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Marcos Cintra

Livro: Economia Agrícola - O Setor Primário e a Evolução da Economia Brasileira (parte 1/2)

Para referências, bibliografia, e demais conteúdos, acesse o livro completo em PDF. Livro PDF

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque

Doutor pela Universidade de Harvard 

Robert Nicol

Doutor pela Universidade de São Paulo


Capítulo 1: MODELOS TEÓRICOS DA RELAÇÃO AGRICULTURA

INDUSTRIALIZAÇÃO

Pretendemos traçar neste capítulo uma visão teórica da relação desenvolvimento agrícola-desenvolvimento industrial. Nossa abordagem não pretende ser exaustiva, mas tem por objetivo tão-somente analisar aqueles modelos que, a nosso ver, dão uma visão mais ou menos completa dos problemas teóricos envolvidos no tema que pretendemos estudar. 

Antes de apresentarmos esses modelos, entretanto, seria interessante termos uma breve visão geral do inter-relacionamento entre os dois setores, para depois entrarmos nos problemas específicos que os modelos selecionados abordam. Para tal, nos valeremos de um esquema apresentado por B. W. Hodder. 

O esquema do referido autor é muito simples: ele vê o desenvolvimento econômico como um continuum. Num extremo teríamos uma economia tipicamente subdesenvolvida; no outro, a desenvolvida. Para se caminhar no subdesenvolvimento ao- desenvolvimento, a economia atravessaria uma série de estágios, definidos por uma série de características. 

Num extremo do continuum, teríamos a economia em seus primórdios. Primórdio é utilizado pelo autor num sentido bem restrito como sendo equivalente à "situação primeva". Nessa "situação primeva" o autor entende que deva incluir todos os aspectos de uma economia, inclusive o demográfico. Nossa economia nessa fase, portanto, se caracterizaria por uma baixa densidade demográfica. A população, além de ser pequena, em sua totalidade estaria se dedicando à agricultura. Esta, por sua vez, à semelhança da economia como um todo, também seria das mais primitivas que podemos imaginar - seria do tipo "errante" (shifting- field cultivation). Por agricultura errante o autor entende “todos os tipos de agricultura que não são estritamente permanentes”[2]. Acredita Hodder que este tipo de agricultura deva ter sido aquele adotado nas fases de "desbravamento" de uma região.

"Alguma forma de agricultura errante deve ter sido adotada originalmente pelos agricultores pioneiros, na maioria das regiões do mundo, e desta forma este tipo de agricultura pode ser considerado simplesmente como uma expressão de um estágio de civilização - um estágio através do qual a maioria dos sistemas agrícolas passou num determinado período". Op. cit., p. 99.

Este tipo de agricultura apresenta uma série de vantagens com relação a outros tipos. Primeiramente requer pouquíssimo capital. Mas, talvez o aspecto mais importante, e que lhe confere inclusive sua razão de ser nas fases iniciais do "desenvolvimento", é o fato de requerer um menor volume de mão-de-obra para produzir um determinado volume de produção, do que qualquer outro tipo de exploração agrícola.

"A evidência de que dispomos, hoje em dia, sugere que a agricultura errante leva a melhores resultados com relação à mão-de-obra utilizada do que a agricultura permanente". Op. cit., p. 100.

E, dessa maneira, seria "a melhor forma de exploração da terra nas fases iniciais de fixação do homem ao solo quando a densidade populacional é baixa". 

Este tipo de agricultura, embora o mais indicado nas etapas inicias de fixação do homem à terra, tem seus inconvenientes: requer uma área muito extensa para que a recuperação do solo possa ocorrer pelo alqueire e não leve a uma perda de fertilidade e à sua erosão. Esta seria a restrição mais séria a este tipo de exploração da terra.

"Especialmente onde a densidade populacional é mais elevada ou onde o costume restringe a área cultivável, o sistema pode levar à exaustão do solo, à perda de fertilidade... e à erosão da terra". Op. cit., p. 98.

À medida que a densidade for aumentando, esse tipo de agricultura se constituirá num problema, requerendo a mudança para alguma outra forma de exploração da terra.

"Uma vez que a densidade populacional atinge um determinado nível que torna impossível um adequado pousio da terra, aí o sistema de agricultura errante torna-se impraticável, devendo ser substituído por um outro que permita que pelo menos a mesma quantidade de alimentos possa ser produzida a partir de uma área menor. em cultivo permanente". Op cit., p. 102.

Essa adaptação, entretanto, provavelmente só ocorre com muita lentidão e com grande atraso com relação às necessidades expressas numa densidade populacional crescente e em níveis de renda decrescentes.

Mas, eventualmente, algum tipo de cultivo permanente deve evoluir em face da crescente pressão demográfica. Uma vez desenvolvido tal tipo de exploração da terra, ingressaríamos no segundo estágio de Hodder.

Este seria, ainda, caracterizado pela utilização da maior parte da mão-de-obra no setor agrícola, com uma baixa utilização de bens de capital, mas a agricultura seria permanente, apresentando nisto sua diferença fundamental com relação ao primeiro estágio. 

O terceiro estágio ocorreria com o aparecimento do setor industrial e com a crescente participação da mão-de-obra nesse setor. Ao mesmo tempo em que isso estaria ocorrendo, um mecanismo de feedback da indústria para a agricultura lhe permitiria se desenvolver tecnologicamente. Seria o estágio quando os pesticidas e os herbicidas começariam a ser utilizados. Haveria também a tendência para o trabalho na agricultura se processar cada vez mais com o auxilio de máquinas. A agricultura passaria, portanto, a empregar técnicas capital-intensivas, poupadoras de mão-de-obra.

Este terceiro estágio daria lugar ao quarto e último estágio, que se caracterizaria por uma agricultura extremamente sofisticada, pouco absorvedora de mão-de-obra e que, quanto aos métodos da organização e distribuição de sua produção, pouco diferiria das outras indústrias.

 

Muito resumidamente, este seria o quadro do desenvolvimento agrícola- industrial dentro do qual tentaremos encaixar nossas perguntas acerca do inter-relacionamento desses dois setores pelo uso dos modelos acima referidos4 .

Antes de apresentarmos estes modelos, gostaríamos de esclarecer que a ordem em que aparecem não pretendeu seguir nenhuma seqüência cronológica. São apresentados na ordem que nos pareceu ser a mais simples em termos de exposição. 


DAVID RICARDO - A agricultura como fator limitativo ao desenvolvimento industrial

Desde seus primórdios, como atividade intelectual, a Economia tem se preocupado com a relação entre a agricultura e o desenvolvimento. Tais preocupações vemos expressas nas obras dos mercantilistas, dos fisiocratas e dos autores da escola "clássica". Entre estes o que, talvez, tenha conseguido estabelecer de forma mais precisa a relação entre os dois foi o economista inglês David Ricardo.

O que preocupava Ricardo não era exatamente a relação entre a agricultura e o desenvolvimento, tal como entendemos o termo hoje em dia, mas precisamente as interrelações entre o crescimento populacional, uma agricultura tecnologicamente estacionária e uma indústria em crescimento.

Simplificando bastante a visão de Ricardo, podemos dizer que concebia a economia como estando dividida em dois setores: o setor agrícola e o setor manufatureiro. Nestes dois setores, o volume de produção dependeria do volume de fatores de produção empregados: mão-de-obra, terra, isto é, recursos naturais, e capital. Quanto maior o volume destes últimos, maior a produção.

Além destes fatores, cuja variação poderia aumentar ou diminuir o volume de produção, Ricardo via a possibilidade de haver um aumento na produção de um dos setores - o manufatureiro - através daquilo que, hoje em dia, chamaríamos desenvolvimento tecnológico. Quanto ao setor agrícola, embora Ricardo admitisse a possibilidade de haver desenvolvimento tecnológico, acreditava também que o ritmo ao qual tal desenvolvimento se processaria seria muito lento para poder compensar a tendência aos rendimentos marginais decrescentes que seriam fatalmente observados à medida que a população crescesse. O que queria dizer era que à medida que a população crescesse, a produção agrícola deveria aumentar para alimentar esse maior número de bocas. Para tal seria necessário a utilização de uma maior quantidade de terras. Ricardo acreditava que a tendência era, a princípio, serem utilizadas as terras mais produtivas e à medida que as necessidades o fossem forçando, terras de produtividade decrescentes. Ora, isto implicava dizer que à medida que a população aumentasse, a produção agrícola cresceria com um aumento na extensão das áreas sob cultivo, porém esses aumentos adicionais à produção seriam cada vez menores. A esse fenômeno de adições à produção cada vez menores, deuse na Teoria Econômica o nome de Princípio dos Rendimentos Marginais Decrescentes.

Esse chamado Princípio dos Rendimentos Marginais Decrescentes que operaria na agricultura tem para nós grande importância. Primeiramente por constituir a base para a explicação da existência da renda da terra no esquema ricardiano; e, em segundo lugar, como veremos mais adiante, por estabelecer um limite para o crescimento da economia como um todo, inclusive para o setor manufatureiro.

É bem conhecida a explicação ricardiana do surgimento da renda da terra em função de sua escassez e de diferenças em sua produtividade. Se a terra fosse um fator abundante com um nível de produtividade constante, ninguém pagaria aluguel pelo seu uso. Mas, dado que a terra é um fator escasso e de produtividade variável, o aluguel surgirá no momento em que terras de diferentes níveis de produtividade estiverem sendo utilizadas. A terra menos produtiva (denominada marginal) não gerará nenhum aluguel, se admitirmos que este tipo de terra é o que existe em abundância. Todos os outros tipos pagarão um aluguel correspondente à diferença entre seus respectivos graus de produtividade e a produtividade da terra marginal.

Para entendermos como a existência de rendimentos marginais decrescentes na agricultura impunha um limite ao crescimento da economia como um todo, é conveniente recordar o que foi visto anteriormente. Primeiramente vimos que Ricardo concebia a economia como sendo constituída por dois setores: o manufatureiro e o agrícola. O primeiro estaria sujeito ao desenvolvimento tecnológico e o segundo apresentaria uma tecnologia quase estacionária. Para simplificar a argumentação, admitiremos uma tecnologia completamente estacionária para a agricultura. Ora, dado um país que, embora em franca industrialização, ainda fosse basicamente agrícola, como a Inglaterra à época de Ricardo, é fácil entender porque este concebia a economia em seu conjunto como sujeito aos rendimentos marginais decrescentes. Isto seria simplesmente uma decorrência da grande importância relativa da agricultura. Mesmo que houvesse uma tendência para um aumento na produtividade no setor manufatureiro decorrente do desenvolvimento tecnológico, este ganho na produtividade desapareceria em face das fortes tendências aos rendimentos marginais decrescentes na agricultura - o setor básico da economia.

A utilização de alguns gráficos permitirá que tenhamos uma melhor visão do que estaria acontecendo. Com relação à agricultura, o gráfico abaixo (Fig. 1) representa aproximadamente a visão de Ricardo.


No eixo dos x representamos a utilização dos fatores mão-de-obra (L) e capital (K) que seriam aplicados a uma quantidade fixa de terra. Para simplificar admitiremos que K e L são empregados em proporções fixas, isto é, se aumentar- mos (ou diminuirmos) a utilização de L, deveremos aumentar (ou diminuir) a utilização de K na mesma proporção. No eixo dos y medimos a produção da terra aos diferentes níveis de utilização de mão-deobra e capital. Como podemos observar, â medida que aumentamos a utilização de L e K, a produção aumenta, mas a taxas decrescentes.

Assim, se estivéssemos utilizando n unidades de L e K, a produção seria q. Se aumentássemos a quantidade de L e K para n + 1, a produção se elevaria para q + ∆ q. Já se estivéssemos utilizando t unidades de L e K, a produção seria Q, sendo que se elevássemos a utilização de L e K para t + 1, a produção aumentaria em ∆Q para Q + ∆ Q. Por rendimento marginal decrescente entende-se que os acréscimos ∆ â produção, devido à adição de mais uma unidade dos outros fatores de produção, são cada vez menores.

Em relação ao nosso gráfico, ∆ Q < ∆ q. A implicação gráfica é que a curva de produção teria tendência a se tornar horizontal à medida que aumentam L e K. Se isto ocorrer, a produção deverá atingir um limite superior à medida que L e K aumentam. No nosso gráfico esse limite seria V, que seria atingido quando s unidades de L (e K) estivessem sendo utilizadas. A partir daí qualquer aumento no uso de L (e K) não aumentaria a produção, o que implica dizer que o produto marginal a partir daí seria zero.

Se houvesse desenvolvimento tecnológico na agricultura, com uma mesma quantidade dos outros recursos, a produção seria maior. Em, relação ao nosso gráfico corresponderia a um deslocamento da curva de produção para cima (Fig. 2).

Observemos que com n unidades de L(e K) antes de ocorrer o desenvolvimento tecnológico, a produção seria só de q unidades. Após a introdução de alguma inovação, as mesmas n unidades de L (e K) produziriam q + ∆ q.

Na visão de Ricardo tal desenvolvimento, se ocorresse na agricultura, seria sempre muito pequeno para ter grande efeito no aumento da produção. Isto quer dizer que o que ocorreria na agricultura com o aumento populacional e a escassez da terra seria um aumento na produção agrícola (com um maior emprego de L e K sobre uma quantidade fixa de terra), tendendo a um limite, como no primeiro gráfico examinado (Fig. 1). Para o setor manufatureiro, a situação se aproximaria daquela representada na Fig. 2. O crescimento populacional forçaria um aumento na produção através de uma maior utilização de mão-deobra na esfera produtiva. Mas, nem por isso haveria a tendência de a produção atingir um limite superior, visto que o desenvolvimento tecnológico poderia estar sempre deslocando esse limite superior para cima. 

Como mencionamos, embora tal fenômeno pudesse ocorrer na indústria, a economia como um todo se comportaria como a agricultura, visto que o desenvolvimento tecnológico no setor manufatureiro não seria bastante grande e nem este setor suficientemente importante para compensar os rendimentos decrescentes que fatalmente ocorreriam na agricultura com o aumento populacional. 

 

A economia em seu conjunto estaria, portanto, sujeita aos rendimentos marginais decrescentes à medida que a população aumentasse.

Para notarmos a importância deste princípio dos rendimentos decrescentes para o desenvolvimento econômico ainda estão faltando alguns elementos. O primeiro destes diz respeito à maneira como cresceria a população no esquema ricardiano. Ricardo, â semelhança dos economistas de sua época, acreditava existir uma estreita vinculação entre variações na renda e o crescimento demográfico. Basicamente o que dizia era o seguinte: o


crescimento populacional é determinado pela diferença entre o nível de subsistência (W ) e o nível salarial (W). Se o nível salarial que vigorar na economia for superior ao nível de subsistência, isto é, se W >W , haverá uma tendência para a população crescer.

Inversamente, se W for  inferior a W , a população decresceria e permaneceria constante, caso os salários fossem iguais ao mínimo necessário a sobrevivência.

O fator mais importante na determinação do nível salarial seriam as condições de mercado para mão-de-obra, isto é, o nível da demanda em comparação com o da oferta. A demanda, por sua vez, seria uma função crescente da acumulação de capital. Havendo acumulação de capital haveria um aumento na demanda para mão-de-obra, o que forçaria um aumento nos salários acima do nível de subsistência. Isto, por sua vez, de acordo com o

que foi exposto, provocaria um aumento populacional. Inversamente, se ocorresse uma queda na acumulação de capital, haveria uma redução na demanda de mão-de-obra, o que acarretaria uma redução no nível salarial, e, conseqüentemente, no crescimento populacional.

Vemos, pois, que o fator determinante do crescimento populacional seria a acumulação de capital. Esta se processaria na medida em que a taxa de retorno (lucro) fosse adequadas a economia estivesse produzindo um excedente econômico. Caso essas duas condições fossem satisfeitas, haveria acumulação de capital e, portanto, um aumento na demanda para mão-de-obra com um conseqüente aumento na sua oferta, isto é, na população. 

É conveniente observar que, segundo Ricardo, tal processo continuaria até o momento em que não mais fosse interessante investir, isto é, até o momento em que a taxa de retomo deixasse de ser adequada. Isto fatalmente ocorreria visto que no esquema ricardiano a acumulação de capital levaria inexoravelmente a uma queda na taxa de lucro.

Para verificarmos como tal ocorreria, seria interessante utilizarmos um esquema desenvolvido por J. Hicks12. Tal esquema se encontra reproduzido a seguir (Fig. 3).

No eixo dos x medimos a quantidade de terra empregada na economia. No eixo dos y medimos a produção agrícola por unidade de terra. Para simplificar, admitamos que a agricultura só produzisse um determinado tipo de produto – trigo. Admitamos também que os dois únicos insumos utilizados para a produção deste produto fosse o próprio trigo na forma de semente e mão-de-obra (paga em espécie).

Esperaríamos que a quantidade de trigo a utilizar para produzir uma mesma quantidade Q do produto (trigo) aumentasse à medida que a produtividade de terra caísse. Isto deveria ocorrer por dois motivos: primeiramente porque teríamos de utilizar uma maior quantidade de sementes, e, em segundo lugar, porque teríamos de utilizar uma maior quantidade de mão-de-obra, paga em espécie. 

A reta AB (Fig. 3) representaria tal situação. Quando temos uma população pequena, utilizamos as terras mais produtivas. No exemplo da Fig. 3 a quantidade de terra utilizada é OL. Para a primeira unidade de terra utilizada (O), o volume de inversão (em trigo) que teríamos de fazer para atingir o volume de produção OQ seria OS. A diferença entre a inversão e o produto final (OQ-OS) seria igual ao excedente gerado por essa unidade de terra. Notamos que à medida que aumentamos a utilização de terra, estas se vão tornando cada vez menos produtivas, o que implica que as inversões (em trigo) necessárias para atingirmos o mesmo volume de produção OQ (por unidade de terra) vão aumentando. Ao atingirmos a unidade L de terra, o volume de inversão já não mais seria OS, mas, sim, LN, e o excedente econômico, LQ’–LN, inferior a OQ-OS.

A inversão total na" agricultura seria correspondente à soma das inversões feitas em cada unidade de terra, o que equivaleria à área OSNL. Para tal inversão, a produção total seria OQQ'L e, portanto, o excedente total gerado pela agricultura,QSNQ'. 

O passo seguinte seria verificar como se processa a divisão desse excedente entre lucros e aluguel da terra (os salários já foram incluídos nas inversões). Para tal basta lembrar que a última unidade de terra utilizada (a marginal), qual seja L, não pagaria nenhum aluguel. Nestas circunstâncias, todo o excedente nesta gerado, (Q'N), lucro          Q'N

corresponderia ao lucro desta unidade. A taxa de lucro seria, pois,        =           inversão total         NL para essa unidade de terra. 

Numa economia competitiva haveria a tendência para a taxa de lucro ser igual em todas as atividades. Assim, esperaríamos que a taxa de lucro para as terras mais produtivas também fosse igual a Q'N/LN.

Podemos verificar que, nestas circunstâncias, o lucro de cada unidade de terra entre O e L seria dado pela diferença entre as retas AQ' e AB (Fig. 4). 


Podemos observar que para qualquer unidade de terra entre O e L, digamos T, a taxa de lucro seria ZR/TR que é igual a Q'N/NL' o que comprova que a diferença entre os pontos das linhas AQ' e AB deve nos dar os lucros correspondentes ! às diferentes unidades de terra utilizadas.

O volume total de lucros seria simplesmente igual à adição dos lucros de cada unidade de terra, o que nos daria a área SVQ'N. Retirando-se a parte correspondente aos lucros do excedente total, devemos ficar com o volume total dos aluguéis. Em termos de nosso gráfico isso deve ser igual à área QVQ'.

Agora, suponhamos que houvesse acumulação de capital e, com esta, um aumento na população. Isto forçaria um aumento na utilização de terra para alimentar esse maior número de bocas. A quantidade de terra utilizada poderia passar, digamos, de OL para OG (Fig. 5). Repetindo o mesmo argumento que desenvolvemos anteriormente, podemos verificar que nesta nova situação a taxa de lucro seria FH/HG, inferior à taxa de lucro anterior (Q'N/NL).

O volume total de lucros seria, agora, FHSJ, sendo o de aluguéis FJQ, e as inversões OGHS. O importante a observar é que a taxa de lucro teria caído com a acumulação de capital.

Só nos falta um elemento para podermos visualizar o funcionamento da economia como um todo. Tal elemento diz respeito à tendência decrescente a acumular, à medida que a taxa de retorno cair. Ricardo acreditava que quanto menor a taxa de retorno, menor a tendência a acumular.

De posse desses elementos, podemos esboçar o comportamento da economia como um todo. Partindo de uma situação onde compensa acumular, isto é, onde a taxa de retomo é superior à taxa de retorno mínima, haveria acumulação de capital com um conseqüente aumento na demanda para mão-de-obra. O aumento na demanda para mão-de-obra provocaria um aumento salarial que, por sua vez, a longo prazo, geraria um aumento populacional. Este último forçaria um aumento na utilização de terras, o que causaria dois efeitos: primeiramente um aumento na produção agrícola (a taxas decrescentes) e, em segundo lugar, uma queda na taxa de lucro.

Essa queda na taxa de lucro iria provocar uma diminuição nas inversões, porém enquanto não tivesse sido atingida a taxa de lucro mínima, estas inversões prosseguiriam, repetindo o ciclo anterior.

Este movimento contínuo só cessaria quando a taxa de lucro tivesse caído ao mínimo e não mais compensasse investir. Nesta situação cessariam as inversões e, portanto, os aumentos na demanda para mão-de-obra. Os salários neste ponto teriam a tendência a cair ao nível de subsistência - o que seria o suficiente para manter a população estacionária. Cessando a acumulação de capital e o aumento populacional, cessaria o crescimento nas produções agrícola e manufatureira e a economia entraria em estagnação.

Esta, em síntese, seria a visão de Ricardo acerca do comportamento a longo prazo da economia. Não pretendemos ter dado uma visão completa do esquema ricardiano, mas, simplesmente, os elementos mais importantes e mais diretamente ligados ao nosso tema.

