazo de 180 dias
Existe na PEC 45 uma obrigatoriedade de que o governo em 180 dias apresente um projeto de alteração na tributação sobre salários.
Vai se tratar da desoneração e de um assunto correlato, que é a reforma do financiamento da Previdência, que continua sendo calcado muito em cima de folha, que é uma base tributária em franca deterioração, em franca decadência, em desintegração.
Em 2024 e 2025, quando as leis complementares forem discutidas, e principalmente quando o governo, pela obrigatoriedade constitucional de apresentar em até seis meses após aprovação da reforma tributária um projeto de novo sistema de tributação de salários, esse vai ser um dos temas centrais.
*Agro sai melhor da reforma*
Alguns setores vão ter muitos benefícios. O agro saiu dessa reforma muito melhor do que entrou.
A PEC 45 original partiu do pressuposto de que dois setores eram subtributados no Brasil e que tinham de ser mais tributados, o agro e o setor de serviços. O agro, estruturado como é, politicamente poderoso, negociou e vai sair melhor do que entrou.
O produtor rural até quase R$ 4 bilhões por ano está isento, não será contribuinte do IBS, e os insumos agrícolas vão estar isentos de IBS. Tem uma cesta básica desonerada, os principais produtos totalmente, eles vão sair melhor do que entraram. Graças a Deus, porque é o setor que sustenta o Brasil hoje.
Mas o setor de serviço é desestruturado e tem como liderança uma confederação que não representa, pela sua diversidade, o total dos seus representantes.
A CNC [Confederação Nacional do Comércio] conseguiu incluir na PEC o setor de turismo, hotéis, restaurantes, bares etc., que é parte da base deles. Também vão sair muito bem disso.
Agora, o setor de serviços que é da base da CNC não ganhou nada, principalmente esse setor mais intensivos em mão de obra.
*CPMF*
O impacto dessa reforma nós vamos começar a descobrir a partir de 2024 e 2025. Eu espero que o debate seja aberto, franco, e que alguns temas que eu julgo essenciais sejam explicitados com mais clareza. Um deles é a desoneração de folha.
Se não houver desoneração de folha, eu acho que a PEC 45 não se sustenta. O governo vai ter de jogar a toalha. Precisa desonerar a folha, não pode jogar ao léu um setor tão importante, tão empregador de gente, principalmente de gente de baixo nível de escolaridade e nível de renda, que é o setor de serviços.
Como é que vai desonerar a folha? Vai ser com o aumento do Imposto de Renda? Vai ser com o aumento do IBS?
Pode ser com o imposto de movimentação financeira, que é o que eu acho que vai acabar sendo, que não tem outra alternativa, mas o tema desoneração de folha, independentemente da forma de financiamento, ela vai ser essencial para a sustentação da PEC 45.
Ninguém gosta de CPMF. Eu sou o único. Mas acho que a realidade vai se impor. Se não for por uma superação desse preconceito criado em torno desse imposto, pela absoluta ausência de alternativa.
Subir IR ou o IBS não tem como. Criar o imposto sobre grandes fortunas para financiar a desoneração? Não tem outro caminho.
O importante é que a desoneração de folha esteja na pauta de debates tributários no ano que vem. Não só para sustentar a reforma tributária, mas principalmente para evitar a falência do sistema de seguridade nacional, que está em situação pré-falimentar.
Se nós não atentarmos para isso, a falência do sistema previdenciário brasileiro e da segurança social brasileira será questão de anos.
Raio-X
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 78
Doutor em Economia pela Universidade Harvard. É professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas. Foi secretário especial da Receita Federal do Brasil (2019) e secretário do Planejamento do Município de São Paulo. Foi vereador e deputado federal.