O que nos interessa no esquema ricardiano é o elemento relacionado com a agricultura como fator limitativo do desenvolvimento. Para Ricardo a economia só chegaria a um estado estacionário impedindo, portanto, qualquer aumento na produção industrial (e agrícola) porque a agricultura estaria sujeita a rendimentos marginais decrescentes. E isto decorreria basicamente da ausência de desenvolvimento tecnológico no setor agrícola.

Certamente esta é uma argumentação de peso e que nos leva a questionar em termos apriorísticos acerca da possibilidade de um desenvolvimento (inclusive industrial) num país onde a agricultura esteja tecnologicamente estagnada. É bem verdade que mesmo com uma agricultura estagnada, o simples aumento populacional geraria um maior volume de excedente econômico (independente de como se processa a distribuição entre lucros e aluguéis) que poderia ser utilizado no desenvolvimento industrial. Na Fig. 5, o aumento do excedente seria de SQQ'N para SQFH quando o aumento populacional forçasse um aumento na utilização de terras de OL para OG. Mas, mesmo assim, a tendência seria para a economia (inclusive o setor manufatureiro) eventualmente entrar em estagnação. Em outras palavras, se no setor agrícola não houver um aumento na produtividade, de duas uma: ou o desenvolvimento industrial nem chegará a se processar, ou, se chegar, terá uma extensão bastante reduzida com uma tendência a estagnar mais cedo ou mais tarde.

Antes de abandonarmos o esquema ricardiano, vejamos o que aconteceria se houvesse um aumento na produtividade agrícola. Valendo-nos ainda do esquema de Hicks, podemos ver pela Fig. 6, a seguir, que primeiramente aumentaria o volume de excedente econômico e, em segundo lugar, a taxa lucro.

Em termos do gráfico, um aumento na produtividade da terra corresponderia a um deslocamento da reta AB para AB' e, como resultado desse deslocamento, podemos verificar imediatamente a veracidade das duas proposições feitas acima.



J. MELLOR - Um modelo ricardiano de dependência indústria/agricultura  John Menor, economista contemporâneo que tem dedicado grande parte de seus esforços à análise de problemas agrícolas, em sua obra The Economics  of Agricultural Development apresenta algumas idéias que teremos oportunidade de usar com certa freqüência no decorrer de nosso trabalho, razão pela qual vamos dedicar alguns parágrafos a uma síntese destas. Novamente, enfatizamos que não faremos aqui um resumo completo de sua obra, mas tão-somente aquelas idéias que mais diretamente nos interessam.

A agricultura segundo este autor teria um papel básico a desempenhar no processo de desenvolvimento econômico e, portanto, indiretamente, no cresci- mento dos outros setores, inclusive o manufatureiro, por uma série de razões. Primeiramente por ser o setor mais importante de uma economia subdesenvolvida. Nas palavras do autor: 

"A necessidade de alimentos e o baixo nível de produtividade agrícola têm como conseqüência a utilização da maior parte da força de trabalho dos países pobres no setor agrícola. Nas fases iniciais de desenvolvi- mento de 60% a 80% da população dedicam-se à agricultura, e 50%, ou mais, da renda nacional são geradas pelo setor agrícola". Op. cit., p. 4. 

Em segundo lugar, em decorrência direta disto, devido a sua própria importância relativa, este seria o setor sobre o qual recairia a maior parte do peso do desenvolvimento dos outros setores. 

Basicamente os outros setores poderiam desenvolver-se através de: 

a.  doações externas 

b.  investimentos diretos estrangeiros 

c.   poupança interna. 

O que geralmente se verifica para a grande maioria dos países, exceção feita somente àqueles de tamanho reduzido, tanto em extensão geográfica quanto em termos demográficos, é que as doações e as inversões estrangeiras, embora possam fazer alguma contribuição (especialmente no desenvolvimento dos setores mais modernos), geralmente é mínima. É sobretudo na poupança, interna que repousam quase todas as possibilidades de um desenvolvimento contínuo. 

Ora, se a agricultura nas fases iniciais é o setor que utiliza a maior parte dos recursos de um país e, ao mesmo tempo, o que faz a maior contribuição à sua renda nacional, seria de se esperar que, de alguma forma ou de outra, os recursos para o desenvolvimento dos outros setores devessem originar-se no setor agrícola. 

A contribuição que a agricultura poderia fazer para o desenvolvimento dos outros setores poderia ser da seguinte natureza:  a. transferência de recursos produtivos 

b.  criação de mercado 

c.   mudança nos termos de intercâmbio 

d.  geração de divisas externas 

e.   produção de matérias-primas e de alimentos. 

Com relação à transferência de recursos produtivos há dois tipos a considerar: capital e mão-de-obra. Consideremos primeiramente o capital. A agricultura, sendo o setor básico de um país subdesenvolvido, seria a única capaz de gerar um excedente que poderia ser utilizado no desenvolvimento dos outros setores. Esse excedente poderia ser transferido diretamente da agricultura para os outros setores através de inversões feitas pelos recipientes desse excedente nesses outros setores,  ou indiretamente através de sua captação pela tributação e posterior inversão nos outros setores. 

Com relação à tributação há um caso clássico na literatura do desenvolvimento de um país que financiou grande parte de sua industrialização com recursos provenientes de um imposto territorial. É o caso do Japão depois da restauração Meiji (1868). Em fins do século passado os impostos sobre a agricultura contribuíram com cerca de 50% a 80% da receita do governo japonês. No mesmo período, de 1/3 a metade das inversões industriais estavam sendo realizadas pelo governo. Não é preciso enfatizar que esta forma de transferência de recursos exige um sistema administrativo bastante sofisticado a ponto de manter um cadastro imobiliário bem complexo. Essa geralmente não é a situação da grande maioria dos países subdesenvolvidos, onde cadastros imobiliários, mesmo para os grandes centros urbanos, são inexistentes. Para esses países possuidores de uma máquina administrativa por demais simples, a tributação do setor agrícola só é viável através de impostos de exportação. É assim que países como a Birmânia, Uganda, Ghana (e mesmo o Brasil) têm tradicionalmente obtido recursos da agricultura, os quais têm sido utilizados para financiar seus gastos administrativos e um programa de diversificação econômica15.

Quanto às inversões diretas da agricultura em outros setores há algumas indicações de que isto possa ter ocorrido em uns poucos países.

Com relação à transferência de mão-de-obra da agricultura para outros setores, desde o artigo de Lewis[4] que se transformou num clássico, surgiu uma vasta literatura sobre o assunto. Teremos, mais adiante, oportunidade de examinar as idéias centrais de Lewis, bem como as objeções básicas que lhe podem ser feitas. Por ora, contentar-nos-emos com a menção da possibilidade da transferência desse recurso da agricultura para a indústria, deixando para mais tarde os detalhes de tal processo.

Está claro que a transferência de capital e mão-de-obra não deve ser interpretada exclusivamente em termos absolutos, mas também em termos relativos. Para demonstrar o que temos em mente, consideremos o seguinte exemplo. Admitamos que um determinado país estivesse passando por um período de crescimento, inclusive populacional, e que em decorrência de tal crescimento se fizesse necessário uma expansão da produção agrícola. Esta só se daria através de uma maior utilização de mão-de-obra e capital no setor agrícola. Parece-nos claro que, mesmo nesta situação, a agricultura ainda poderia contribuir para o desenvolvimento dos outros setores se para o aumento de sua produção minimizasse a utilização desses dois recursos. Em outras palavras, estamos admitindo uma economia em desenvolvimento, capaz de gerar um excedente econômico, especialmente no setor agrícola. Para que a economia continue a se desenvolver teremos de utilizar parte desse excedente no desenvolvimento do próprio setor agrícola. O que importa é que, na medida do possível, este setor minimize sua utilização de recursos produtivos, permitindo uma maior utilização relativa destes em outros setores.

Ambos os casos, isto é, de transferência absoluta e de transferência relativa, só podem ocorrer na medida em que haja um aumento na produtividade do setor agrícola. Com relação a este ponto, Mellor é taxativo, ecoando Ricardo quando afirma que nessas circunstâncias (de crescimento populacional sem desenvolvimento tecnológico) 

"... os níveis de renda na agricultura estão fadados a diminuir à medida que o tamanho absoluto da força de trabalho agrícola continua a aumentar". Op. cit., p. 28. 

Neste ponto, poder-se-ia objetar no sentido de que, para haver um aumento na produtividade do setor agrícola, seria necessário um maior volume de inversões e que, desta forma, o setor agrícola em vez de contribuir com capitais para o desenvolvimento do setor industrial poderia competir com este para a utilização desse recurso escasso.

Mellor acredita que tal objeção só seria parcialmente válida visto que o tipo de capitalização que se processa na agricultura, pelo menos em suas fases iniciais, seria diferente da capitalização na indústria. Como teremos oportunidade de ver mais adiante, para que a acumulação se processe na agricultura, numa primeira etapa só seria necessário mão-de-obra. Nestas circunstâncias uma competição, caso houvesse, com a indústria, não seria em termos de máquinas e outros bens de capital, mas sim em termos de mão-de-obra. Convém observar que em condições de abundância de mão-de-obra (o caso de muitos países em vias de desenvolvimento), nem mesmo esse tipo de competição haveria.

Feita esta ressalva, conquanto que a produtividade esteja aumentando na agricultura, é possível esta ajudar no desenvolvimento da indústria pela transferência relativa de recursos produtivos.

Mellor não é o primeiro nem, certamente, será o último a apontar a estreiteza do mercado para produtos industrializados como um dos maiores empecilhos à industrialização. Neste sentido o desenvolvimento do setor agrícola poderia contribuir grandemente para o desenvolvimento do setor industrial se conseguir trans- formar-se num amplo mercado para manufaturas. 

Novamente, poder-se-ia argumentar que poderia surgir um conflito neste papel da agricultura como criadora de um mercado, por um lado, e como geradora de capitais para o setor industrial, por outro, isto é, como consumidora por um lado e poupadora por outro. Menor é otimista com relação a isto, chegando a afirmar que: 

"... um conflito pode não aparecer necessariamente com relação ao duplo papel que a agricultura pode desempenhar: como geradora de capital e criadora de um mercado... Nas etapas iniciais do desenvolvimento, a política econômica mais que provavelmente visará gerar capital. Problemas decorrentes da falta de demanda surgem, em geral, de distorções a curto prazo produzidas por uma rápida expansão industrial. Estas podem ser corrigidas com relativa facilidade num curto espaço de tempo. Só num estágio posterior, depois que uma infra-estrutura industrial básica já tiver sido construída, podendo, então, ocorrer uma rápida expansão das indústrias de bens de consumo, é que problemas relacionados com a demanda podem assumir uma certa relevância". Op. cit., p. 99. 

O terceiro tipo de contribuição que a agricultura poderia fornecer ao desenvolvimento industrial seria através da mudança nos termos de troca entre manufaturas e produtos agrícolas, pela queda nos preços relativos destes últimos em comparação com os primeiros. Tal fenômeno atuaria no sentido de transferir renda para o setor não agrícola visto que, além de reduzir o preço das matérias-primas de origem agrícola, agiria no sentido de abaixar o custo de vida, no setor urbano o que, em conseqüência, permitiria que o nível salarial e os demais custos da empresa permanecessem baixos, encontrando sua contrapartida num aumento no nível dos lucros. 

Mas, para que essa transferência de renda se materialize num maior desenvolvimento industrial, é necessário que uma série de condições seja satisfeita: 

a.       que haja um aumento na oferta de produtos primários mais rápido que o aumento em sua demanda e/ou 

b.       que haja proteção alfandegária para produtos manufaturados

c.       que os salários não subam por quaisquer outros motivos 

d.       que os lucros sejam reinvestidos no setor industrial. 

Com relação à primeira condição, o autor acredita existir forças poderosas pressionando a demanda para cima (aumento populacional, urbanização etc.), mas que a oferta tende a crescer lentamente: 

"Assim, nas fases iniciais do desenvolvimento, provavelmente, o melhor que se pode fazer é aumentar a oferta de produtos agrícolas à mesma taxa que a demanda, evitando dessa forma, pelo menos, um aumento relativo nos preços dos produtos agrícolas". 

Uma maneira mais fácil de se atingir o mesmo objetivo seria através de tarifas alfandegárias ou controle de importações - mecanismos pelos quais os preços das manufaturas poderiam ser elevados com relação ao preço dos produtos primários18.

A contribuição da agricultura poderia vir através da geração de divisas externas para a importação de equipamento industrial. Como afirma o autor:

"Uma alta percentagem do capital necessário às primeiras fases do crescimento econômico é usada em investimentos em infra-estrutura, e esta pode ser produzida especialmente com recursos locais. Cedo, entretanto, formas de capital que são mais eficientemente produzidas pela importação tornam-se recursos-chave do crescimento econômico. Neste ponto, a escassez relativa de divisas externas torna-se críticas no processo de crescimento". Op. cit., p. 102. 

O setor primário, nesse contexto, auxiliaria o desenvolvimento industrial ou pelo aumento nas exportações e/ou pela redução nas importações. As contribuições através de um aumento nas exportações são por demais conhecidas e evidentes para que nos delonguemos sobre o assunto. Já o papel desempenhado pela redução nas importações que o desenvolvimento agrícola permitiria não parece ter recebido suficiente atenção. Com relação a este aspecto é bom lembrarmos que vários países subdesenvolvidos importam grande parte de seus alimentos básicos. A Bolívia, por exemplo, recebe 3/4 de sua receita cambial da exportação de estanho; em contrapartida gasta 1/4 dela na importação de alimentos19.

Veremos, oportunamente, que os aspectos relacionados com o comércio externo são de suma importância na explicação do desenvolvimento de países como o Brasil. Por ora, citaremos algumas das vantagens de uma agricultura voltada para o mercado externo. Primeiramente permite um ritmo de modernização mais intenso ao País. Em segundo lugar, para certos países com uma estrutura administrativa pouco desenvolvida, a tributação do comércio externo é a única maneira de o governo levantar os recursos necessários para financiar suas atividades, inclusive a promoção o setor secundário20.

Finalmente, para que o setor industrial se desenvolva, só poderá fazê-lo na medida em que a agricultura puder fornecer matérias-primas e alimentos para este setor. Geralmente a industrialização se processa em centros urbanos. O desenvolvimento de centros urbanos só é possível na medida em que a agricultura estiver produzindo um excedente capaz de alimentar essa população urbana. São poucos os países que à semelhança de Hong-Kong.

                                                     

 No Brasil, no século passado, era comum a importação de banha, peixe salgado e, inclusive, manteiga da Europa. 

 Temos ciência de que para um país ter sua agricultura voltada para o exterior isto pode apresentar uma série de desvantagens, tais como: a deterioração nos termos de intercâmbio (argumento Prebisch), a extrema especialização, a instabilidade de preços e portanto das receitas externas etc. Mas gostaríamos, neste ponto, de enfatizar os aspectos positivos de uma agricultura de exportação. 

podem obter seus recursos alimentares do exterior pela exportação de manufaturas. Isto só seria viável para países: 

a.       pequenos e/ou 

b.       com um setor manufatureiro bem desenvolvido, contando, ainda, com um sistema de transporte eficiente, capaz de transportar grandes volumes de produtos agrícolas do exterior a baixo custo. 

A grande maioria dos países subdesenvolvidos não satisfaz essas condições e somente casos excepcionais como Hong-Kong é que podem alimentar grandes massas urbanas através da importação de produtos alimentícios. A maior parte dos países subdesenvolvidos tem de se valer de sua agricultura para se suprir de produtos primários.

Afora apresentar um esquema de funções que a agricultura poderia preencher no processo de industrialização, algo que nos será muito útil no transcorrer de nosso trabalho e que tentamos sintetizar nos parágrafos acima, Menor apresenta um "modelo" de desenvolvimento agrícola. Talvez "modelo" não fosse o termo mais apropriado às idéias que o autor alinha. Mas, de qualquer forma, o que faz após concluir que a "modernização" agrícola seria imprescindível para o desenvolvimento global de uma economia (inclusive o industrial), visto este ser o setor que pode ser desenvolvido com recursos de, relativamente, baixo custo de oportunidade, é montar um esquema de modernização agrícola. Segundo o autor a agricultura passaria por três fases distintas em seu processo de modernização.

A primeira fase corresponderia à da agricultura tradicional, de tecnologia estagnada. Nesta, com a produtividade constante, um aumento na produção só poderia se dar se houvesse um aumento proporcional em todos os fatores de produção. Se nesse tipo de agricultura houvesse, portanto, uma transferência de capital para outros setores, a produção agrícola provavelmente cairia.

A segunda fase seria a de uma agricultura tecnologicamente dinâmica mas empregadora de tecnologia trabalho-intensiva. Esta seria a fase na qual: 

a.       a agricultura ainda seria o setor mais importante da economia 

b.       a demanda para produtos agrícolas estaria crescendo rapidamente pelo efeito demográfico e efeito renda 

c.       o capital para a indústria seria escasso 

d.       pressões demo gráficas não permitiriam aumentar a extensão média das fazendas 

e.       o uso de equipamento poupador de mão-de-obra se restringiria ao mínimo devido ao seu alto custo relativo. 

Como se processaria o aumento na produtividade nessa segunda fase, se a utilização do capital, na visão do autor, se restringisse a um mínimo? Alega Mellor que isto seria possível através de um "fluxo de inovações" tal como ocorreu na Inglaterra no século XVIII ou no Japão no século XIX. Basicamente: melhores métodos de cultivo, novas variedades de plantas, irrigação, drenagem etc.

A terceira fase seria a de uma agricultura dinâmica, caracterizada por uma tecnologia capital-intensiva. Normalmente esta fase ocorreria só depois que o país tivesse se desenvolvido substancialmente e tivesse, portanto, capital em abundância. Exemplo típico seria o Japão moderno que teria ingressado nessa fase recentemente. 

Mellor concorda que muitos países não seguiram a seqüência por ele esboçada. Menciona o caso dos EUA, onde a fase II não era viável no século passado devido ao desconhecimento de técnicas mais produtivas na presença de relativa escassez de mão-deobra. Nestas circunstâncias, os EUA passaram diretamente da fase I para a fase III.

Embora possamos encontrar exemplos semelhantes aos EUA, isto é, de países que fugiram à regra, acredita o. autor que a agricultura nos países em desenvolvimento, em geral, deveria seguir a seqüência acima descrita. 

O importante a observar no esquema de Menor é a fase II. Nesta, a produtividade aumentaria basicamente através de uma melhor utilização da mão-de-obra - um fator relativamente abundante. Este aumento na produtividade permitiria a transferência de toda espécie de recursos desde os próprios produtos agrícolas à mão-de-obra, sem esquecer o capital, do setor agrícola para o setor não agrícola. Nesta fase é que seriam lançadas as bases para uma maior diversificação econômica do País, o que abrangeria a emergência de um setor industrial.


W. A. LEWIS - Uma tentativa de fuga à camisa-de-força ricardiana

Como vimos ao analisarmos os modelos de Ricardo e de Mellor, ambos fazem questão de enfatizar que o desenvolvimento econômico não se pode dar a não ser que haja um certo desenvolvimento agrícola. No esquema ricardiano, como o desenvolvimento tecnológico era praticamente inexistente, havia um limite para o crescimento da economia. Já para Mellor, como seria de se esperar, tratando-se de um autor contemporâneo, existe a possibilidade de ocorrer um desenvolvimento tecnológico na agricultura, com um conseqüente aumento na produção e produtividade. Tal desenvolvimento poderia ser atingido quase que sem nenhuma utilização de capital (fase II do esquema do referido autor). O que nos interessa frisar aqui é que, para ambos os autores, parece inconcebível o desenvolvimento econômico, incluindo aí o industrial, sem que ocorra um desenvolvimento tecnológico no setor primário.

Gostaríamos de dedicar alguns parágrafos à exposição das idéias de Lewis que diferem bastante das expressas pelos autores anteriores. Será particularmente útil na elaboração teórica de um modelo explicativo do desenvolvimento industrial brasileiro em suas primeiras fases. W. A. Lewis, em seu artigo que se tornou clássico da Teoria do Desenvolvimento, constrói um modelo através do qual tenta mostrar como seria possível a um país iniciar sua industrialização sem alterar seu modo de produção agrícola.

Parte o autor da premissa que existe um excedente de mão-de-obra considerável em um grande número de países. Para estes, onde a população é relativamente elevada em comparação com os outros recursos, especialmente capital, a produtividade marginal da mão-de-obra se aproximaria do zero, podendo inclusive ser negativa. Onde existiria esse excedente populacional? A maior parte no desemprego disfarçado na agricultura e no setor de serviços.

Embora a produtividade marginal da mão-de-obra possa ser zero, os salários não seriam, como vaticina a teoria neoclássica, iguais a sua produtividade marginal. Seriam, isto sim, determinados pela produção média na agricultura ou, mesmo, por tradição. Mas, de qualquer forma, seriam baixos, próximos do nível de subsistência.

Acredita o autor que nestas circunstâncias essas economias disporiam de uma oferta ilimitada de mão-de-obra a salários de subsistência. De onde proviria essa oferta de mãode-obra? Segundo o autor, primeiramente dos setores onde existe desemprego disfarçado; em segundo lugar da maior utilização de mão-de-obra feminina e, finalmente, do próprio crescimento vegetativo da população. Grande parte dessa mão-de-obra poderia ser transferida para o setor secundário sem que houvesse uma redução na produção agrícola (e do setor de serviços).

A fim de visualizarmos a idéia de Lewis, voltemos a utilizar o esquema gráfico de que nos valemos na abordagem de Ricardo. Para simplificar tomemos somente o caso do setor agrícola, ignorando o setor terciário. Tal situação acha-se representada no gráfico a seguir (Fig. l).

A curva f poderia representar a produção agrícola que um país atingiria com diversos níveis de utilização de mão-de-obra. Como podemos notar, até o ponto onde são utilizadas L unidades de mão-de-obra, a produção agrícola tenderia a aumentar. A partir desse ponto adições desse fator não aumentariam o volume de produção. Neste sentido, se em nossa economia estivéssemos utilizando L' de mão-de-obra na agricultura, haveria um excedente de mão-de-obra igual a LL', que poderia ser retirado desse setor sem que houvesse uma queda na produção agrícola. Esse excedente de mão-de-obra poderia ser utilizado no desenvolvimento do setor secundário. Tal transferência teria um custo de oportunidade social igual a zero, e, neste caso, tudo o que conseguisse produzir no setor secundário seria um ganho para a economia.

Convém notarmos que a retirada do excedente de mão-de-obra da agricultura certamente aumentaria a produtividade desse fator no sentido de que um menor número de trabalhadores produziria o mesmo volume de produção que anteriormente e, portanto, a produção média por trabalhador deveria aumentar. Mas esse aumento na produtividade não se daria em função da introdução de inovações na agricultura (fenômeno básico para que ocorresse o desenvolvimento econômico nos esquemas de Mellor e de Ricardo) mas, sim, como resultado da retirada da mão-de-obra supérflua desse setor. Essa mão-de-obra supérflua constituiria, por assim dizer, uma poupança disfarçada existente na economia e que poderia ser utilizada no desenvolvimento do setor industrial.

No esquema de Lewis, além da agricultura (e talvez o setor de serviços), repositório da mão-de-obra excedente, haveria ainda um setor industrial, que seria o setor capitalista da economia, onde as decisões seriam tomadas por princípios "racionais" de maximização dos lucros. O volume de mão-de-obra empregado nesse setor seria determinado, nesse esquema, pela igualdade da produtividade marginal da mão-de-obra com o salário.

Se no setor industrial, a curva de produtividade marginal fosse a curva NR, apresentada no gráfico abaixo (Fig. 2), e o nível salarial fosse OW, o volume de mão-deobra empregado seria OM.

O volume total de salários pago seria OM x OW. Como o produto industrial total seria a área que fica compreendida entre a curva de produtividade marginal e os eixos até o ponto P, isto é, ONPM, o excedente que ficaria nas mãos dos industriais seria igual a WNP.

A economia de Lewis, portanto, seria uma economia dualista. Por um lado teríamos um setor de subsistência caracterizado pela presença de um excedente de mão-de-obra, onde o salário giraria em torno do nível de subsistência, e, por outro lado, teríamos um setor capitalista, moderno, correspondente ao setor industrial, onde as decisões seriam tomadas em função do princípio de maximização dos lucros. Esses dois setores não estariam isolados mas, sim, interligados, interagindo entre si. O setor de subsistência forneceria toda a mão-de-obra que o setor secundário necessitaria. O nível salarial que as empresas industriais precisariam oferecer para obter sua força de trabalho seria igual ao nível médio de renda do setor de subsistência, acrescido de aproximadamente 30%, isto é, seria igual ao salário de subsistência com um ligeiro acréscimo para atrair a mão-de-obra do campo para a cidade bem como para compensar pelo custo de vida, geralmente, mais elevado nos centros urbanos que no campo. Mas, a esse salário, os empresários industriais poderiam obter toda mão-de-obra necessária, enquanto existir um excedente desta no setor primário e de serviços.

A chave do desenvolvimento da economia estaria no uso que seria feito do excedente econômico gerado no setor capitalista (WNP na Fig. 2). Se a maior parte desse excedente for utilizada para reinversão no setor capitalista, este se expandiria, aumentando sua absorção do excedente de mão-de-obra até o desapareci- mento completo deste. No gráfico abaixo (Fig. 3) ilustramos tal situação.

Na fase 1, o excedente gerado e recebido pelos capitalistas seria igual à área A, hachurada. Na medida em que este é utilizado para a expansão do setor industrial, a produtividade da mão-de-obra aumentaria numa segunda fase, passando de N1 L1 para N2 L2, e o volume de mão-de-obra empregada de OL’1 para OL’2.

Novamente, na medida em que o novo excedente N2WL2 for reinvestido, a produtividade de mão-de-obra aumentaria e o emprego a acompanharia para OL3. Assim, uma vez iniciado o processo, este teria a tendência a adquirir momentum e continuaria ad ínfínítum, isto é, até as condições de excesso de mão-de-obra cessarem.

Lewis em seu modelo minimiza a transferência de outros tipos de recursos, como por exemplo capital, que poderia ocorrer da agricultura para o setor secundário. Segundo este autor, o próprio excedente gerado no setor capitalista seria o suficiente para desenvolvê-lo. Não somente afirma isto;. como vai além, tentando apresentar urna solução para o que chama de "o problema central de qualquer teoria do desenvolvimento", qual seja: explicar como uma sociedade que poupava de 4% a 5% de seu PIB - taxas que caracterizam uma sociedade tradicional, em estagnação - passa a poupar de 12% a 15%.

Acredita o autor que isto não se deve a uma mudança nos hábitos de poupança por parte dos membros da sociedade tradicional, mas, sim, ao aparecimento de um novo fenômeno - o setor capitalista (identificado com o setor industrial e alguns segmentos mais desenvolvidos dos setores primário e terciário). Nesse setor, o excedente que fica nas mãos dos empresários, isto é, os lucros, com o passar do tempo, vai aumentando. Partindo-se do pressuposto que o setor agrícola mantenha sua produção constante no transcurso do processo, isso necessariamente implicaria que, à medida que o setor capitalista se desenvolvesse, a proporção Lucros/Renda Nacional vai aumentando.

É neste fenômeno que encontraríamos, segundo Lewis, a explicação para o aumento no nível de poupança da economia. A distribuição da renda seria alterada a favor daqueles que poupam - razão pela qual se pouparia mais.

Em suma: uma vez iniciado o processo, este tenderia a se perpetuar. Mas como se daria? Duas condições seriam necessárias: a) o aparecimento de empresários capitalistas e b) a colocação de recursos monetários nas mãos destes para que possam atrair a mão-deobra excedente do setor de subsistência para o setor capitalista.

Com relação â primeira condição, o autor tem pouco a dizer. Já com relação â segunda, ecoando Schumpeter afirma que a criação de crédito pelos bancos seria o suficiente para realizar a mudança. Ao oferecerem crédito aos empresários, os bancos lhes estariam dando os meios para obter sua mão-de-obra. Esta colocação de maior volume de moeda em circulação causaria, a princípio, uma inflação, visto que a produção de bens primários permaneceria constante; mas, acredita o autor que, com o tempo, com o aumento na produção de produtos industriais, a inflação tenderia a ceder.

O aspecto da inflação embora não adequadamente abordado por Lewis não nos preocupa tanto quanto alguns outros problemas que seu modelo apresenta. São estes que gostaríamos de, agora, abordar.

Voltemos às idéias de Mellor com relação às funções que a agricultura poderia desempenhar no desenvolvimento. Simplificando um pouco a argumentação, e restringindo a função da agricultura a somente uma, qual seja o fornecimento de recursos à indústria, a pergunta que surge é se o modelo de Lewis satisfaz adequadamente este requisito (função).  Analisemos o problema com maior cuidado. Os recursos que a agricultura poderia fornecer ao setor secundário seriam de três tipos: a) recursos humanos; b) capital; e c) matérias-primas e alimentos.

Com relação aos recursos humanos, o modelo de Lewis certamente nos fornece uma resposta adequada visto que a agricultura em seu esquema cumpre essa função através da transferência de seu excedente de mão-de-obra para o setor secundário.

Quanto ao capital, a resposta que Lewis nos dá é que o próprio setor secundário, uma vez iniciado o processo, geraria seus próprios fundos para reinversão. Se por capital entendermos mais estritamente instalações e equipamentos, o que Lewis afirma é que a maior parte (mais de 60%) das inversões no setor secundário aparece na forma de obras de engenharia civil para as quais a mão-de-obra com quase nenhum capital, nessa segunda acepção da palavra, seria suficiente para realizá-las. E, esse tipo de capitalização no setor secundário só com mão-de-obra, sem o auxilio de equipamento, seria tanto mais verdadeiro quanto mais incipiente o próprio setor secundário, visto que, nessas circunstâncias, as inversões básicas, sem as quais este não se desenvolve, seriam infra-estruturais.

E em relação a equipamentos para as fábricas? Ficamos com essa pergunta em suspenso, porque o autor não nos dá uma resposta clara. Presumivelmente viriam do exterior, numa primeira fase, o que implicaria a existência de um setor exportador. Como nossa economia é basicamente uma economia primária, só poderia ser um setor exportador de produtos primários. Isto, por sua vez, implicaria a existência de um setor da mineração ou da agricultura voltado para a exportação. Em outras palavras, isto pressupõe a existência de um setor primário capaz de gerar um excedente exportável. Portanto, para que o modelo de Lewis funcione, não somente precisamos - como ele afirma - de um excedente de mãode-obra como também de um setor primário, gerador de um excedente exportável.

Com relação às matérias-primas e aos alimentos para o setor secundário, o autor resolve o problema parcialmente. Já vimos que a alimentação não se constituiria num problema, visto que a agricultura na visão de Lewis estaria resolvendo esta questão, quer parte da população (o excedente) permaneça no setor primário, quer se transfira para o setor secundário.

Já o problema das matérias-primas não fica totalmente resolvido dentro deste esquema. Se o setor secundário começa a se desenvolver sem que haja um desenvolvimento correspondente do setor agrícola, eventualmente haveria escassez de matérias-primas, o que elevaria os custos das mesmas, reduzindo com toda a probabilidade os lucros, levando, eventualmente, como no esquema ricardiano, à estagnação. Lewis parece concordar com

este tipo de argumentação e parece conceder que a partir de um determinado momento, para que o desenvolvimento industrial prossiga, é essencial que haja um desenvolvimento tecnológico na agricultura.

Voltamos, pois, quase â estaca inicial. Sem desenvolvimento tecnológico na agricultura, à semelhança de Ricardo, a indústria pode se desenvolver mas, eventualmente, deverá parar.


RANIS & FEl - O modelo de Lewis elaborado 

Este aspecto do desenvolvimento agrícola dentro de um esquema de oferta , ilimitada de mão-de-obra como elemento de suporte do desenvolvimento industrial foi estudado em maior detalhe por Ranis & Fei numa série de artigos que culmina- ram na publicação de um livro Development of the Labor Surplus Economy: Theory and Policy onde essas idéias são melhor trabalhadas. Não pretendemos aqui reproduzir a argumentação desses autores em detalhe visto que pouco adicionaria às conclusões a que chegamos. Mas, uma ou duas palavras não estariam fora de ordem.

O que interessa a Ranis & Fei é formalizar o esquema de Lewis e resolver dois problemas que este último não resolve adequadamente em seu modelo original. O primeiro destes já apontamos, qual seja até que ponto seria essencial um desenvolvimento agrícola para que ocorresse um desenvolvimento industrial. O segundo problema seria um que ainda não foi abordado - o do mercado para os produtos industriais. Vejamos primeiramente o problema do mercado. Seguindo a argumentação de Lewis, os autores apontam para o fato de que enquanto existir um excedente de mão-de-obra, os salários teriam a tendência a permanecer constantes. Isto criaria um problema de mercado para os produtos industriais. Expliquemos com maior cuidado o que os autores entendem por isso. Partindo do pressuposto que a mão-de-obra que estaria saindo da agricultura e indo para a indústria receberia aproximadamente o mesmo salário que na agricultura (ignorando o acréscimo de 30% de Lewis, para simplificar a argumentação), chegamos forçosamente à conclusão de que seu padrão de consumo permaneceria mais ou menos constante. Com os salários que receberiam no setor urbano consumiriam aqueles produtos que estavam habituados a consumir quando trabalhavam no campo30. Ora, a única coisa que ocorreria seria que os produtos agrícolas que esses indivíduos antes consumiam no campo seriam por eles adquiridos na cidade com o seu salário. Este dinheiro pago para a aquisição de produtos agrícolas iria, eventualmente, parar nas mãos daqueles que tinham permanecido no campo.

Aqui faz-se necessário estabelecer uma distinção entre a visão de Lewis e a de Ranis & Fei. Enquanto Lewis tem em mente uma agricultura nas mãos de pequenos lavradores, isto é, um setor agrícola nas mãos de camponeses proprietários que utilizam sua mão-deobra e a de sua família para trabalhar a terra, Ranis & Fei têm em mente uma estrutura agrícola diferente: de proprietários que se utilizam de assalariados para trabalhar a terra. Portanto, no esquema por eles desenvolvido, esse dinheiro iria parar nas mãos de proprietários agrícolas que teriam uma alta propensão marginal a poupar.

Se esta for a situação, uma pergunta que vem à mente é a seguinte: dado que os trabalhadores agrícolas e industriais consomem basicamente produtos agrícolas e dado que os que poderiam consumir produtos industriais poupam em vez de consumir, de onde viria o mercado para os produtos industriais que a economia passaria a produzir?31 

Ranis & Fei acreditam que esse problema de mercado seria, facilmente resolvível por uma realocação de recursos e produtos no setor industrial. Em vez de se produzir bens de consumo, produzir-se-iam bens de capital. O desenvolvimento em condições de "austeridade natural" (termo dos autores) implicaria, portanto, a existência de empresários agrícolas e industriais. desejosos de investir em i projetos de longa gestação. Acreditam que em circunstâncias normais seria difícil encontrar empresários com tal disposição, daí verem a participação do Estado como essencial para resolver esse problema de falta de mercado. 

Em suas palavras: 

"Em síntese, poderíamos dizer que, na economia subdesenvolvida com excedente de mão-de-obra, as poupanças potenciais (ocultas) do setor rural... devem ser ativadas como um fundo de salários para permitir que a industrialização prossiga. Além do mais, como decorrência das condições de austeridade natural, produto da mesma situação de oferta ilimitada de mãode-obra, grande parte da produção industrial deve ser de bens de produção devido ã ausência de um mercado doméstico para bens de consumo final. Isto equivale ã necessidade de se fazer investimentos com um longo período de gestação, uma atividade na qual, direta ou indiretamente, o governo, provavelmente, desempenhará um papel importante ." Ranis & Fei, op. cit., p. 118. 

Com relação ao primeiro problema, Ranis & Fei pretendem mostrar que para acelerar a transição de uma economia tradicional para uma economia capitalista, transição esta cujo ponto final ocorre quando a mão-de-obra se torna uma mercadoria escassa, o desenvolvimento agrícola é básico. Sem o desenvolvimento da agricultura as condições de excesso de mão-de-obra, segundo os referidos autores, teriam uma duração bem mais longa. O que propõem é que parte dos lucros gerados no setor industrial e parte do próprio excedente agrícola sejam utilizados no desenvolvimento do setor primário. Isto na linguagem que se tornou corrente entre os economistas do desenvolvimento equivaleria a adotar uma estratégia de desenvolvimento equilibrado. Tal estratégia seria possível através da ação do governo ou, ainda, através do mecanismo do mercado.

Temos poucas dúvidas acerca da possibilidade do governo, através do planejamento, guiar a economia pela trilha do desenvolvimento equilibrado. Mas a afirmação dos autores de que o mecanismo do mercado seria capaz de levar a tal objetivo parece-nos surpreendente. 

Para que o mecanismo do mercado funcionasse como prevêem, o momento que surgisse um gargalo no setor secundário por falta de matérias-primas e/ou alimentos, e os custos industriais começassem a aumentar em decorrência de tal. fato, seria necessário que os empresários industriais e/ou agrícolas tivessem percepção suficiente para investir uma maior proporção de seus lucros no desenvolvi- mento do setor agrícola.

Quanto aos empresários agrícolas, com os preços crescentes para produtos agrícolas que tal situação implicaria, vemos poucos incentivos para assim proceder. Quanto aos empresários industriais, a possibilidade de transferir parte de seus recursos do setor industrial para o desenvolvimento do setor agrícola parece-nos também fora de cogitação. Tal transferência teria como objetivo investir num setor que lhes é estranho, o que por sua vez implicaria uma percepção muito aguçada por parte destes da possibilidade de auferir lucros adequados com tais inversões. Temos nossas dúvidas com relação a essa percepção por parte do empresariado industrial, visto que acreditamos, como Hirschman, na "miopia" do empresariado dos países subdesenvolvidos. Seria necessário que as possibilidades de auferir lucros num setor que lhes é desconhecido fossem gritantemente óbvias antes que decidissem empregar parte de seus recursos no desenvolvimento desse setor.

Isto implicaria que os preços das matérias-primas e/ou alimentos devessem ter atingido níveis elevadíssimos antes que os industriais decidissem fazer algo, o que por sua vez seria o reflexo de sério estrangulamento no setor secundário, isto é, estaríamos em presença de um desenvolvimento desequilibrado e, não, equilibrado, como pretendem os autores.

Embora não acreditemos nessa percepção do empresariado industrial quanto à necessidade do desenvolvimento do setor agrícola, também não acreditamos como Lewis e Furtado no interesse do empresariado industrial em manter o setor primário subdesenvolvido a fim de pressionar os salários industriais para baixo. Primeiramente porque como acabamos de demonstrar talvez não seja a política mais conveniente a longo prazo. E, em segundo lugar, por não acreditarmos que os empresários sejam capazes de pensar acerca de efeitos que provavelmente só ocorreriam depois de transcorridas algumas décadas. Como bem frisam Ranis & Fei até ser alcançado o fim da fase de excesso de mãode-obra, embora a produtividade no setor agrícola possa estar aumentando, os salários com toda certeza permaneceriam estacionários.

Seria interessante completarmos nossa analise das abordagens de Ranis & Fei e de Lewis com algumas críticas de caráter mais geral que lhes foram feitas. Decidimos apresentar as críticas aos dois modelos em conjunto porque na realidade, como vimos, o de Ranis & Fei não é senão uma extensão do de Lewis. As duas críticas que nos interessam mais intimamente são as do italiano Arrighi do qual falaremos agora e de Myint.

Basicamente este autor teria três críticas a fazer a Lewis e, indiretamente, a Ranis & Fei. Primeiramente aponta para o fato de que estes autores em suas analises partem do pressuposto que o capital gerado no setor secundário seria investido no próprio setor secundário, aumentando assim as oportunidades de emprego nesse setor, o que muito acertadamente lembra Arrighi pode não ocorrer.

A segunda crítica se prenderia a uma certa fé que Arrighi parece ter descoberto em Lewis com relação ao setor moderno, capitalista, como promotor do desenvolvimento econômico. 

 

Como diz Arrighi, no modelo de Lewis "o desenvolvimento do capitalismo... emerge como uma influência benéfica e racionalizante em última análise" que acabaria com o subdesenvolvimento, e de forma espontânea, no sentido de que seria induzido exclusivamente pelos mecanismos do mercado39. O que Arrighi mostra com relação à Rodésia é que o desenvolvimento do setor dito "capitalista" não somente levou a um atraso cada vez mais acentuado da grande massa dos africanos, como também o processo pouco dependeu dos chamados mecanismos de mercado, sendo, muito mais, o produto de ingerências políticas na esfera econômica.

Finalmente, Arrighi critica Lewis por sua ahistoricidade, e nessa crítica incluiria quase toda economia moderna. Em suas palavras: 

"... na Teoria Econômica, as suposições não precisam ser historicamente relevantes. Na realidade, freqüentemente estas são falsas, sendo admitidas como tal. Os processos históricos ficam relegados a um segundo plano sendo sintetizados por séries estatísticas de dados ex-post, os ‘fatos estilizados’, como são freqüentemente chamados, os quais sozinhos nada revelam acerca da seqüência causal... As relações causais... não são o produto de uma análise histórica, mas são impostas de fora, isto é, através de uma análise apriorística, e um grupo de suposições geradoras dos 'fatos estilizados' é admitido como tendo valor explicativo independentemente de sua relevância histórica. Mas, visto que normalmente existirão vários destes grupos, tal metodologia deixa ampla margem para escolhas arbitrárias e, portanto, para mistificações de todas as espécies. Assim sendo, os baixos níveis científicos, atingidos pela moderna teoria do ‘desenvolvimento econômico’ e, mesmo, pela teoria econômica em geral, não devem surpreender a ninguém." Arrighi, op. cit., p. 227. 

Embora concordando em grande parte com o teor geral da crítica de Arrighi quanto ao nível de irrelevância que atingiu a teoria econômica moderna em seu quase total descomprometimento com a realidade, não devemos perder de vista que História Econômica como qualquer atividade "científica" não se faz sem uma base teórica apriorística, ou pelo menos sem aquilo ao qual Schumpeter chamou de visão do mudo40. Portanto, se Arrighi pretende com isso afirmar que na Economia não há lugar para modelos teóricos acreditamos que ele próprio se encontre um pouco deslocado da realidade.

Myint ataca Lewis e seus seguidores de um outro ângulo. Parafraseando Lewis, o que este afirma, como já Vimos, é que em certos países a) existe uma espécie de poupança disfarçada na agricultura correspondente a mão-de-obra supérflua e que b) esta poupança poderia ser transferida ao setor industrial a um custo social igual a zero.

Myint parece não concordar com nenhuma dessas duas proposições. Para entendermos sua posição faz-se necessário que especifiquemos o que este autor entende por excedente de mão-de-obra. Para Myint esse excedente só pode tomar uma forma, qual seja: o das pessoas empregadas na agricultura trabalharem somente parte do tempo que poderiam estar trabalhando. Suponhamos que tivéssemos seis pessoas trabalhando num minifúndio e que elas tivessem de trabalhar 30 horas por dia. Se dividissem o trabalho igualmente, cada uma trabalharia cinco horas. Se admitirmos que a jornada normal de trabalho é de dez horas diárias, essas pessoas que só estariam trabalhando 30 horas poderiam estar trabalhando 60 horas, o que equivale a dizer que existiria um subemprego de mão-de-obra equivalente a 30 horas, ou seja, a três homens/dia. Ora, é certo que poderíamos retirar três trabalhadores da agricultura e transferi-los para o setor industrial, mas os que permaneceriam na terra teriam de trabalhar mais para manter a produção constante. Em vez de cinco horas diárias, teriam de trabalhar dez. E isto, acredita Myint, não poderia ser conseguido sem alguma forma de incentivo. Não basta prometer aos que ficaram na terra que dali a alguns anos estariam desfrutando de um nível de vida mais elevado devido ao aumento na produção industrial. O incentivo precisaria ser imediato. E este tipo de incentivo o setor industrial emergente não seria capaz de fornecer visto que a mão-de-obra que estaria sendo desviada da agricultura para este setor estaria realizando investimentos infra-estruturais que se caracterizam por seu longo período de gestação. 

Nessas circunstâncias, tal transferência, provavelmente, implicaria algum custo social. Myint não deixa muito claro que forma tomaria esse custo social. Mas além de a sociedade ter de encontrar alguma forma de incentivar os que permaneceram na terra a trabalhar mais, a própria transferência de mão-de-obra do setor primário para o setor secundário implicaria certos gastos que o modelo de Lewis parece não levar em consideração. Myint cita o exemplo das habitações que teriam de ser construídas no setor urbano para abrigar esse influxo de mão-de-obra Como sendo típico.

Novamente, embora até certo ponto a argumentação de Myint de que a tese de Lewis apresenta uma falha séria no tocante à sua idéia central de se poder obter "algo de nada" ser válida, visto que a transferência da mão-de-obra "supérflua" implicaria algum custo social, não sabemos até que ponto Myint não estaria sendo injusto para com Lewis e seus seguidores. A crítica de Myint seria válida para a mão-de-obra subempregada, mas o que dizer dos que não trabalham ou ainda não ingressaram na força de trabalho? Tal seria o caso, como menciona Lewis, da mão-de-obra feminina, em alguns países. O que dizer também do crescimento vegetativo da população? Admitamos, por exemplo, um sistema de exploração agrícola como o imaginado por Ranis & Fei onde a terra estaria nas mãos de grandes proprietários que empregariam assalariados para trabalhá-la. Suponhamos que por tradição a jornada de trabalho fosse de dez horas diárias e que houvesse grande relutância por parte dos proprietários em alterá-la. Ora, em tal sistema o crescimento populacional poderia ser totalmente desviado para o setor industrial visto que, atingida a produção "ótima" numa propriedade agrícola, não haveria incentivo algum para se empregar mais mão-de-obra, como também não haveria o problema de se redistribuir o trabalho entre os que ficassem na terra, simplesmente porque o problema, nem surgiria. Quase que automaticamente, à medida que os jovens fossem ingressando na força de trabalho seriam compelidos a encontrar trabalho no setor urbano-industrial. Em outras palavras, a crítica de Myint seria válida para os subempregados mas certamente não em todas as circunstâncias para os desempregados e para aqueles que ainda não ingressaram na força de trabalho. Isto, entretanto, não significa que não haja um custo social associado com a transferência dessa mão-de-obra de um setor para outro, como acertadamente aponta Myint.

Sintetizando o que foi visto até agora, poderíamos dizer que, em geral, os autores abordados concordariam que só poderia haver um desenvolvimento industrial prolongado conquanto houvesse um aumento na produtividade da agricultura através do desenvolvimento tecnológico desse setor. A única discordância que surge seria quanto às fases iniciais da industrialização. Há os que com Lewis acreditam que em certas condições favoráveis, especialmente de abundância de mão-de-obra, seria possível dar os primeiros passos rumo à industrialização sem necessariamente ter uma agricultura em desenvolvimento. Mas, como vimos, tal posição não estaria totalmente isenta de críticas.


HYMER & RESNICK - Uma outra tentativa de fuga à camisa-de-força ricardiana

Os modelos apresentados até agora, embora tratem de aspectos de suma importância para o tema "desenvolvimento agrícola-desenvolvimento industrial", deixam de lado um aspecto que a nosso ver é básico - o de um maior detalhamento das atividades ditas "agrícolas" e suas implicações. Como apontam Hymer & Resnick:

"Os modelos teóricos de países subdesenvolvidos freqüentemente postulam a existência de um setor agrário que aloca a sua força de trabalho entre duas atividades principais: a agricultura e o lazer. A evidência empírica coletada por antropólogos, historiadores econômicos e agrônomos sugere, entretanto, que o tempo alocado à produção agrícola e ao lazer freqüentemente representa senão uma pequena parcela do tempo disponível. O restante é gasto numa variedade de atividades de processamento, manufatura, construção, transporte e serviços, para satisfazer às necessidades de alimentação, vestuário, abrigo, diversões e cerimônias." Op. cit., p. 493. 

Com base nessas observações, os autores constroem um modelo teórico onde as referidas atividades, às quais chamam de Z, são incluídas explicitamente. Na visão desses autores o setor agrícola poderia, então, produzir dois tipos de produtos: produtos agrícolas (F) e produtos tipo Z. Acreditam que quanto à produção estes dois tipos de produtos seriam, até certo ponto, substitutos, rejeitando, portanto, a idéia contrária.

"Argumenta-se, algumas vezes, que Z e F não são substitutos visto que a produção de bens do tipo Z é usada para preencher o vácuo existente na entressafra, quando o custo de oportunidade da mão-de-obra é zero ou muito baixo. Sugerimos que esta visão é uma simplificação grosseira e que, ao longo do tempo, existe a possibilidade de escolha quanto aos métodos de cultivo utilizados e, portanto, quanto ao caráter sazonal das necessidades de mão-de-obra. Sugerimos que mesmo a economia mais primitiva dispõe de uma variedade de culturas e de técnicas agrícolas entre as quais pode fazer uma escolha e que pela variação da composição da produção e pela escolha de técnica, o fazendeiro tem uma flexibilidade apreciável para variar a quantidade de mão-de-obra que usa durante o ano... Sugerimos que o uso de processos produtivos altamente sazonais freqüentemente representa a escolha feita por uma sociedade onde a renda é baixa e onde se dá um grande valor às atividades Z. Como corolário, esperaríamos encontrar uma mudança para atividades trabalho-intensivas onde a renda é alta e as atividades Z devem ser sacrificadas para que se possa pagar pelo uso da terra." Op. cit., pp. 494-495. 

Implícita na argumentação dos autores está a idéia de que a produção de “Z é trabalho-intensiva, usando pouca ou nenhuma terra, enquanto a produção de F tende a ser terra-intensiva".

"~ maneira semelhante, culturas diferentes têm necessidades diferentes quanto ã terra, ao trabalho e ao capital. Uma mudança na composição da produção, portanto, afetará a escassez dos fatores e a intensidade de sua utilização. Por exemplo, um movimento no sentido de aumentar a produção de alimentos e diminuir a produção de bens do tipo Z terá um 

, efeito poupador de mão-de-obra; enquanto uma mudança da produção, terra..intensiva, de gado para a produção, trabalho-intensiva, de vegetais terá como efeito uma maior utilização de mão-de-obra." Op. cit., p.500. 

Em outras palavras, a hipótese que os autores lançam seria uma alternativa à visão de Lewis. Nas palavras deles: 

"No nosso entender, uma importante substituição que ocorre no processo de desenvolvimento não é a substituição do lazer ou ócio pelo trabalho mas, sim, uma mudança de métodos inferiores de produção doméstica para métodos superiores de produção, baseados na especialização e na troca... Levantamos a hipótese de que numa economia agrária, isolada do comércio, a produção de alimentos é inibida por uma falta de mercado, e dedica-se muito esforço à produção de outros bens necessários à vida. Nas sociedades feudais, uma parcela significativa de bens do tipo Z toma a forma de empregados, soldados, burocratas, arte- sãos que atendem às necessidades da aristocracia. Na ausência dos senhores feudais, a produção de bens do tipo Z ocorrerá, em sua maior parte, na esfera doméstica. Quando uma economia autárquica agrária é aberta ao comércio, com um setor manufatureiro doméstico ou estrangeiro, esta tem pela frente um novo grupo de possibilidade de transformação. Pode, agora, se especializar na produção de certos itens de alimentação para atender a procura dos centros urbanos ou do mercado externo, podendo importar os produtos manufaturados [de que necessita]. A economia pode entrar num processo de 'substituição de bens domésticos', o oposto de substituição de importações, à medida que o consumo de bens do tipo Z dá lugar ao consumo de bens manufaturados obtidos em troca dos produtos agrícolas vendidos." Op. cit., pp.503,504. 

Esse processo de especialização - cujos efeitos principais seriam dois: aumentar o nível de renda e liberar mão-de-obra - poderia, por exemplo, ser iniciado por uma elevação (por qualquer motivo) dos preços dos produtos agrícolas. 

M. H. WATKINS - A visão histórica na "abordagem do produto principal". 

Ao analisar o processo do desenvolvimento econômico, amiúde nos sentimos tentados a recorrer às teorias ortodoxas do crescimento e relegar a notas de rodapé as circunstâncias particulares que condicionam o sistema econômico de um país. Emprestando grande importância ao processo de acumulação de capital, a teoria econômica ortodoxa está simplesmente observando, a posteriori, de que modo as economias de sucesso foram capazes de criar um processo auto-sustentado de acumulação e crescimento. Com efeito, é possível observar o modo pelo qual o crescimento é gerado, comparando fatos empíricos com os modelos teóricos que neles se originaram; este método, no entanto, implica um raciocínio circular. Conquanto as teorias ortodoxas do crescimento possam ser muito úteis na formulação de política - no sentido de que apresentam um alvo a ser atingido - pouco ajudam no estabelecimento de relacionamentos causais e na explicação de tendências históricas.

De acordo com Caio Prado Júnior: 

"O simples fato da inversão, como pretende a teoria ortodoxa, ou mesmo o fato mais geral e amplo da origem e formação do capital e de sua acumulação, pouco ou nada explica acerca dos fatos originários que impulsionam o crescimento. O que deve ser considerado e que dá conta desse crescimento é o que está por trás e na base das inversões."  Ainda de acordo com o mesmo autor: 

“O não-historicismo e a subestimação da especificidade histórica dos países subdesenvolvidos tomam a teoria ortodoxa incapaz de avaliar as circunstâncias peculiares que, em cada lugar ou categoria sócio-econônica, condicionam as inversões e dão a medida de sua fecundidade e capacidade de determinar um processo auto-estimulante de crescimento que é o que se procura realizar.”

Mais apropriada para o entendimento de processos de longo prazo, como o desenvolvimento econômico, é uma abordagem que vincule a História Econômica à Teoria Econômica e que, portanto, possa vincular generalizações sobre o comportamento econômico derivado da Teoria Econômica a processos específicos que, em decorrência de seu posicionamento no espaço e no tempo, possam ser mais bem entendidos através de uma perspectiva histórica.

A chamada teoria do crescimento pelo produto principal é uma tentativa interessante nesse sentido. Popularizada pelo historiador econômico canadense Harold Innis,47 através de sua aplicação ao Canadá, a teoria do produto principal também tem sido usada para explicar o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos.


A interpretação do desenvolvimento econômico via produto principal não deve realmente ser considerada como "teoria", mas sim como "abordagem" ao desenvolvimento econômico. No artigo mencionado, Watkins referiu-se ao caso "não como uma teoria geral de crescimento econômico e nem mesmo como teoria geral sobre o crescimento das economias orientadas para exportação, mas sim como aplicável ao caso atípico de um 'novo país' ".49 Mas esta abordagem pode ser extremamente útil, no sentido de que traz à luz uma série de facetas importantes no processo de desenvolvimento de "novos países", as quais freqüentemente são omitidas por outras interpretações de crescimento.

Na mais simples das descrições da "teoria" do crescimento por meio do produto principal, esta consiste no estudo do crescimento gerado pela produção e exportação de uma mercadoria principal. Como setor-líder da economia, ela estabelecerá o ritmo para as mudanças econômicas, políticas e sociais no sistema, com origem em um processo de diversificação e difusão ao redor da base de exportação. "Portanto, conceito central da teoria do produto principal está no efeito- difusão do setor de exportação, isto é, no impacto da atividade exportadora sobre a economia e a sociedade internas."

Tipicamente, esta abordagem produz os melhores resultados nas economias caracterizadas pela existência de "terras vazias", relativa abundância de terra no que tange à mão-de-obra e capital, e ausência de tradições inibidoras do crescimento. Tal economia poderia especializar-se em um produto principal no qual tenha vantagem (comparativa ou absoluta) em relação a outros produtores. Com a maior das probabilidades, o produto principal seria relativamente intensivo de recursos naturais, em virtude da dotação relativamente maior do país quanto a este fator. A mercadoria principal seria produzida e exportada enquanto o custo das fontes alternativas de suprimentos for maior do que o custo do produto que vem da "nova" região; em outras palavras, o custo do bem importado de regiões alternativas tem de ser maior do que o custo de produção na nova região, pelo menos no montante do custo adicional de transporte para importação (se houver), mais os custos de migração de capital e mão-de-obra, e o "salário" adicional necessário para cobrir o custo de transporte das importações de bens de consumo para a nova região, que eleva o custo de vida para os migrantes. Se essas condições forem satisfeitas, o país se especializa na exportação deste produto principal e crescerá, ou não, dependendo do vigor e das características dos efeitos-difusão do produto. Na realidade, o ponto focal da abordagem do produto principal consiste em analisar a natureza e os determinantes destes efeitos-difusão, levando em consideração não apenas as características internas do país, mas também o ambiente internacional em que opera. Este último ponto se toma extremamente importante em tecnologia e técnicas de transporte e comunicações afetarão a intensidade e, possivelmente, a existência das vantagens na produção de uma mercadoria de exportação; as mudanças na estrutura de poder internacional e nos relacionamentos políticos entre as nações poderiam causar deslocamentos dos centros decisórios, com amplas repercussões na estrutura interna dos exportadores.

Estas mudanças no ambiente internacional podem conduzir a mudanças na produção da mercadoria básica e afetar seus efeitos-difusão. Isto explica, por exemplo, a ascensão e declínio de diferentes produtos de exportação, bem como os deslocamentos geográficos dos pólos de crescimento econômico que podemos verificar na história dos países produtores de mercadorias para o mercado externo.

No segundo caso, forças externas podem afetar a formação estrutural do sistema. Já que as "terras vazias" tiveram um status colonial durante parte de seu registro histórico, foram influenciadas pelo tipo de estruturas econômicas, sociais e políticas transplantadas dos poderes coloniais. Neste caso, é importante analisar sob que condições as novas terras foram formadas e colonizadas, para que se possa entender até que ponto estas estruturas transplantadas foram internalizadas e transformadas em características estruturais destes novos países. 

Fazendo a suposição de um ambiente internacional, cuja importância acabamos de salientar, e de uma "nova terra" com determinada base produtiva, podemos analisar seu processo de crescimento levando em conta o caráter da mercadoria principal que produz e sua influência quanto aos efeitos-difusão.

Todo processo de produção, caracterizado por uma dada tecnologia ou função de produção, dará origem a efeitos importantes nas estruturas social, econômica e política do país, as quais, por seu turno, afetarão o vigor dos efeitos- difusão. A função de produção da mercadoria principal determinará a procura de fatores, de bens intermediários, e afetará o nível e a repartição de renda. Dependendo do produto principal que está sendo produzido, sua industrialização poderia ou não ser feita internamente, levando, assim, a uma difusão mais acentuada de crescimento. Por isso, é importante que se inicie a análise, tendo como base não somente a existência de um setor-líder de exportação, como também o entendi- mento das implicações específicas que cada função de produção da mercadoria principal poderia ter sobre as estruturas social, política e econômica do país.

Gera-se o processo de crescimento induzido pela produção de um bem principal através da reprodução e multiplicação dos efeitos-difusão, habitualmente chamados encadeamentos. Poderiam ser definidos como estímulos para o investi- mento interno induzidos pela produção de um bem principal exportável. O encadeamento para trás, ou efeito para trás (backward linkage), define induzimentos para investir na produção interna de insumos para o setor do produto principal; os encadeamentos para frente, ou efeitos para frente (forward linkage), se relacionam aos estímulos para investir nas indústrias que utilizam o produto principal como insumos; finalmente, o que se poderia chamar de encadeamento, ou efeito renda- consumo, relaciona-se aos estímulos para investir na produção de bens de consumo, a fim de satisfazer a procura potencial criada por aumento de renda no setor de exportação.

Os determinantes da existência e do vigor de tais encadeamentos ou efeitos, conforme foi mencionado, podem ser externos (o ambiente internacional) e internos (no sentido da função de produção do produto-base). O sistema, influenciado pelos dois tipos de determinantes, origina uma seqüência contínua de auto-alimentação, que transforma o modelo do produto principal em abordagem algo complexa. Por exemplo, a estrutura social e econômica transplantada poderia encontrar condições favoráveis para perpetuar-se na nova terra. É este o caso da agricultura de grandes plantações que propende a perpetuar os modelos importados da organização social e econômica aristocrática. Neste caso, os encadeamentos não se geram internamente. A repartição desigual de renda produzirá efeitos de encadeamento no exterior, através da importação de artigos de luxo pelos proprietários das plantações; igualmente, em decorrência da grande escala das operações, capital estrangeiro pode ter sido importado, levando a grandes remessas de lucro para o exterior e pequena e concentrada geração de renda interna. Tais fatores levam ao que foi chamado "mentalidade do açúcar": "os lucros especulativos mais elevados das indústrias açucareiras para exportação originaram indisposição para investir em produção interna".

Esta "mentalidade de rentier" por parte da elite dos países ocasiona uma sociedade inigualitária onde os grupos dominantes procuram manter o status quo. Nestas condições, é improvável que surjam certos elementos importantes no crescimento como inovações tecnológicas e mentalidade empresarial, o que, então, reforça, a longo prazo, a característica de estagnação do sistema.

Finalmente, deve ser mencionado o fato de que a abordagem do produto principal lança luzes sobre um elemento importante no processo de crescimento. Trata-se de que para conseguir crescimento e desenvolvimento auto-sustentados, a economia deve ser capaz de transferir recursos à medida que as mudanças dinâmicas nas condições internas e externas o exijam. Isto quer dizer não apenas a capacidade para transferir recursos para novos setores, mas também a capacidade de empregá-los em diferentes combinações, à medida que ocorrem mudanças nos preços relativos dos fatores ou o surgimento de nova tecnologia.


Neste caso, novamente, as condições externas e internas afetarão as possibilidades adaptativas de uma economia. Os mesmos de terminantes dos encadeamentos também afetarão o desempenho de longo prazo de uma economia, seja diretamente - como, por exemplo, atitudes e motivações para com a modernização - ou indiretamente, pela inexistência de fortes encadeamentos internos que são tão essenciais para o êxito de um processo de crescimento e diversificação.


A abordagem do produto principal, algumas vezes chamado crescimento impulsionado pela ,exportação, tem sido muito criticada como teoria de crescimento.

Já foi demonstrado que se a economia for superposta a um sistema caracterizado por alto cociente homem/terra e por atividades econômicas a nível de subsistência, provavelmente não surgirá um processo de desenvolvimento e crescimento autosustentados. Além disso, a concentração excessiva em um único produto exportável pode ocasionar o que J. Bhagwati chamou "crescimento empobrecedor", se as condições de comércio do país decaem persistentemente. H. Singer diz que "quando os ganhos de exportação são elevados, a economia é capaz de financiar o desenvolvimento econômico, mas tem falta de incentivo para fazê-lo; quando os ganhos são baixos, existem os incentivos, mas faltam os meios"

Têm sido apresentados muitos outros argumentos contra a teoria do cresci- mento via produto principal. Com efeito, seu sucesso depende de certas condições atípicas que habitualmente não são encontradas na maioria dos países subdesenvolvidos, especialmente nas economias de subsistência que se caracterizam por abundância de mão-de-obra. Por outro lado, para um pequeno subconjunto de países, a abordagem pode ser bastante útil. "Se forem evitados perigos imprevistos - se o produto principal gerar fortes efeitos-difusão que sejam adequadamente explorados, por fim a economia crescerá e se diversificará, até o ponto em que a designação de 'economia de produto principal já não mais se aplica."64 

O caso do Brasil é de particular interesse à luz da teoria do produto principal. O País satisfaz alguns requisitos para o sucesso na trilha do desenvolvimento originado, por exportações. Não obstante, isso ocorreu somente depois de considerável delonga e depois de algumas oportunidades não terem sido impedidas de terem sido adequadamente exploradas.

É interessante observar que, de um modo ou de outro, os estudiosos da história econômica brasileira sempre usaram abordagens muito parecidas com o método do produto principal.

Uma de suas características importantes é que ele leva a uma divisão cronológica da história, de acordo com a importância que os produtos primários têm na economia. Já que geograficamente a produção de mercadoria principal tende a concentrar-se em locais mais favoráveis (em temos de solo, clima e distância do mercado), a abordagem conduz a uma análise regional da economia; a análise enfoca a região que produz o produto primário principal. À medida que surgem novos produtos e os antigos perdem importância, a análise é levada a ser feita em termos de ciclos de tempo e concentrações regionais de atividades econômicas.

Na verdade, esta é a divisão mais típica encontrada nos estudos da história econômica brasileira, e é a que será seguida neste trabalho.65 Tem ela a vantagem de reunir numerosas considerações importantes que, separadamente, pouco mais podem fazer do que proporcionar uma visão muito parcial do processo de desenvolvimento econômico. Igualmente, realça o fato importante de que o desenvolvimento econômico não é simplesmente o resultado de política econômica e condições de mercado. O papel dos recursos naturais e sua localização desempenham parte predominante no processo. Todavia, não se deve supor que o modelo do produto principal é um rebento do determinismo geográfico. "O surgimento de sucessivas regiões produtoras de mercadorias primárias (também) depende do progresso tecnológico e de mudanças nas preferências dentro da economia maior da qual as regiões se tomam partes."66 Ademais, a abordagem proporciona ampla ,oportunidade para considerações "não-econômicas" que em muitos casos podem ser de grande importância nos processos de crescimento a longo prazo.

Como acontece com qualquer modelo, a teoria do crescimento via produto principal não deve ser forçada a ir longe demais. Se formarem encadeamentos e a economia começar a diversificar, a abordagem se tomará um instrumento inadequado de análise. A busca das conseqüências da exportação de produtos primários pode responder apenas por parte do


Acreditamos que a abordagem do produto principal pode contribuir muito para o entendimento do crescimento econômico nos primeiros estágios formativos do sistema econômico. Neste período, através dos movimentos de fatores e vínculos econômicos entre as "novas terras" e as potências colonizadoras, pode ser produzido um excedente econômico. O uso que dele se faz torna-se ponto crucial na geração de efeitos-difusão e no crescimento econômico de longo prazo. Como, onde e por quem o excedente é acumulado toma-se um dos pontos focais da abordagem do produto principal. É, portanto, a existência (ou inexistência) da acumulação primitiva de capital interno que condicionará o futuro das "novas terras" e é esta acumulação inicial que a abordagem pode ajudar a compreender melhor. 

 

CAPÍTULO 2: OS GRANDES CICLOS AGRÍCOLAS NA FORMAÇÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA

Introdução 

A finalidade deste capítulo é sugerir uma interpretação dos primeiros quatrocentos anos de história econômica brasileira, tomando a abordagem do produto principal como arcabouço organizacional básico.

O objetivo é entender a estrutura da economia brasileira e fazer o levanta- mento de seus fatores formativos. Não temos interesse em analisar políticas, mas sim em entender os elementos fundamentais que ocasionaram as que foram observadas. Procuraremos dar uma interpretação das características de longo prazo da economia e, por isso, o tom deste trabalho será uma tentativa para "justificar" o que aconteceu, de modo "positivo" ao invés de "normativo".

Nesse processo, surgirão perguntas, algumas das quais terão respostas experimentais. Uma das matérias mais importantes é a análise dos elementos "herdados" na formação da economia brasileira. Buscando fazê-la, fomos levados a enfatizar os fatores externos ou internacionais que condicionaram a evolução do sistema econômico brasileiro. Este realce dos fatores externos é uma característica da abordagem do produto principal que julgamos justificado levar ainda além do habitual.

A abordagem do produto principal envolve uma interpretação essencialmente histórica da economia. Assim, a história brasileira foi dividida em períodos que seguem a sucessão cronológica dos ciclos de produtos principais, desde o pau-brasil até o café. 

Esperamos, assim, fornecer uma base histórica que permita, até aonde a "abordagem do produto principal" possa nos levar, identificar os condicionamentos agrícolas básicos que permitiram o início do processo de industrialização no século XIX, e a compreender a evolução do setor agropecuário contemporâneo, tópicos que serão abordados nos capítulos seguintes.

 

As Primeiras Décadas: O Estabelecimento dos Fundamentos Econômicos

O período inicial da História do Brasil foi uma época de relativa negligência e experimentação por parte da coroa portuguesa. O descobrimento de um vasto país esparsamente habitado não atraiu a atenção dos portugueses que, então, se encontravam profundamente empenhados em suas aventuras marítimas na África e na Ásia.

Mas foi nesse período que o Brasil se incorporou na civilização européia através da expansão de grande alcance das conquistas portuguesas. Por isso, neste ponto, é importante atentar para a evolução da nação portuguesa e procurar um pouco de entendimento sobre a sociedade que foi o elemento mais importante na formação da nacionalidade brasileira.

Talvez mais do que qualquer outra região da Europa, a Península Ibérica teve um processo evolucionário bastante diferenciado do resto do continente. Este processo foi fortemente influenciado pela invasão muçulmana de 710, que iria durar até a última década do século XV, quando foi travada a batalha que derrotou definitivamente os invasores.

Imediatamente após a invasão sarracena no século VIII, formou-se um movimento de resistência nas Astúrias, localizando-se seu primeiro quartel-general na Gruta de Covadonga. Cerca de um quarto de século após a invasão muçulmana, já se havia formado um reino cristão na região norte da Península. Os territórios liberados eram continuamente expandidos e, ao final do século XI, um território na Galícia, que iria tornar-se Portugal, foi doado a um dos aliados na guerra contra os mouros - o conde borgonhês D. Henrique.

Seus descendentes empenharam-se em guerras violentas, tanto contra os mouros como contra a dependência, que continuava, dos reis espanhóis. Outros territórios foram conquistados aos mouros, como, por exemplo, Lisboa em 1147, com o auxilio dos cruzados em seu caminho para a Palestina. Na metade do século XIII o moderno Portugal já se encontrava geograficamente formado.

O período da dinastia borgonhesa foi caracterizado por guerras, conquistas e intensas comoções internas. Os nobres locais estavam em guerras contínuas entre si e contra o rei. Os campos eram constantemente devastados pelos exércitos em marcha que não poupavam quaisquer propriedades, rurais ou urbanas, pessoais ou comunais.

João D' Azevedo escreve que provavelmente a população local agora se encontrava em situação pior, quando, supostamente, estava sendo liberada dos mouros, do que quando invadida pelos bárbaros. Na época das invasões bárbaras a população local tinha permissão para ficar com um terço da terra para si; agora, toda a terra era confiscada em nome do rei, sendo mantida pela coroa ou doada a seus chefes guerreiros. Cristãos e muçulmanos eram escravizados em grande número e não era incomum vê-los lutando lado a lado contra os novos conquistadores cristãos.

Entretanto, a dinastia de Borgonha conseguiu muito cedo o que outras nações européias levaram séculos para fazer. “Em comparação às demais nações da Europa, Portugal demonstrou uma grande precocidade como nação organizada.” Quando a dinastia de Avis galgou o poder em 1385, Portugal já havia adquirido algumas características importantes, como sua atual composição geográfica, independência dos reis espanhóis e do Papado, nacionalização da Igreja e das ordens militares, grande fortalecimento do poder central, algum progresso na administração de justiça e educação, um corpo de funcionários civis e uma capital nacional em Lisboa.

A organização econômica do país, que nos primitivos períodos da reconquista tinha grandes semelhanças com as instituições feudais encontradas em outros países da Europa Ocidental, tinha evoluído para um sistema de livres camponeses que dependiam muito da produção agrícola.

As semelhanças com as instituições feudais, como a vinculação do homem à terra, a servidão, a obrigação de prestar serviços pessoais ao senhor local, o pagamento com trabalho e a existência de comunidades quase auto-suficientes, eram I coisas que em certa época existiram em Portugal, mas não por muito tempo. Em breve a sociedade portuguesa evoluiu para uma sociedade agrária de livres camponeses. A servidão, por exemplo, terminou totalmente durante o reinado de Alfonso III (1248-1279).

Diversos fatores poderiam responder, pelo menos parcialmente, pelo rápido I declínio do feudalismo em Portugal. Durante os primeiros cento e cinqüenta anos de sua existência, Portugal esteve em constante estado de guerra. Os camponeses estavam permanentemente incertos sobre que espécie de arcabouço institucional lhes seria imposto em resultado das guerras locais e, conseqüentemente, amiúde hesitavam dever fidelidade a seus senhores. Tal estado de coisas não conduz à existência de uma sociedade feudal, a qual pode caracterizarse por estabilidade e tradição.

Ademais, a população rural, em tal constante estado de beligerância e desorganização, amiúde buscava refúgio nos centros urbanos, tanto para escapar à guerra quanto à servidão. O resultado foi uma situação de prolongada escassez de mão-de-obra no país, agravada pela grande procura de soldados pelos exércitos.

Acresce a isso que a existência de excedentes de terra constituía forte incentivo para a mobilidade da força de trabalho. Os soldados penetravam as terras não cultivadas e nelas se estabeleciam, enquanto o senhor local de boa vontade lhes permitia isso, em troca de uma quantia predeterminada como pagamento anual em dinheiro. Os camponeses também deixavam suas terras em busca de senhorios mais benevolentes, com o decréscimo resultante do nível dos aluguéis da terra.

Tal situação, caracterizada por escassez de mão-de-obra e abundância,de terra, certamente é contrária à servidão humana. Em resultado, os senhores de terras, liderados pelo maior de todos - o rei - em breve emanciparam seus servos tributando-os em dinheiro.

Outros fatores também contribuíram para o rápido declínio do feudalismo em Portugal. Entre eles, altas taxas de inflação pela desvalorização freqüente da moeda, o que encorajou o surgimento de uma burguesia de mercadores.

A dinastia de Borgonha, que terminou em 1385, pode ser tida como a responsável pela unificação geográfica e política do país, bem como pelo rompimento dos vínculos com as relações econômicas feudais. À sua queda, ocupou o poder a dinastia de Avis; estava para ser iniciado um novo capítulo na História portuguesa. A dinastia anterior havia preparado o terreno para eventos que iriam causar enorme impacto na civilização humana.

A . dinastia de Avis era aliada da burguesia. Logo que seu primeiro rei, D. João I, subiu ao poder, foram feitas grandes mudanças nas instituições econômicas e sociais, em favor da emergente burguesia comerciante e contra a velha nobreza. Terras e títulos foram redistribuídos em favor de uma burguesia já interessada por explorações marítimas, a exemplo das cidades italianas. 

A ocasião era propícia para as inovações tecnológicas que iriam gerar o que Simon Kuznets chama nova "época. econômica". D. Henrique fundou a Escola de Sagres, onde marinheiros experientes e cientistas se juntaram na tentativa para lançar homens em navegação de alto-mar. A navegação astronômica e as inovações no uso e forma das velas foram pontos importantes no sucesso marítimo dos portugueses. A dinastia de Avis transformou a atmosfera intelectual em Lisboa. Diz Berlinck que a corte parecia uma academia. 

Foi neste ambiente que os portugueses conquistaram Ceuta em 1415 e de lá velejaram para todas as partes do mundo em busca de comércio. Em 1500 Cabral descobriu o Brasil.

Por essa época, Portugal tinha mudado muito; já não tinha o mesmo fundo agrário da dinastia borgonhesa. Era como se a busca de lucros em África e Ásia tivesse feito com que os portugueses voltassem a ser os terríveis guerreiros dos primeiros períodos da reconquista do país aos mouros.

Foram enviadas frotas armadas para conquistar e pilhar (e impiedosamente destruindo no processo) cada cidade ou estabelecimento em que os portugueses viam perspectivas de lucro. "Cabral, Vasco da Gama e Almeida (bem conhecidos por suas atrocidades contra as populações nativas) formariam um trio de 'gentlemen' à vista de Albuquerque, o 'terribil,. Suas mentes estavam irremediavelmente mergulhadas na “psicose” das ambições terrenas.

A população portuguesa tomou-se totalmente inadequada para atender às suas necessidades mais básicas, inclusive a produção agrícola. Os campos eram abandonados â medida que mais e mais pessoas se engajavam em aventuras marítimas.16 Portugal, agora com um grande influxo de riqueza, podia importar para atender a todas as suas necessidades, inclusive escravos ou "prisioneiros de guerra" que, na metade do século XVI, segundo se supunha, formavam 10% da população de Lisboa.

Esta era a atmosfera em Portugal quando o Brasil foi descoberto, a qual, direta ou indiretamente, foi transportada para este país, quando o comércio marítimo se tornou um completo desastre financeiro, na metade do século XVI, e Portugal passou â colonização como substituto para o comércio frustrado.

Na primeira metade desse século, Portugal já era um país que tinha deixado de evoluir, ou, para usar a expressão de Kindleberger, ressentia-se da falta da "capacidade para transformar". Não quer isto dizer que o país não havia passado por mudanças importantes desde sua formação, mas sim que não tinha evoluído em uma sociedade que pudesse satisfazer as exigências que lhe eram impostas pelo início do crescimento econômico moderno.

Já vimos como Portugal conseguiu unificação política e geográfica algo cedo e como evoluiu do primitivo feudalismo para uma sociedade agrária de livres camponeses. Todavia, estas realizações revelaram-se insuficientes. Na época dos grandes descobrimentos os campos ficaram despovoados e os centros urbanos tinham completa falta de manufaturas. Em resultado, Portugal importava de outras nações tudo o que necessitava e todos os excedentes econômicos que conseguiu em ultramar acumularam-se nas mãos de nações mais industriosas. Agravando mais esta situação, o país passou por um período de extravagante consumo conspícuo que, somado aos altos custos de administração, formou uma enorme dívida nacional e criou uma situação de profunda crise financeira.

Nessa época, o governo não seguia uma política protecionista, tão comum em outras nações durante o período mercantilista. Em outras nações européias era importante para o governo central apoiar seus aliados, a burguesia, pela concessão de privilégios, monopólios e políticas protecionistas. Em Portugal, porém, o poder central já possuía uma indisputada superioridade sobre qualquer outro segmento da sociedade. Talvez esse fato possa explicar o descaso do governo português em favorecer os interesses da burguesia que, na verdade, também estava mais interessada em comércio do que em manufaturas. Foram estabelecidos monopólios de comércio com a intenção de proteger os interesses da coroa que era, muito mais do que qualquer outro, o mercador mais importante do país.

A escravatura, como vimos, tornou-se instituição importante e não causa surpresa que tenha sido tão facilmente transplantada para o Brasil. Juntamente com os escravos seguiram os colonos portugueses, não para trabalhos triviais, mas para serem senhores de terra e de escravos. A escravatura e as aventuras ultramarinas, provavelmente mais do que quaisquer outros fatores, foram responsáveis pelo desenvolvimento da mentalidade parasítica tão comum entre os colonizadores portugueses.21 

Berlinck22 rastreia à História portuguesa dois fatores importantes que classificou de adversos na formação da nação brasileira. Primeiro, a importância preponderante assumida pela coroa portuguesa, que levou ao hipercrescimento do poder central e à ausência de outras classes no processo decisório. Este fenômeno decorria da liderança eficaz proporcionada pelos reis portugueses na época da reconquista e, mais tarde, da proteção e do incentivo governamentais dados pela coroa às explorações de ultramar. A coroa era a principal beneficiária,. mas o país inteiro se sentia como seu associado.

O segundo fator adverso foi o desenvolvimento de uma sociedade elitista que propendia a desprezar qualquer forma de trabalho físico, salvo, talvez, a guerra, e confiar exclusivamente na força de trabalho escravo. Não é de causar surpresa que o "colonialismo", em sua forma mais indesejável, tenha se desenvolvido com tanto vigor e precocidade na América portuguesa. 

Alegam alguns autores2 que a sociedade portuguesa do século XVI ou continuava ainda feudal, ou havia retrocedido para o feudalismo após a falha do período comercial. Talvez aí se trate de uma questão de definição do termo feudal, que amiúde tem sido usado sem muito rigor; mas parece que, na época, Portugal se achava bastante distanciado das características do feudalismo, tais como as que existiam dois ou três séculos antes.

Mas deve-se admitir que Portugal também se achava bastante distanciado das características que marcaram o período mercantilista e o início industrial dos países industrializados. 

Os campos permaneciam sem cultivo e os centros urbanos não viam a presença marcante de fabricantes ou de artesãos. Os jesuítas e outras ordens religiosas, com seus pontos de vista tradicionais quanto à sociedade e à religião, eram, depois do rei, o maior e mais poderoso grupo no país, controlando uma grande parte de seus recursos, e, também, no controle total da educação, da ciência e das artes. A escravidão, com a escassez de mãoe-obra, ficou mais forte e se tornou parte importante da força de trabalho nas atividades rurais. Indubitavelmente, o rei era o empresário mais poderoso da nação, tendo a burguesia e a nobreza como seus sócios minoritários, ou meramente como seus inspetores.

É irrelevante se esta sociedade é chamada feudal ou não. O ponto importante é que algo muito semelhante se desenvolveu no Brasil, e isso não foi conducente ao crescimento e desenvolvimento econômicos.

Nos primeiros trinta anos após o descobrimento, Portugal demonstrou muito pouco interesse pelo Brasil. Empenhado como estava no comércio de especiarias e artigos de luxo das Índias Orientais, nada via no Brasil que se comparasse a suas em- presas comerciais. O famoso Américo Vespuccio escreveu "pode-se dizer que não encontramos nada de proveito".


Havia, contudo, um produto que atraía algum interesse - o pau-brasil, usado na Europa para tingir tecidos. Esse comércio foi feito com o auxilio da população nativa, em troca de coisas simples que esta extravagantemente desejava, como tecidos simples, produtos de metal, algumas roupas e outros artigos de muito pouco valor. Os nativos juntavam as árvores nas praias e as transportavam para os navios ao longo da costa. Este comércio foi imediatamente decretado como monopólio real, sendo necessário que os que nele desejassem se empenhar obtivessem permissão da coroa. O monopólio foi concedido a Fernão de Noronha em troca da defesa da terra e 20% do valor da madeira. Posteriormente foram feitos novos contratos com outros grupos e, durante certo tempo, o comércio esteve aberto a todos em troca de percentagens sobre o valor comerciado.

Esta atividade era de natureza puramente extrativa e predatória; na ocasião, foram fundadas poucas povoações permanentes, exceto uns poucos fortes construídos para defesa contra os franceses, que faziam grande contrabando, e contra algumas tribos nativas. Em geral, estimava-se que os lucros do comércio eram bastante limitados e este, tanto na Europa como no Brasil, gerou muito pouca atividade econômica.

Em breve, porém, a política portuguesa para o Brasil se modificou drasticamente; a ênfase passou a ser em colonização, no que os portugueses tinham tido algum sucesso em suas ilhas atlânticas.

O sistema consistiu em dividir a faixa costeira em territórios denominados capitanias. Cada uma era doada em caráter perpétuo a homens capazes de organizar e financiar um esquema de colonização permanente em seus territórios. Em conseqüência do risco e alto custo de tais empreendimentos, o rei devia delegar grande parte de seus poderes aos capitães como incentivos, mantendo apenas seus direitos de suserania.

Os donatários tinham praticamente poderes absolutos em suas capitanias, inclusive para distribuírem terras como o desejassem, impor e arrecadar impostos, administrar justiça e transferir por direitos de hereditariedade seus próprios poderes. Além disso, tinham direito ao redízimo, isto é, 10% do dízimo - o único imposto arrecadado pelo rei como chefe da Ordem de Cristo.

A maioria dos capitães tinha de levantar fundos no exterior para financiar o empreendimento e diversos perderam tudo quanto possuíam: No todo, somente duas capitanias, a de Pernambuco e a de São Vicente, provaram ser empreendimentos de sucesso, pela produção de açúcar para o qual havia grande procura nos mercados europeus. Pernambuco, capitania doada a Duarte Coelho, iria tomar-se o maior produtor de açúcar do mundo durante o século seguinte e, em conseqüência, uma das regiões mais ricas na América. Outros donatários organizaram expedições em busca de ouro e fracassaram totalmente. Alguns vieram para o Brasil à frente de exércitos organizados; outros trouxeram para as novas terras uma pequena corte formada de cavalheiros; e outros, ainda, tentaram estabelecer colônias agrícolas. De modo geral, a concepção dos capitães de seu papel no Brasil variava desde guerreiros e conquistadores (alguns tinham estado na Índia, onde haviam acumulado grande riqueza nesse papel), passando uma vida principesca, até empresários com orientação para lucro em atividades de exportação.

O sistema de capitanias fracassou não somente por causa da escolha dos donatários quanto às suas atividades econômicas. As colônias portuguesas empenhavam-se em guerras ferozes com a população nativa. Ocasionalmente, colônias inteiras eram totalmente destruídas pelas tribos nativas.33 Habitualmente esses ataques eram seguidos por luta ainda mais acirrada contra os índios. Além disso, os portugueses eram constantemente atacados por piratas franceses, ingleses e holandeses. A partir da metade do século XVI, até meados do século seguinte, o Brasil foi invadido por estrangeiros que fundaram colônias fortificadas ao longo da costa. Os portugueses levaram mais de doze anos para derrotar os franceses que ocupavam o Rio, além de mais de quarenta anos de lutas contra eles no país todo. A ocupação holandesa chegou ao fim em 1654, depois de uma longa e violenta guerra que ocasionou a Portugal sérias perdas em vidas e receitas da produção de açúcar. Finalmente, as lutas internas especialmente no Sul, entre jesuítas e a população sobre questões da escravização do gentio, freqüentem ente têm sido mencionadas como fator adicional das dificuldades encontradas pelos primeiros colonos das terras brasileiras.35

Como se tudo isso não bastasse, os colonos portugueses viam-se a braços com severa escassez de mão-de-obra. A maioria vinha para o Brasil com a esperança de adquirir terras e empenhar-se na produção de açúcar de cana. Com efeito, grandes extensões de terra, chamadas sesmarias, lhes foram concedidas pelos donatários. A maioria das doações era feita desordenadamente36 e a grande extensão dos lotes individuais gerou forte procura de mão-de-obra, que só podia ser atendida pela escravização da população nativa.37 Mas a mão-de-obra indígena demonstrou ser completamente inadequada para o trabalho agrícola. Em resultado, já na metade do século XVI a presença, no Brasil, de escravos negros era uma ocorrência comum.38 A transição da escravidão indígena para a negra ocorreu suavemente, no sentido de que os portugueses já se encontravam familiarizados com a escravidão negra na Europa e também porque controlavam importantes fontes de suprimentos de escravos na África. O tráfico de escravos iria tomar-se uma das atividades mais importantes e lucrativas para os armadores portugueses. Em breve, todas as demais nações navegantes da Europa se juntaram aos portugueses peste lucrativo negócio.

No que tange à política comercial no Brasil, o comércio era relativamente livre de elementos monopolísticos encontrados no comércio português com as Índias e no início do comércio com o pau-brasil. As capitanias podiam comerciar livremente entre si, assim como com qualquer país da Europa.39 Este constituiu um dos raros exemplos na História Econômica do Brasil-colônia em que o comércio e a produção eram praticamente livres.

Tal liberdade estendia-se também à vida política. A administração local estava nas mãos dos "homens bons", de cujas fileiras eram excluídos os "trabalhadores assalariados, os artesãos, judeus e ex-sentenciados".40 Assim, a administração era composta basicamente de latifundiários e, portanto, representava seus próprios interesses. Elegiam dois juízes e três vereadores em cujas mãos estava a autoridade para decidir sobre todos os assuntos de interesse para a comunidade.

I Portugal, que não se encontrava em boa situação financeira durante a maior parte do século XVI, não podia dar-se ao luxo de impor sua autoridade aos colonos no Brasil. Na maioria das vezes, a metrópole simplesmente endossava a autoridade dos senhores de terras locais, aprovando suas decisões. “O governo (em Portugal) até mesmo defendia esta aristocracia nascente, aprovando as decisões ilegais das administrações locais contra as leis estabelecidas naquele país, destruindo qualquer outro poder que tentasse impor-se aos latifundiários coloniais; com esta finalidade, impedia que a burguesia comerciante tivesse cargos elegíveis nos conselhos, não permitindo a qualquer de seus membros a eleição como juízes ou vereadores; tornou ilegal a produção de aguardente de cana-de-açúcar a fim de eliminar a concorrência contra os engenhos dos senhores de terras; também decretou que os proprietários de engenhos não podiam ser levados aos tribunais por causa de dívidas não pagas.” Vemos que, embora houvesse uma boa dose de autonomia local, dificilmente se pode dizer que a estrutura de poder local representasse, ainda que levemente, ideais de igualdade.

A concentração do poder nas mãos de alguns grandes latifundiários era um reflexo da organização social e econômica. A vida local girava em tomo do latifundiário rico que tinha posses para construir um engenho de açúcar (chamavam-se senhores de engenho). Outros latifundiários menores, incapazes de possuírem seus próprios engenhos, levavam sua produção ao senhor de engenho e pagavam-lhe uma percentagem do açúcar produzido (de 30 a 50%).

Ao redor do senhor de engenho e de seus dependentes, os pequenos proprietários de terras, orbitava a classe dos homens livres, porém pobres, geralmente recém-chegados de Portugal. Em geral, aceitavam executar pequenos serviços para os grandes latifundiários, como assalariados, e algumas vezes aceitavam terra para trabalhar como meeiros. Circundando esta estrutura econômica, desenvolveu-se um sistema quase patriarcal que vinculava os menores aos mais fortes, por laços de amizade e respeito.42 Havia o pressuposto de que o senhor de engenho e os demais latifundiários proporcionavam a seus "agregados" auxílio e apoio todas as vezes em que isso fosse necessário. Em tempos de guerra, os "homens bons" eram "chefes de grupos armados compostos de escravos, agregados, afilhados e mercenários". Os vínculos mais fortes neste sistema eram o casamento entre as famílias mais poderosas, o que, então, .ajudava a estabelecer uma configuração complexa de dependência hierárquica.

A burguesia urbana, formada principalmente de comerciantes portugueses, veio ao Brasil em busca de riqueza rápida e, depois, ou passava à agricultura, ou, mais tipicamente, regressava a Portugal, sendo em breve substituída por novos elementos. Sua participação na estrutura local de poder era reduzida, como já vimos, e, por isso, não começou a se desenvolver no Brasil qualquer classe média de maior importância, senão na metade do século XVII.

Logo que o comércio com as Índias demonstrou ser um fracasso financeiro e a produção de açúcar no Brasil passou a ser cada vez mais um produto principal exportável,45 Portugal tentou conter a autonomia local e restringir o comércio. Alguns anos depois da concessão das capitanias, o rei nomeou um governador geral para o Brasil. Essa tentativa falhou porque o governador encontrou forte resistência à sua autoridade. Este processo de centralização foi reforçado quando as coroas portuguesa e espanhola se uniram sob um rei espanhol (1580-1640).

Em 1606 foi promulgada uma lei, segundo a qual qualquer contato entre o Brasil e o resto do mundo tinha de necessariamente ser feito através de Portugal, numa tentativa de monopolizar os lucros do comércio açucareiro. Portugal tentava obter para si o lucro do intermediário; embora a produção fosse originada nas colônias portuguesas, o refino e a distribuição do produto na Europa estavam quase que inteiramente nas mãos dos interesses holandeses e flamengos.48 Esta foi uma das fortes razões que levaram os holandeses a procurar uma integração vertical, tentando controlar a produção durante suas invasões no início do século XVII.

Estes traços básicos da economia brasileira no século XVI e os antecedentes da História portuguesa são suficientes para expor, à luz da abordagem do produto principal, algumas características importantes que condicionaram o processo de crescimento econômico e desenvolvimento no Brasil.

A primeira fase da história econômica brasileira, vinculada à extração do pau-brasil, não poderia levar a qualquer processo de crescimento auto-sustentado.

Como vimos anteriormente, esta atividade econômica não gerou quaisquer efeitosdifusão; o processo da coleta da madeira era executado pela população nativa em troca de artigos de pequeno valor e, portanto, não levou, através do conhecido mecanismo multiplicado r-acelerador a quaisquer encadeamentos de renda-consumo.

Em conseqüência de sua natureza extrativa, a função de produção associada ao comércio de pau-brasil não gerou qualquer encadeamento de produção, para frente ou para trás. Além disso, já que não originou um estabelecimento permanente no Brasil, esta fase econômica pôde ser caracterizada por preponderância completa de "fatores externos". Salários, lucros, aluguéis e juros eram pagos no exterior e, por conseguinte, além da falha em gerar um mercado interno, isso conduziu à acumulação de capital na Europa e não no Brasil.

Portanto, este ciclo primitivo do pau-brasil foi relativamente sem importância para a História Econômica brasileira. Não ajudou nem embaraçou o desempenho econômico futuro; desapareceu sem deixar traços significantes.

Não se pode dizer o mesmo do período que presenciou o início do estabelecimento permanente no Brasil, cujas principais características foram a criação das capitanias hereditárias e o nascimento da produção de açúcar.

Uma das questões mais controvertidas entre os historiadores da economia brasileira é a existência ou não de feudalismo encravado no sistema de capitanias introduzido no Brasil.

Como vimos anteriormente, Portugal tinha saído das instituições feudais dois ou três séculos antes; portanto, não poderia ter transplantado para o Brasil algo que não mais possuía. Frédéric Mauro diz que "do ponto de vista institucional, parece que existia um sistema feudal bem mais caracterizado que em Portugal". Contudo, segundo o autor, examinando-se a estrutura do sistema não é possível encontrar feudalismo. Ao invés, Mauro vê a criação de uma economia agrícola "do tipo comercial e especulativo", tendo como sua única motivação a busca do lucro. O rei trocou alguns de seus direitos políticos por uma grande soma de capital que deveria ser investido no Brasil; além disso, doou terras devolutas aos colonizadores, prática comum até hoje no mundo todo. Ademais, o rei não abandona todos os seus direitos e mantém para o governo central importantes monopólios e impostos. A ocupação da terra não se baseia em um sistema de propriedades campesinas, mas sim em um empreendimento capitalista individual, com base mais em escravidão do que em servidão, com orientação para a mono cultura e o mercado externo. Mais parecia o sistema de latifúndios romanos do que a estrutura feudal européia.

Johnson comenta que o sistema de capitanias donatárias é uma continuação direta da tradição senhorial portuguesa, a qual consistia na "devolução, por doação, dos poderes reais de governo (isto é, o direito de tributar, de nomear juízes, de monopolizar certas atividades e assim por diante), nas mãos de um nobre ou fidalgo; esta devolução está sujeita a certas condições gerais e inclui diversos poderes reservados pelo rei como sinal de seu 'maior senhorio'. A doação não dependia de serviço, militar ou outro qualquer, mas constituía um prêmio por serviços passados, presentes e futuros. Naturalmente, o donatário podia possuir propriedade dentro de seu senhorio, mas esta não era uma parte necessária da concessão". O sistema de capitanias brasileiras tinha basicamente as mesmas características, mas foi expandido através da doação de propriedades em terra (sesmarias) tanto ao capitão como aos colonos; realçava os direitos banais para os donatários e os recompensava com o redízimo a fim de aumentar a rentabilidade do empreendimento.

Resumindo, o sistema introduzido no Brasil foi resultado direto do que existia em Portugal. Se é chamado de feudal, senhorial, latifundiário, ou qualquer outra coisa, não é o que tem importância. Suas características básicas somente podem ficar conhecidas através da observação direta de suas peculiaridades.

Da descrição do sistema e de suas conseqüências sociais, políticas e econômicas, podemos concluir que ele criou uma estrutura autoritária com fortes tonalidades de localismo. A sociedade estava muito polarizada, tendo de um lado os senhores de terras e do outro os escravos. O poder concentrava-se nas mãos de uns poucos latifundiários poderosos e a iniciativa individual por parte da burguesia urbana (que, como vimos, não era importante) não tinha incentivo para se desenvolver.

O sistema levou à criação de uma sociedade aristocrática, através da qual as "casas" portuguesas ou as famílias nobres enviavam seus ramos para o Brasil. Apesar de poderosa, a elite do açúcar não usou de seu poder contra o rei e a metrópole. Ao invés, eram seus aliados naturais; como vimos, o governo português era suficientemente hábil para não gerar conflitos que pudessem fazer perigar suas possessões no Brasil. A renda concentrava-se muito nas mãos dos senhores de engenho e outros grandes proprietários de terras, que despendiam sua renda em artigos de luxo importados dos países manufatureiros da Europa. Estes "importadores de bens de luxo" impediram o crescimento de um mercado interno e geraram um sistema de auto-suficiência no que tange aos estratos mais baixos da sociedade. Além disso, já que uma grande parte dos lucros do comércio açucareiro associado ao embarque, refino e comercialização continuava como pagamentos aos "fatores externos", internamente não havia qualquer acumulação de capital de importância.

A política adotada por Portugal foi um fator que permitiu vazamento de renda para fora do sistema econômico luso-brasileiro. Uma abordagem mais "mercantilista" por parte de Portugal teria, pelo menos, mantido os fluxos de renda na metrópole e, talvez indiretamente, tivesse levado a um aumento no nível de atividades econômicas no Brasil. Vimos, porém, como a mentalidade portuguesa se orientava mais para o comércio, especialmente com base nas transferências especulativas de mercadoria de um local de abundância para um de escassez, por meio do poderio militar.

Em Portugal a agricultura estava decadente. Era considerada como atividade pouco respeitável, inadequada para um "homem bom". Por outro lado, a propriedade de terra e de escravos era um sinal de prestígio e poder. Conseqüentemente, a transição de latifúndio e escravidão de Portugal para o Brasil foi um processo suave e resultou no sistema da grande plantação capitalista, com todos os males que notoriamente o acompanham. Finalmente, deve ser mencionado que, durante este período da História brasileira, as guerras contra os estrangeiros e contra os índios foram uma fonte constante de sérios prejuízos para os colonizadores. A capitania de Pero Lopes de Sousa foi destruída pelos índios e abandonada pelos colonos; a de Francisco Pereira Coutinho também foi destruída pelos índios, embora mais tarde fosse recolonizada; quase todos os demais donatários empenhavam-se em cruentas lutas contra os nativos e os invasores estrangeiros.

Em 1580, a coroa portuguesa passou para Felipe II da Espanha. Portugal já era um país derrotado, com um grande império no mundo todo, mas completa- mente falido e sem meios para sustentar-se. Mas, apesar de tudo, teve bastante sorte para ver que nos dois séculos seguintes possuiria no Brasil um território que iria gerar alguns dos mais poderosos e ricos ciclos econômicos da história colonial européia.

Açúcar: Uma Economia de Enclave no Século XVII

De 1580 a 1640 a coroa portuguesa esteve sob o domínio dos reis espanhóis. Foi um período durante o qual as dificuldades suportadas por Portugal na primeira metade do século XVI aumentaram muito. Portugal emergiu deste período de dominação,como um país fraco, dependendo política e militarmente da Inglaterra. Sua marinha, certa vez instrumento de domínio em muitos continentes, era uma tênue sombra do que havia sido, enquanto seu império passava por um processo de desintegração. Além disso, a fim de obter reconhecimento da nova dinastia portuguesa - os Braganças - o país teve de pagar um alto preço o de submeter sua economia e a das poucas colônias que ainda lhe restavam ao domínio completo de uma potência econômica que despontava - a Inglaterra.

O Tratado de 1642 abria Portugal e suas possessões africanas e indianas aos mercadores ingleses, além de conceder-lhes importantes privilégios em Portugal. Em 1652 este país estava sendo economicamente punido por Cromwell por ter ajudado os que apoiavam Charles II. Em 1654, o tratado assinado em 1642 foi ampliado e ratificado em Lisboa à vista de uma esquadra inglesa. O documento garantia à Inglaterra privilégios em Portugal que tornavam os súditos daquela nação iguais aos comerciantes portugueses; permitia que Cromwell nomeasse juízes ingleses em Portugal, sob cuja jurisdição caíam todas as matérias que envolvessem interesses ingleses, inclusive seus súditos; a propriedade de súditos ingleses, após seu falecimento, estaria sob jurisdição inglesa, devendo ser vendida e seu valor remetido à Inglaterra; uma cláusula secreta concedia importantes favores fiscais aos bens ingleses. O Tratado de 1661 estabeleceu o dote da princesa portuguesa que se casaria com Charles II em 800.000 libras, além de Tanger, Bombaim e metade do comércio de cravo com o Ceilão - se a ilha fosse recuperada da I Holanda - e o direito de estabelecer .uma famma inglesa em cada capitania brasileira.

O resultado desses tratados foi a dominação total da economia portuguesa pelos ingleses. Os industriais portugueses não eram capazes de concorrer com os ingleses e disso resultaram grandes déficits no balanço de pagamentos. Os lucros' do comércio açucareiro no Brasil eram sistematicamente canalizados para a Inglaterra e auxiliaram a financiar seu processo industrial.

Nas décadas de 1670 e 1680, liderado pelo Conde de Ericeira, Portugal tentou fazer cessar este estado de coisas, já que a situação se agravara com as fortes quedas nos preços do açúcar e fumo, por causa da concorrência dos ingleses, franceses e holandeses com os produtos das Índias Ocidentais. As roupas importadas da Inglaterra tiveram sua entrada diminuída e a partir de 1677, até quase o fim do século, Portugal proibiu o uso de roupas estrangeiras. A política interna seguia a linha colbertiana que permitia que “as unidades fabris que fossem criadas coordenassem suas atividades, organizassem sua oferta de matérias-primas, padronizassem as práticas de vendas e as tarifas fiscais e garantissem a qualidade dos produtos acabados.”

Os ingleses se sentiram atingidos e cortaram seus preços numa tentativa de competir com os portugueses, mas "os produtos portugueses eram muito mais baratos que os ingleses". Enquanto suas exportações para Portugal declinavam, a situação dos produtores ingleses de lã piorava.

Entretanto, este período industrial em Portugal encontrou grandes obstáculos que finalmente não puderam ser sobrepujados. Entre outros, pode-se mencionar uma fraca classe mercantil em Portugal, falta de maquinaria estatal adequada e a oposição dos senhores de terras e da Igreja, temerosos de que "os artesãos hereges ingleses (fossem empregados) e que os judeus (fossem capazes) de reconquistar poder e influência".

Estes fatos, somados às notícias de descobrimento de ouro no Brasil, devem ter aumentado o desejo da Inglaterra pelo mercado português. Em 1703 foi assinado o Tratado de Methuen que restabeleceu e fortaleceu a situação anterior de dependência de Portugal da Inglaterra, destruindo de uma vez por todas seus industriais nascentes.

No Brasil. o século XVII foi uma ampliação, em escala maior, dos períodos finais do século anterior.

Na segunda metade do século XVII a emigração portuguesa para o Brasil iria assumir proporções tais que ameaçava despovoar regiões inteiras na pátria-mãe. Apesar da forte legislação contra, a emigração prosseguiu, causada primeiramente pelo declínio da atividade econômica em Portugal, como já foi mencionado e, em segundo lugar:, pela florescente indústria açucareira no Nordeste brasileiro.65

O grande aumento da população brasileira teve um resultado da máxima importância, qual seja a grande expansão do território. Cerca de um século após o início dos fluxos de emigração, a população que anteriormente se localizava numa estreita faixa litorânea havia expandido o território para suas atuais fronteiras, em grande parte às expensas das terras espanholas.

Um segundo fator que responde pelo crescimento da população, durante o século XVII, foi o influxo maciço de escravos para trabalhar no setor açucareiro.

Simonsen estima que a população negra em 1600 era de 20.000 e calcula que tenha havido um influxo de 350.000 durante o século XVII. Estes escravos se concentravam nas áreas produtoras de açúcar do Nordeste.

Durante esse século a estrutura econômica brasileira manteve as características básicas dos períodos anteriores. No centro do setor açucareiro estava o engenho para a produção de açúcar. Era a fábrica, com as plantações de cana-de-açúcar a ela vinculadas; necessitava de grandes investimentos em equIpamento e escravos (habItualmente de 80 a 100 escravos) e era de propriedade dos ricos senhores de terras. A população livre dos colonos portugueses concentrava-se nos centros urbanos ou, então, nos setores produtores de gado ou de subsistência. Muito poucos estavam diretamente empregados nas atividades produtoras de açúcar.

O gado era um importante setor subsidiário na economia brasileira. No Nordeste desenvolveu-se como setor dependente, sendo autônomo no Sul. No Nordeste, além de constituir uma fonte de nutrição para a população local, era um importante meio de transporte e energia para os engenhos. Apesar de sua importância e do fato de que empregava mão-de-obra livre - e, portanto, deveríamos esperar que gerasse alguns encadeamentos renda-consumo - jamais ultrapassou sua condição subordinada ao setor canavieiro. Mesmo no Sul, onde evoluía uma sociedade mais igualitária e mais orientada para mercado, o setor do gado, produzindo carne e couros, jamais se tomou uma atividade capaz de levar a economia a um processo contínuo de crescimento. Onde quer que se desenvolvesse ressentia-se da falta das importantes características geradoras de renda, necessárias para iniciar o processo de crescimento. Além disso, em face das dificuldades de transporte na época, a criação de gado era um bem de "curto alcance", no sentido de que o gado e a carne não podiam ser transportados por grandes distâncias e, conseqüentemente, o setor podia suprir o mercado somente em nível local ou regional.

De modo geral, o setor do gado não conseguiu gerar renda em volume significante e falhou, também, em gerar efeitos-difusão de realce. Faltavam-lhe as características desejáveis dos produtos principais exportáveis no que tange à capacidade de canalizar fundos estrangeiros para os mercados internos e iniciar um processo de acumulação de capital. Talvez o setor do gado no Brasil nos séculos XVII e XVIII seja um exemplo eloqüente da importância de existir um produto principal exportável para o início do processo de crescimento. Conquanto a criação de gado possua uma função de produção mais "favorável" em relação â produção de açúcar, no que toca a seus efeitos-difusão potenciais, não foi um setor orientado para o mercado externo e, por isso, não pôde gerar fluxos de renda autonomamente.

O setor açucareiro cresceu através da maior parte do século XVII e iniciou um processo de relativo declínio na década de 1660, em resultado da forte concorrência das Índias Ocidentais.

Durante "longos períodos ao redor da metade do século XVII, a produção anual de açúcar do Brasil para exportação excede três milhões de libras, cifra que na época não era alcançada pelas exportações totais da Inglaterra".67

Tendo em conta que a população européia no Brasil estava bem abaixo de 100.000 durante tais períodos, "a pequena colônia açucareira deve ter sido excepcionalmente rica".68 De fato, os senhores de terras, em cujas mãos se concentrava a maior parte desta renda, permitiam-se um extravagante nível de consumo.69 Artigos de luxo eram importados da Europa na média de 600.000 esterlinos por ano durante o pico do ciclo do açúcar. Não é de causar surpresa, portanto, que os grandes proprietários que dispunham de escravos e capital suficiente para construir um engenho se recusassem terminantemente a cultivar qualquer outro produto, apesar da legislação freqüente compelindo-os a fazê-lo a fim de suprir a população local com víveres básicos. Com a exceção de artigos muito simples produzidos nas plantações para consumo escravo, a economia dependia totalmente do setor externo para seus suprimentos. Estas características descrevem uma economia de enclave com níveis de permeabilidade muito baixos relativos ao sistema econômico local.

Também se pode avaliar o grau da fraqueza do mercado pelas estimativas de Furtado71 de que menos de 2% da renda produzidas no setor açucareiro eram pagos a assalariados e que cerca de 3% eram despendidos na compra de outros insumos que não escravos, tais como animais de carga e lenha. Vemos, por conseguinte, que somente cerca de 5% do valor bruto do açúcar constituíam o que deveria ser uma fonte principal de encadeamentos renda-consumo, ao passo que a percentagem restante era principalmente canalizada para mercados exteriores, diretamente através de pagamentos feitos a "fatores externos" ou indiretamente pelas importações de artigos de luxo.

Como vimos acima, as importações de bens de consumo montaram a 600.000 libras nos anos de pico do ciclo. Furtado estima que isto representava cerca de 50% da renda líquida do setor. Os 50% restantes representavam "potencialidades de investimentos do setor", o que seria suficiente para dobrar o capital dos setores a cada dois anos. Já que estes fundos não eram investidos no Brasil, seja no setor açucareiro, ou em qualquer outra atividade, Furtado conclui que "uma parte da renda... seria o que atualmente se denomina renda de não-residente e permanecia fora da colônia".

Efetivamente, já no século XVI, há evidência que indica a importância da renda dos "fatores externos". Três dos donatários tinham associação direta com capitais holandeses, além de outros que se apoiavam consideravelmente nos capitais portugueses. Igualmente, com base nas cifras de Simonsen,75 vemos que enquanto o açúcar no Brasil estava sendo pago a 650 réis por arroba, era vendido em Portugal a 1850 réis, ou 285% do preço FOB; embora os custos de transporte e os riscos fossem altos, é difícil acreditar que tal participação desproporcional representasse os valores monetários reais desses serviços.76 Enquanto a margem para os armadores e comerciantes representava 70%, ao ano, do capital investido, para os produtores brasileiros representava apenas 15% ao ano, com o que tinham de satisfazer todos os custos de produção, transporte interno e embalagem.

Durante o século XVII continuou a existir o mesmo fenômeno. Ainda com base nos dados de Simonsen,podemos estimar a percentagem do valor total da produção de açúcar recebido pela Companhia das Índias Ocidentais Holandesas como lucros no ano de 1639, durante sua ocupação de Pernambuco. O total da produção de açúcar no território holandês foi de 600.000 arrobas que, ao preço unitário de 1,99 libras -(preço em vigor em 1640), proporcionou um valor total de 1.194.000 esterlinos. Os lucros da Companhia Holandesa no Brasil montaram a 600.000 libras, ou aproximadamente 50% do valor bruto da única atividade produtiva local. Naturalmente, a apropriação pelos "fatores externos" deve ter sido consideravelmente maior que 50%, já que também tinham de ser atendidos os custos de sua contribuição real para os estágios de embarque e comercialização da produção. Também foi estimado que a renda direta e indireta recebida pela coroa portuguesa, durante o ciclo do açúcar, montou a cerca de 25% do valor das exportações do produto.

Finalmente, deve-se mencionar que o sistema de escravatura constituía um meio excelente de extrair um excedente do setor açucareiro.

Se fizermos a suposição de que, em decorrência dos poderes monopolísticos dos plantadores de cana-de-açúcar, os salários poderiam ser mantidos ao nível de subsistência, de modo que fossem aproximadamente iguais ao custo de manutenção da força de trabalho escravo, os custos de capital no setor açucareiro seriam consideravelmente reduzidos pela inexistência de compra de escravos. Com efeito, o preço de compra de um escravo representa um adiantamento sobre um fluxo futuro de renda gerado pelo trabalho escravo e apropriado pelo senhor de escravos. O sistema de escravatura, portanto, canalizou uma parte deste excedente para o traficante de escravos, que habitualmente era europeu e também canalizava sua renda para o exterior.

A economia açucare ira no Brasil possuía, também, uma característica que pode ser muito inibidora no tocante ao crescimento e mudanças estruturais de longo prazo. Visto que grande parte dos investimentos era representada por compras de escravos e que estes constituíam uma força de trabalho efetiva que não dependia do nível imediato das exportações, todas as vezes que as condições de mercado forçavam o proprietário de escravos a reduzir a produção de açúcar, a força de trabalho escravo era usada para melhorias na propriedade ou para a produção de bens de consumo e serviços para os senhores de terras. Deste modo, os prejuízos para o proprietário de escravos reduziam-se de intensidade e diminuíam a responsabilidade do empresário aos estímulos do mercado - em outras palavras, esta estrutura tendia a reduzir a elasticidade-preço da oferta do setor açucareiro. O resultado foi o desenvolvimento de um setor que teve a tendência de conservar suas características estruturais no decorrer do tempo. De fato, Furtado declarou que "a economia açucareira no Nordeste brasileiro, com efeito, resistiu mais de três séculos às mais prolongadas depressões, logrando recuperar-se sempre que o permitiam as condições do mercado externo, sem sofrer nenhuma modificação estrutural significativa".

Durante a maior parte do século XVII, até o início de um novo ciclo econômico em Minas Gerais - o ciclo do ouro -, o grande proprietário de plantação continuou como a única força de poder na região, apesar dos esforços crescentes por parte da administração colonial.81 Economicamente, a aristocracia do açúcar também conseguia manter sua esmagadora supremacia sobre a burguesia comerciante. Já se argumentou que a revolta patrícia contra a ocupação holandesa foi motivada pela crescente influência da cidade comerciante de Recife sob o regime holandês. O fato, porém, é que somente no final do século surgiu no Brasil o embrião da classe média - timidamente, no Nordeste, concomitante com um declínio de importância no setor açucareiro, e com mais vigor nas regiões em que se havia descoberto ouro.

Os senhores de engenho mantinham sua posição por todos os meios possíveis. No esforço para conter a autoridade dos latifundiários locais, o governo central nomeou os chamados juizes de fora que vieram diretamente de Portugal e cujos deveres, obrigações e até mesmo comportamento social eram estritamente regulados de Lisboa. Mas, apesar de sua ilegalidade, tais juízes amiúde eram atraídos para a aristocracia local com a qual mantinham contatos, como vínculos matrimoniais, apadrinhamento e, ocasionalmente, até participavam de empresas comerciais.

Em outras ocasiões, a oligarquia mantinha seu status impedindo que outros grupos galgassem posição. Como vimos, opunha-se com bastante sucesso à burguesia urbana e muitas vezes embaraçava a concorrência econômica por meio de legislação real, como a interdição de usinas de aguardente e a proibição da construção de mais engenhos de açúcar no litoral.

Mesmo quando, nas duas ou três últimas décadas no século XVII, os preços do açúcar declinaram e os proprietários de terras caíram em pesado débito para com os comerciantes no Brasil e em Lisboa, eles procuraram manter seu padrão de vida e preservaram, até os dias atuais, o que Freyre denominou de "complexo de cavalheiro", tão comum no Brasil. Porém, mesmo nesta época, quando a oportunidade era propícia a uma drástica mudança social liderada pelo comerciante. e pelo pequeno plantador, cuja possibilidade de mobilidade social atualmente era muito impedida, o sistema no Brasil mostrou tal aderência que "o povo se tornou prisioneiro do sistema que havia construído".88 Com o declínio dos preços do açúcar, o Nordeste revelou-se incapaz de "transferir recursos" e de efetuar mudanças estruturais para dar origem a um processo de crescimento em longo prazo.

Concomitantemente, Lisboa estava procurando centralizar o poder e monopolizar as atividades econômicas, em seu esforço para tornar-se menos dependente da Inglaterra.

Em 1661 os navios estrangeiros foram proibidos de comerciar no Brasil. Em 1647 tinha sido formada a Companhia do Brasil e em 1682 também foi formada a Companhia do Maranhão e do Pará. Essas empresas obtiveram importantes mono- pólios no comércio brasileiro. Foram proibidas as atividades econômicas que concorriam com a produção do açúcar, com as principais safras exportáveis, ou com o comércio português. Em 1665, a produção de sal foi tornada ilegal, assim como em 1696 foi proibida a remessa de dinheiro, ouro e prata do Brasil; a elevação do preço do fumo foi proibida em 1698, o que também aconteceu com o vinho de mel em 1657. Em 1688 não havia incentivo para as fundições de ferro no Brasil. Tal tendência, inibindo toda atividade econômica que não atendesse diretamente aos interesses portugueses, tornou-se ainda mais vigorosa no século XVIII, durante a última tentativa de Portugal para livrar-se da Inglaterra.

Resumindo, o século XVII poderia ser descrito como um período durante o qual a economia açucare ira e todas as suas resultantes fincaram o pé na economia brasileira. Centralizava-se no Nordeste que, então, tornara-se o ponto focal das atividades econômicas no Brasil, enquanto as demais áreas do país continuavam como regiões subsidiárias, ou como economias de subsistência.

Durante o período, fatos externos, tais como a crescente influência britânica em Portugal, começaram a ter importantes conseqüências domésticas. Vimos como, em conseqüência da reação portuguesa contra este fato, a política colonial, que até então tinha sido liberal, começou a virar abruptamente para idéias "mercantilistas". O resultado foi que o Brasil passou a ser essencialmente um país de mono cultura - uma economia de enclave cuja única função era gerar um mercado para os comerciantes portugueses, a fim de proporcionar a Portugal uma fonte de tributos e produzir um produto principal importante com a receita do qual a metrópole pudesse financiar seus constantes déficits no balanço de pagamentos.

Internamente, a economia açucare ira e o sistema que gerou não eram menos desanimadores. A estrutura social era aristocrática e nada tinha de igualitária. A "mentalidade de plantação" era disseminada entre a população toda. A renda originada pelo setor açucareiro, mais cedo ou mais tarde, encontrou seu caminho para a Europa através da extração direta do excedente produzido, ou através dos "fatores externos" e "importadores de bens de luxo". Outras atividades econômicas como a criação de gado em outras regiões do país, como o Sul, não eram capazes de iniciar um processo de crescimento, em conseqüência de sua incapacidade de gerar fluxos de renda e de fator. Como uma economia típica de enclave, logo que seu mercado de produto principal declinou, o Nordeste do Brasil caiu e:m profundo processo de estagnação e subdesenvolvimento que perdura até o presente.

Ouro: Um Ciclo de Repressão Mercantilista

A vida econômica portuguesa no século XVIII foi crucialmente influenciada pelo Tratado de Methuen de 1703. De acordo com esse instrumento, o mercado português estava franqueado, sem direitos alfandegários, para os produtos têxteis ingleses, em troca da redução de um terço dos direitos para a importação de vinho português em relação às importações francesas.

As conseqüências desse tratado se fizeram sentir imediatamente. Enquanto as exportações portuguesas para a Inglaterra aumentaram de £172.000 para £240.000 durante o período de 1697-1700 a 1706-1710-aumento de 40%- as importações da Inglaterra no mesmo período saltaram de £295.000 para £652.000 - aumento de 120% - o que levou a um acréscimo na participação de Portugal no total das exportações inglesas, de 9 para 14,9%. Somando os itens invisíveis ao hiato adverso da balança comercial portuguesa, o déficit global aumentou de £128.000 no período 1697-1700 para quase £1.000.000 em 1706-1710- aumento de aproximadamente 800%.

Como seria de se esperar o tratado desferiu um golpe fatal na indústria têxtil portuguesa e resultou em um fluxo contínuo de ouro das minas brasileiras, recentemente descobertas, para a Inglaterra. "Há bons motivos para pensar que entre metade e três quartos do ouro que subiu o Tejo em um bom ano médio (1.200 arrobas) em breve encontrou seu caminho para a Inglaterra."

Por outro lado, "durante mais de meio século o Tratado de Methuen proporcionou à Inglaterra uma nova fonte de metal precioso que era tão essencial para que sua circulação monetária se mantivesse em ritmo com a produção e comércio crescentes".

Uma vez conquistado o mercado português pelos comerciantes e industriais ingleses, as tarifas sobre as importações de vinho dos diferentes países foram constantemente manipuladas pelos britânicos sem que absolutamente houvesse violação do Tratado de Methuen. Na verdade, os direitos sobre os vinhos portugueses já eram mais baixos do que o tratado estipulava, mesmo antes de ter sido assinado; em resultado, os direitos sobre os vinhos portugueses eram constantemente aumentados, ao mesmo tempo em que os que incidiam sobre os vinhos espanhóis eram baixados para igualar os dos produtos portugueses.

O resultado do Tratado de Methuen, que codificou um sistema injusto de trocas de necessidades de um lado e de artigos de luxo de outro, produziu o que poderia ser previsto com facilidade: a vassalagem econômica de Portugal e suas colônias à Inglaterra,95 com uma estrita divisão de trabalho entre as duas partes.

A seguir, os fabricantes portugueses sofreram um declínio abrupto, apesar das políticas colbertianas adotadas por D'Ericeira que visavam ao incremento das atividades manufatureiras. E, por mais de meio século, Portugal continuou como um exportador de ouro altamente especializado. Indiretamente, estes fatos impediram o desenvolvimento de manufaturas no Brasil, visto que todos os esforços portugueses se concentravam na produção de ouro como o meio para resolver os problemas urgentes do balanço de pagamentos. Veremos posteriormente que tanto neste período como depois - durante a época em que Portugal tentou uma vez mais se liberar da influência da Inglaterra - o Brasil foi forçado a especializar-se em produção primária, o que ocasionou maiores delongas no início de um processo de industrialização.

Esta situação global deveria perdurar praticamente o século XVIII inteiro, tendo como clímax o período de 1756 a 1760, quando o déficit do comércio, anglo-português alcançou £1,04 milhões e Portugal absorveu 17% do total das exportações britânicas (em 1736-1740 a cifra era de 19,1%). O déficit comercial seguiu os movimentos das importações portuguesas de ouro e diamantes do Brasil. confirmando o fato de que a maior parte do benefício causado pelos encadeamentos de renda-consumo, derivados do aumento do poder aquisitivo originado pelas minas de ouro brasileiras, foi transferida para a Inglaterra que, então, passava por mudanças que culminaram na Revolução Industrial.

Foi contra tal estado de coisas que o Marquês de Pombal, influente ministro de D. José I, tentou agir. Sua motivação principal era destruir as fontes do poder inglês em Portugal. Acreditava ele na eficácia dos monopólios, privilégios, concentração de renda e economias de escala no fomento de empreendimentos comerciais e industriais, e adotou políticas mercantilistas baseadas em protecionismo, intervenção estatal, colonialismo e contratos, a fim de conseguir desenvolvimento e poder internos.

Seu primeiro ato foi proibir todas as remessas de ouro e prata para o exterior. Infelizmente, Portugal estava ameaçado de fome e esta política teve de ser afrouxada. Ao invés, foi imposta uma taxa de 1% sobre as exportações de ouro e prata. Em 1753, começaram a ser concedidos monopólios e privilégios para o comércio, asiático; em 1755 foi fundada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão e, mais tarde, em 1759, foi fundada a Companhia de Pernambuco e Paraíba, com importantes monopólios no comércio brasileiro.100 Ao redor de 1770, Pombal começou a implantar sua política concernente à industrialização de Portugal, seguindo os mesmos princípios que haviam caracterizado seu desempenho anterior. A estratégia seguida baseava-se na importação de mão-de-obra especializada e na organização de empresas financiadas pelo Estado, as quais amiúde se sustentavam por meio de fortes saques ao Tesouro.

Pombal sempre havia sido uma figura controvertida. Em curto prazo, suas políticas demonstraram ser extremamente penosas para o país.

Ao final da década de 1750, a renda passou a concentrar-se muito nas mãos de alguns empresários poderosos, enquanto a maior parte do país sofria considerável pobreza. Além disso, as finanças estatais estavam se aproximando da bancarrota. Dizem seus críticos que ele deixou o país em ruína depois de sua queda em 1777, em decorrência de suas políticas comerciais e industriais ineficientes, bem como por sua relativa negligência do setor agrícola.

A criação de companhias de comércio à moda antiga, "um século depois de estas terem gerado riqueza para outros países", parecia, com efeito, um método obsoleto. Já tinham passado as condições sob as quais as companhias de comércio monopolistas eram úteis como meio de acumular capital que, do contrário, estaria ocioso e disperso, enquanto no século XVIII, em Portugal e no Brasil, elas simplesmente impediam a criação e desenvolvimento de empresas.

Pombal também negligenciou o setor agrícola, exceto, talvez, por suas tentativas para desenvolver a agricultura no Maranhão. Como veremos mais adiante, ele permitiu o declínio da agricultura no resto do Brasil, do que resultou excessiva concentração de mãode-obra e capital na produção de ouro.105

Algumas tentativas para justificar esta falha baseiam-se na crise da década de 1760, durante a qual as exportações de ouro do Brasil alcançaram um pico, sofrendo depois uma baixa dramática durante quase duas décadas; nas despesas incorridas na reconstrução de Lisboa, destruída por um terremoto na década anterior; na guerra contra Castela em 1762; nas guerras do sul do Brasil (envolvendo o que hoje é o Uruguai) e no estabelecimento de fronteiras entre os territórios portugueses e espanhóis na América do Sul. Também poderíamos salientar o possível longo período de gestação de suas políticas.

Realmente, suas políticas principais foram continuadas depois de sua queda, em 1777, e a partir de então, até 1816, foram sentidos seus efeitos positivos. A balança comercial de Portugal com a Inglaterra, que era destacadamente seu mais importante parceiro de comércio, melhorou consideravelmente como se pode ver pela Tabela 1 no Apêndice. As exportações agrícolas brasileiras aumentaram significativamente e uma grande autonomia em relação à Inglaterra passou a existir durante as duas últimas décadas do século XVIII.107  

Entretanto, os maus fados dos portugueses não tinham chegado ao fim. Em 1808 o país foi invadido pelas tropas de Napoleão. A corte fugiu para o Brasil sob a proteção de belonaves britânicas e, uma vez mais, Portugal voltou às garras da Inglaterra.

Este breve relato da história portuguesa durante o século XVIII indica de modo bastante claro a extrema importância que o Brasil adquiriu na geração de uma base econômica para o decrescente império português. Com a perda do comércio asiático e a crescente concorrência da produção açucareira das Caraloas, nas décadas finais do século XVII, a política colonial portuguesa no Brasil se tornou cada vez mais restritiva. O vácuo de poder criado pelo declínio da produção de açúcar no Nordeste fez com que fosse mais fácil que os poderes coloniais se impusessem cada vez mais, com uma administração centralizada que visava à extração dos excedentes para financiar o continuado déficit comercial que caracterizou a maior parte do comércio internacional português durante a maior parte do século XVIII.

Pombal extinguiu os direitos remanescentes das velhas famílias donatárias, reconquistando para a coroa toda a autoridade e poder que tinha partilhado com a administração local durante os séculos anteriores. A escolha das atividades econômicas era confinada pelos interesses da metrópole; o resultado foi que nas sete primeiras décadas do século XVIII houve um declínio marcante de toda a produção, com a exceção da mineração de ouro e diamantes.

As primeiras descobertas de ouro no Brasil ocorreram na década de 1660. No final do século XVII, foi encontrado ouro em Minas Gerais e nos vinte anos seguintes em Goiás e Mato Grosso. Estas descobertas foram feitas pela população de São Paulo - os paulistas , uma capitania pobre do Brasil, que até então se concentrara na captura de escravos índios. Quando o tráfico de escravos índios se tornou decadente, no final do século XVII, os paulistas organizaram exércitos mercenários para combater os índios no Norte. Mas, apesar de seus esforços, a capitania de São Paulo continuava extremamente pobre em comparação com a civilização açucareira do Nordeste.

Sob um aspecto, porém, os paulistas estavam na dianteira. Em conseqüência de seu relativo isolamento de Portugal e do resto do Brasil, desenvolveram uma sociedade mais livre, com base em minifúndios, e um espírito de independência e coesão social que até então eram completamente atípicos do Brasil colonial. Enquanto o Nordeste se desenvolvia como uma "fazenda portuguesa de ultramar", São Paulo estava demonstrando um crescimento orgânico orientado para a formação da identidade nacional.

Encorajados pelo rei, os paulistas descobriram ouro em Minas Gerais entre 1692 e 1696. De início, o controle das minas permaneceu em suas mãos e parecia que, por fim, seriam capazes de obter o que vinham procurando durante quase dois séculos. Em breve, porém, a imigração maciça tanto de Portugal, como do Nordeste, os afogou em ondas de recém-chegados.

A população do Brasil, estimada em 1690 como tendo no máximo 300.000 habitantes, aumentou para 2.523.000 em 1780, com aproximadamente 50% deste aumento canalizado para a região das minas. Para que se tenha a idéia da situação desanimadora dos paulistas, procurando manter soberania nas minas de ouro, basta observar que em 1777 a população de São Paulo era de apenas 116.000 habitantes e que somente 1.000 paulistas puderam migrar para as minas, em decorrência da inexpressiva população de São Paulo no início do ciclo do ouro. Estes fatos geraram a Guerra dos Emboabas, quando os paulistas, que lutaram contra os portugueses e os migrantes brasileiros que se encaminhavam para as minas, foram derrotados e, dessa forma, privados dos benefícios de suas descobertas. A riqueza de São Paulo foi de curta duração e a capitania regressou ao seu estado anterior de pobreza.

Este episódio ti importante na História do Brasil, porque assinala a primeira vez em que os interesses nativos divergiram suficientemente dos de Portugal para gerar um sentimento de coesão e oposição à administração colonial. Ao redor de 1720, quando São Paulo e Minas Gerais foram separados, havia notícias de disseminado espírito de sedição contra Portugal. Conquanto derrotados, os paulistas conseguiram deixar atrás de si, em Minas, os germes do nacionalismo que culminaram nas revoltas de Curvelo (1775) e na Inconfidência Mineira (1789).

O sistema de produção aurífera no Brasil, de fato, era injusto para os paulistas. Já que a maioria do ouro era de aluvião, o processo consistia principalmente em peneirar a areia do leito dos rios, o que fazia do processo algo de caráter extrativo. Havia necessidade de algum equipamento pesado, para desviar o curso dos rios. Não obstante, o sistema produtivo era extremamente intensivo de mão-de-obra. Tendo em vista a grande falta de mão-de-obra na capitania de São Paulo, era de interesse da administração colonial atraí-la para a região. Isso foi feito através da distribuição de datas, ou tratos de terra, onde se supunha que havia ouro.

Quando se descobria uma área aurífera, o fato era imediatamente comunicado às autoridades que faziam o exame do local e dividiam-no em datas, tomando as providências necessárias para sua distribuição pública. O descobridor da mina tinha o direito de escolher a primeira data; a segunda escolha era da coroa e as demais eram distribuídas aleatoriamente aos demais interessados, proporcionalmente ao número de escravos que possuíssem.

Na verdade, o sistema era bastante eficiente para levar mão-de-obra à área. Não exigia grandes concentrações de capital em escravos ou equipamento durável e, por isso, pela primeira vez na História do Brasil, o processo da mobilidade social e econômica ascendente passou verdadeiramente a funcionar. O espírito empresarial nativo foi uma das conseqüências naturais deste processo, ao mesmo tempo que o de urbanização adquiria impulso. Foi durante este período que, pela primeira vez, surgiu um processo de integração econômica e divisão do trabalho.

As condições acima mencionadas caracterizavam potencial muito maior para a existência de um mercado interno do que era o caso na economia açucare ira do Nordeste. Furtado observa que, em tempo algum, a população escrava compôs a maioria dos habitantes locais, como aconteceu no Norte, apesar de que a migração interna partindo do Nordeste compreendia homens livres e escravos, sendo a mobilidade destes últimos desencadeada por uma ativação intensa do tráfico de escravos.123 Além disso, o sistema conseguia até integrar a população escrava no mercado, ao passo que na economia do açúcar a organização autárquica da plantação falhava nesse ponto. Mauro chega até a dizer que "de uma economia semifechada se passa a uma economia de mercado e a uma economia de massa". Essa transição foi possibilitada por um grau muito menor de concentração de renda, embora a renda per capita fosse mais baixa do que na economia açucareira. Em resultado, o coeficiente de importações sobre o consumo era muito maisbaixo, dando margem a mercado interno consideravelmente maior.

De fato, criou-se um grande mercado para produtos locais como mulas, gado bovino, vários tipos de produtos alimentícios, metal para ferraduras e aros para rodas de carros de boi, têxteis simples, pólvora, e assim por diante. São Paulo, Rio e outras regiões mais ao sul tornaram-se estreitamente integradas com a economia de mineração de Minas Gerais, provendo importantes possibilidades de comércio em resultado das atividades de suporte à produção de ouro. Como podemos ver, a economia de mineração foi capaz de gerar consideráveis encadeamentos para trás, bem como os de renda-consumo, num grau que a economia açucareira, posto que mais rica, não conseguiu.

Neste ponto, surge naturalmente a pergunta: por que o Brasil não aproveitou esta oportunidade para iniciar um processo crescente e auto-sustentado de atividade manufatureira?

Sem dúvida, uma causa importante foi a incapacidade tecnológica. Não apenas a administração colonial desencorajava a educação e a introdução de inovação tecnológica, como Portugal também era incapaz de transferir qualquer conheci. mento manufatureiro para o Brasil, em conseqüência do declínio de suas atividades industriais frente â concorrência da Inglaterra.129

Acresce a isso que durante o curto período do ciclo do ouro, o Brasil teve de contender com grandes obstáculos ao crescimento de manufaturas, tais como pequena população, redes de transporte e comunicações extremamente precárias, falta de experiência, pequena classe empresarial - embora crescente - e, como veremos mais adiante, e talvez mais importante que tudo, repressão econômica e política.

As estimativas da quantidade de ouro produzida no Brasil são apenas aproximações rudimentares. Simonsen estima que foi cerca de £160.000.000, embora haja estimativas que cheguem até a £200.000.000. Pode-se aquilatar a importância do ouro brasileiro com algumas comparações: no final do século XV o estoque de ouro na Europa era estimado em £50 milhões; o ouro da África colhido pelos portugueses é estimado em £0,4 milhões por ano, entre 1493-1520, e £0,35 milhões anualmente entre 1521-1544 (seu ouro financiou muitos dos descobrimentos portugueses - Simonsen acredita que estas cifras são exageradas); entre os anos de 1700 e 1770, que correspondem aos melhores anos da produção aurífera no Brasil (depois dessa data a produção caiu abruptamente), o volume representava aproximadamente 50% de todos os descobrimentos de ouro nas Américas, entre 1493 e 1850, e também cerca de 50% da produção do resto do mundo durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Como podemos ver, a riqueza criada no Brasil do século XVIII foi de grande magnitude e faz com que a questão sobre a falha em ter iniciado um processo de industrialização intrigue um pouco. Deve-se procurar um componente importante da resposta na política colonial imposta por Portugal, apesar de que, conforme foi acima -mencionado, alguns outros fatores também foram importantes.

Durante o tempo da dominação espanhola na primeira metade do século XVII (15801640), Portugal deu início a uma abordagem mais centralizada a suas colônias. A exemplo da Espanha, criou o Conselho Ultramarino, estabelecendo o início de uma política de controle do Brasil mais eficaz. O poder dos donatários diminui cada vez mais e, ao mesmo tempo, a administração local é gradativamente enfraquecida, como está bem exemplificado pela nomeação dos juízes de fora em 1696. O declínio da produção de açúcar no Nordeste, que teve início na segunda metade do século XVII, contribuiu para o fortalecimento da administração colonial, já que enfraqueceu o poder local incorporado nos grandes proprietários de plantações de cana. O vácuo de poder assim criado facilitou a imposição de políticas econômicas cada vez mais restritivas no Brasil.

De início, as políticas econômicas tinham um caráter comercial, ou pela tentativa de monopolizar diretamente o comércio, ou para garantir que este fosse sempre canalizado através de meios burocráticos que, então, arrecadavam direitos. Por exemplo, em 1.647, foi fundada a Companhia do Brasil com importantes privilégios de monopólio em comércio. Do mesmo modo, em 1682, foi fundada a primeira Companhia do Maranhão e Pará Em 1660 tornou-se ilegal viajar para o Brasil, salvo como parte de comboios oficiais, e em 1661 passaram a ser aplicáveis severas penalidades aos que comerciassem com navios estrangeiros.

Em breve, porém, com o descobrimento de ouro no Brasil e com os déficits cada vez maiores no balanço de pagamentos de Portugal, a política colonial no Brasil passou a ser mais fiscalista, visando a extrair o máximo possível dos excedentes econômicos gerados nas colônias.

Imediatamente foi imposta uma tributação de 20% sobre todo o ouro produzido (o quinto), além de todos os demais impostos e emolumentos que já existiam ou acabavam de ser criados. Em conseqüência do contrabando, o governo criou as Casas de Fundição, onde tinha de ser depositado todo o ouro produzido que era, então, fundido em barras, após o confisco da parte do governo. Toda a circulação de ouro em pó ou em pepitas era rigorosamente proibida e violentamente fiscalizada. Posteriormente, depois de alguma hesitação e da experimentação de métodos como a tributação por cabeça de escravo, foi estabelecido que seria arrecadado um único imposto anual, ou seja, 100 arrobas de ouro por ano (1.500 quilos). Se a arrecadação fosse menor que o montante estabelecido, o governo ordenaria um derrame, ou seja, a população toda tinha de contribuir, de um modo ou de outro, para completar a diferença. No que toca à produção de diamantes (descobertos em 1729), a política era ainda mais direta e opressiva. A área diamantífera foi logo delineada e totalmente isolada do resto do país. Foi declarada monopólio do governo e explorada através de contratos oficiais.

Além disso, todas as outras atividades econômicas no Brasil foram afetadas pela febre de regulamentação que assolou a colônia no século XVIII. A série de leis, decretos, regulamentos etc., é muito longa para ser arrolada, mas todos esses instrumentos tinham um ponto em comum: garantir que todos os recursos disponíveis fossem empregados em mineração e que o País se especializasse em atividades não competitivas, de modo a não colocar em perigo a eficácia de Lisboa como ponto coletor de impostos sobre o comércio. Muitas vezes esses regulamentos eram mal dirigidos, no sentido de que produziam resultados indesejáveis até mesmo para os interesses coloniais, além do efeito deletério sobre o crescimento e desenvolvimento da economia brasileira.

Por exemplo, em 1761, a criação e uso de mulas foram proibidos em conseqüência das queixas dos tradicionais criadores de cavalos, no Norte, que sofriam a concorrência dos criadores de mulas no Sul. Já que havia necessidade de mulas, e não de cavalos, nas regiões montanhosas e úmidas da mineração, esta legislação resultou em consideráveis importações de mulas da América do Sul espanhola, uma vez impedido o fornecimento interno.137 Ademais, o grande número de regulamentos quanto a impostos tornou a aparelhagem administrativa um grande impedimento às atividades econômicas. Ninguémm sabia exatamente o que pagar e o governo tampouco sabia o que arrecadar. Um outro exemplo é a Lei Trintena: os produtores de ouro com mais do que um número mínimo de escravos estavam livres da ação judicial para a liquidação de suas dívidas; era uma tentativa para encorajar a produção. O resultado, porém, foi uma séria limitação à sua obtenção de crédito.

Em geral, a legislação econômica do século XVIII no Brasil poderia ser classificada sob dois títulos principais: legislação alocativa, por cujo intermédio o governo procurava suprimir a liberdade econômica e tentava dirigir a alocação interna de recursos e a legislação extrativa, segundo a qual, buscando arrecadar tantos impostos quanto fosse possível, o governo criou uma aparelhagem enorme para evitar a evasão tributária.

São exemplos da legislação alocativa: as leis que obrigavam aos que tivessem adquirido riqueza no Brasil que regressassem a Portugal, -leis que restringiam todas as atividades econômicas que não a produção de ouro nas áreas de mineração, a proibição da produção do açúcar no Maranhão em 1761, a proibição da tecelagem de algodão em 1766, a proibição da fabricação do sabão em 1767, a proibição do cultivo de oliveiras e amoreiras, para evitar a produção de azeite e seda respectivamente, e assim por diante.

São exemplos da legislação extrativa: a lei de 1701 proibindo o trânsito nas importantes rotas do gado que ligavam a Bahia e Pernambuco à área de mineração, a fim de evitar contrabando as leis de 1727, 1730 e 1733 proibindo a construção de estradas e a profissão de ourives.

Como se não bastasse, Lisboa impediu o desenvolvimento da tecnologia e da educação no Brasil., quando, em 1720, proibiu a impressão no País. Na verdade, jornais, livros, revistas e escolas praticamente não existiam no Brasil em pleno século XVIII.

O clímax desta sanha legislativa foi o famoso Alvará de 1785, ordenado por D. Maria I, que dizia: "Julgo por bem ordenar que todas as feitorias, fábricas ou lojas... sejam extintas e abolidas em qualquer lugar que possam ser encontradas em meus domínios no Brasil."144

O efeito destrutivo desta lei tem sido omitido por alguns autores, sob a alegação de que no Brasil não havia manufaturas que pudessem ser "extintas e abolidas". É verdade que, em decorrência dos fatores acima esboçados e em resultado da opressão econômica imposta à colônia, a manufatura não poderia terse desenvolvido ao pleno potencial proporcionado pelo ciclo do ouro. Não obstante, mostrava alguns sinais animadores de atividades que teriam se desenvolvido em processo de crescimento auto-sustentado se a política portuguesa para com o Brasil tivesse sido mais liberal e menos fiscalista.

A fabricação de ferro nas áreas de mineração foi resultado da procura de ferraduras e aros para carros de boi. Embora comumente encontrada, essa indústria metalúrgica era muito primitiva e empregava tecnologia vinda da África, trazida pelos escravos. Existiam também algumas outras atividades manufatureiras, sendo a maioria do tipo caseiro e manual.

Por volta de 1750 foram instaladas numerosas unidades fabris no Rio de Janeiro, com tecelagem de algodão, linho, bordados em ouro e prata, veludo, cetim, seda, cobertores, cânhamo, chapéus de palha, cordas, sabão, jóias etc.

Com o declínio da produção de ouro depois de 1760, a população começou a espalharse ao redor das regiões ao sul do Brasil, empenhando-se em atividades agrícolas, como algodão, fumo, café, criação de gado e, também, em pequenas atividades fabris ao redor do Rio de Janeiro.148 Bruno relata a existência de quase 100 teares manuais ao redor do Rio em 1785.

O governador de Minas Gerais, D. Antônio de Noronha (1775-1780), mostrou grande preocupação pelo fato de que a capitania estava exportando produtos têxteis para outras partes do Brasil. Ele mostrou preocupação pelo fato de que em breve a população da capitania se tornaria independente do reino (Portugal) pela diversidade de produtos de suas fábricas." O próprio vice-rei estava preocupado porque, a despeito de ter extinto muitas indústrias, a manufatura doméstica estava tão disseminada que se tornava impossível destruir toda a atividade têxtil na colônia.

Parece evidente que o Alvará de 1785152 tinha um objetivo real: destruir todas as atividades manufatureiras no Brasil que, por essa época, já estavam substituindo algumas importações da Europa.

Em vista das características que predominavam no Brasil do século XVIII, poderíamos resumir em poucos itens os principais fatores que impediam o País de se desenvolver em uma economia nacional propelida por um processo de crescimento auto-sustentado:

a) A grande extração, pelo poder colonial, dos excedentes produzidos no Brasil. Estima-se que entre £ 100.000.000 e £ 100.000.000 em ouro e diamantes encontraram seu caminho para Portugal durante o século XVIII. Além disso, outras fontes de renda responderam por aproximadamente £0,5 milhões em 1770. Se mantida à mesma taxa, essa produção montaria a mais £50 milhões adicionais. Aceitando as estimativas de Simonsen do valor da produção de mineração em £ 160 milhões, torna-se claro que o Brasil não poderia ter-se lançado em um processo industrial significante.

Além desta pilhagem dos fundos inversíveis do Brasil, Portugal cortou ainda mais a oferta potencial de capital para o Brasil com uma série de leis que proibiam exportações de capital para este país.

b) Interferência na alocação de recursos.

Vimos como as atividades econômicas eram estritamente regulamentadas em Portugal. Este fato interferiu em uma das mais importantes características do sucesso na transição de uma economia de produto essencial exportável para uma economia crescente e auto-sustentada, qual seja, como vimos acima, a capacidade de transferir recursos.

Talvez a alocação imposta ao Brasil fosse eficiente do ponto de vista dos interesses portugueses, mas certamente constituiu uma violação flagrante do padrão de alocação que os interesses brasileiros teriam solicitado.

c) Atraso tecnológico.

Vimos como o Brasil estava segregado do resto do mundo quanto a comércio, educação e tecnologia. Por isso não causa surpresa que os níveis de produtividade fossem muito baixos e que as grandes invenções que acompanharam a Revolução Industrial somente muito mais tarde é que fossem introduzidas no Brasil.

d) Limitações do mercado interno.

Embora a economia de mineração do século XVIII tenha proporcionado um mercado interno potencial muito maior do que a prévia economia açucareira, devese lembrar que ela ainda permanecia uma sociedade baseada em mão-de-obra escrava. Apesar do tremendo aumento em população, de cerca de 300.000 para aproximadamente 3.000.000 no decurso do século, cerca da metade era constituída de escravos que representavam um pequeno mercado efetivo. Além disso, a renda ainda continuava muito concentrada, dessa forma induzindo quantidades significantes de importações de luxo e consumo conspícuo, o que limitava a procura interna. Por fim, mas certamente não de menor importância, está o fato de que, enquanto Portugal limitava a disponibilidade de fundos inversíveís pela extração dos excedentes brasileiros, pelo mesmo motivo limitava o mercado interno do Brasil para os bens de consumo.

e) Deficiências de transporte e comunicações.

Considerando o tamanho do País e que a população estava mais ou menos dividida pela metade entre o Nordeste e o Sul, o papel do sistema do transporte e de comunicações se torna crucial no desenvolvimento de uma economia integrada. Já vimos que, para evitar a evasão tributária, a administração colonial penava severamente o desenvolvimento de canais apropriados de transportes e comunicações.

f) Opressão política.

O Brasil era mantido por Portugal com "rédeas curtas". Embora, como vimos acima, tenha sido durante o século XVIII que, pela primeira vez, os interesses nativos brasileiros entraram em curso de colisão com as políticas portuguesas, a maquinaria colonial militar e administrativa era suficientemente forte para manter sua posição básica. As novas classes que emergiam no Sul não eram tão poderosas quanto as velhas elites do açúcar e, com o declínio açucareiro, Lisboa encontrou o caminho livre para impor sua política.

Por outro lado, o século XVIII deixou alguns traços positivos na História Econômica brasileira que são bastante importantes para ser mencionados. Primeiro, as mudanças demográficas e geográficas que se tornariam importantes no século seguinte, quais sejam, a migração maciça interna e externa para o Sul. Este movimento da população, que chegou até o rio da Prata, foi um fator essencial na expansão geográfica do País. Ademais, os movimentos migratórios levaram .a população para o interior do País, abrindo regiões que anteriormente eram totalmente inexploradas. Por cima disso, o ciclo do ouro gerou o crescimento de centros urbanos e a transferência da capital brasileira de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763.

Segundo, o cicio do ouro também produziu algumas importantes mudanças sociais. Uma concentração mais densa da população nas áreas das minas, com o crescimento de centros urbanos, deu origem a uma classe média urbana que, de modo geral, não existia nos períodos anteriores. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se importante ponto focal de atividades comerciais e manufatureiras, coordenando tanto o comércio interno como o externo. Foi durante este período, como vimos, que surgiram as primeiras imagens da identidade nacional.

Terceiro, finalmente e da máxima importância, o ciclo do ouro estabeleceu o cenário para o aparecimento do produto essencial seguinte na história econômica brasileira: o café. Foi durante este período que houve a acumulação de um pouco de capital, sob a forma de gado e escravos, necessário à produção do café. Regiões ecologicamente apropriadas foram povoadas de tal maneira que, pela primeira vez na História do País, um produto essencial pôs em movimento forças importantes e gerou os encadeamentos que colocaram o País em uma trilha de crescimento. Diferentemente dos ciclos anteriores de produtos essenciais, a produção de café ocorreria em um ambiente que tinha desenvolvido autonomamente as condições necessárias. Não teria de ser imposta uma estrutura sócio-econômica vinda de fora, como havia acontecido nas áreas açucareiras do Nordeste, já que tal estrutura tinha se desenvolvido organicamente no Sul, em resultado dos eventos do século XVIII, relacionados ao ciclo do ouro.

Seria instrutivo, a esta altura, fazer algumas observações sobre o período colonial americano.

Excluindo a Nova Inglaterra, as colônias americanas tinham características estruturais muitos semelhantes às do Brasil. Inicialmente, eram empreendimentos comerciais encorajados pelo sucesso financeiro das experiências portuguesa e espanhola. "Eram terras particulares cujos proprietários, alguns empresários, outros com características feudais, se achavam dotados de amplo poder e privilégios que lhes foram conferidos por patentes reais."

Estas regiões, orientadas para exportação, produziram, como no Brasil, um sistema sócio-econômico aristocrático e não igualitário, baseado em plantação de larga escala e escravidão negra. A alta concentração de renda resultante, bem como a estrutura econômica auto-suficiente das plantações, pelo menos no que tange aos bens cuja procura tinha origem nas necessidades da população escrava, reduziram as dimensões do mercado interno e, pelo mesmo motivo, produziram uma grande procura de importações de luxo. Estas características indicam um sistema econômico com forte viés externo, incapaz de gerar internamente um processo de diversificação e industrialização.

Apesar de que o ímpeto do desenvolvimento não se originou nestas regiões, ainda assim foram importantes porque proporcionaram um produto exportável cujos efeitos-difusão foram captados por uma outra região com características diferentes, mas que, ainda assim, abrangiam o mesmo sistema econômico, ou seja, a colônia da Nova Inglaterra.

Lá encontramos uma estrutura sócio-econômica completamente diferente, com base em agricultura de pequena escala e navegação comercial. Diferentemente do Sul, os recursos naturais não eram apropriados à produção do tipo plantation. Conseqüentemente, desenvolveu-se uma sociedade orientada para gerar e suprir seu próprio mercado interno, ao invés de revelar fortes tendências para o exterior, como no Sul ou no Brasil.157 A Nova Inglaterra e as colônias intermediárias concorriam com a Inglaterra em produtos como calçados, mangueiras, sabão, rendas e linhas em mercados tão ao norte quanto a Terra Nova e tão ao sul quanto as Índias Ocidentais. Concorriam no transporte de carga e, às vezes, exportavam produtos manufaturados para a Europa. O resultado foi que apesar de sua baixa produtividade por homem em comparação às regiões de grandes "plantações", criou-se uma estrutura econômica diversificada e integrada que propiciou a disseminação de encadeamentos, gênio empresarial e inventividade.

O sucesso das colônias americanas pode ser atribuído a quatro razões principais que são compatíveis com a abordagem utilizada na análise do caso brasileiro que podem ser prontamente comparadas com o curso de eventos no Brasil. São (1) os efeitos da função de produção na parte nordeste dos Estados Unidos, (2) a internalização dos benefícios do sistema econômico britânico nas Américas do Norte e Central, (3) o arcabouço institucional em que as colônias se desenvolveram (4) as características culturais da população da Nova Inglaterra.

O primeiro fator deve ter-se tornado bastante evidente agora, dada a abordagem adotada neste trabalho. Se as colônias tivessem encontrado um produto essencial exportável que envolvesse uma função de produção menos "favorável", caracterizada por economias de escala, indivisibilidades e grande intensidade de mão-de-obra, teria sido menos provável que os traços que favoreceram o crescimento e desenvolvimento econômico tivessem aparecido.

O segundo fator também foi mencionado alguns parágrafos acima. As colônias da Nova Inglaterra conseguiram internalizar os benefícios gerados pela produção de bens essenciais exportáveis nos outros pontos de colonização britânica na América. Empenhadas em navegação, comércio e exportações de alguns artigos manufaturados, foram capazes de canalizar para a Nova Inglaterra alguns importantes encadeamentos de produção, bem como de atender nder à procura de certos manufaturados, gerada pelas áreas produtoras de bens primários. Deste modo, os habitantes da Nova Inglaterra conseguiram inverter o fluxo tradicional de efeitosdifusão das colônias para a Europa como aconteceu no Brasil.

O terceiro fator, o arcabouço institucional em que as colônias se desenvolveram, constitui uma condição sine qua non para o desenvolvimento da economia americana.

"A Inglaterra começou sua carreira como a maior e mais próspera potência colonizadora que o mundo já conheceu, sem qualquer política fixa e, na verdade, sem qualquer idéia clara do que ela e seu povo estavam fazendo... O governo estava dando pouco mais do que sanção legal a uma migração pela qual de modo algum era responsável." Em resultado, "até 1660 as relações da Inglaterra com suas colônias, eram vacilantes e esporádicas". A legislação inglesa em relação às colônias tinha um caráter comercial, ao invés dos sobretons coloniais e imperialistas que os demais países da Europa impunham a suas possessões.

Depois de 1660 e da restauração dos Stuarts, pela primeira vez surgiu na Inglaterra a idéia colonial, em resultado principalmente do sentimento de inadequação que os britânicos tinham em comparação à França, Portugal e Espanha e seus sistemas centralizados mais desenvolvidos de administração colonial. Mas, mesmo então, o fato de que as mesmas colônias tinham vivido em mãos privadas, durante mais de meio século, resultou em uma tradição de independência e autogoverno, o que fez das tentativas coloniais inglesas (o velho sistema colonial britânico) um empreendimento algo difícil. Com efeito, nem mesmo internamente havia um consenso quanto à política colonial britânica e a posição parlamentar impediu as autoridades executivas inglesas de monarquizar todas as colônias e, assim, impediu a formação de um sistema monolítico de administração colonial. Em parte, a posição das colônias foi fortalecida pela importância do capital britânico na economia colonial, o qual controlava áreas importantes, especialmente nos setores secundário e terciário. Não era absolutamente claro para ninguém na Grã-Bretanha que o desenvolvimento das colônias americanas devia ser contido se viesse a colidir com alguns dos interesses britânicos.

Não obstante, foram impostas algumas restrições, como as Leis de Navegação, e já em 1699 existiam políticas para restringir as manufaturas nas colônias. Todavia, foi na imposição destas restrições que os ingleses demonstraram ser bastante negligentes. Em geral, os colonizadores aceitavam um pouco da autoridade da pátria-mãe, especialmente porque esta estava procurando estabelecer um sistema "que proporcionava tantas oportunidades para evasão" possivelmente a Inglaterra estava mais interessada em construir a base para sua Revolução Industrial e foi com esta intenção que pode ter tido mais interesse em encontrar novos mercados em suas colônias, permitindo-lhes crescer, ao invés de restringir suas atividades e, por extensão, seu próprio mercado potencial. Ademais, os colonizadores americanos julgavam ter igualdade de status com a mãe-pátria. Em geral, somente "quando a lei da colônia fosse omissa é que a da Inglaterra devia ser seguida". Com freqüência, a própria administração colonial ignorava as leis britânicas, já que parecia mais interessada em partilhar com os americanos um mercado crescente e promissor.166

Do acima exposto, uma comparação entre o arcabouço institucional americano e o brasileiro indicará a tremenda diferença entre ambos e talvez lance mais luzes quanto ao problema do subdesenvolvimento brasileiro.

Finalmente, o quarto fator, as características culturais dos estabelecimentos norte-americanos, desempenhou papel crucial no desenvolvimento da economia americana. O Brasil também tinha tido um período bastante liberal nos primeiros cem ou cento e cinqüenta anos de sua História. Também tinha uma administração colonial distante que se interessava mais pelo comércio asiático e que chegou ao ponto de distribuir a colônia inteira a empresários interessados. Também permitiu que se desenvolvesse uma forte elite local que administrava seus próprios assuntos com bastante autonomia. Mas a mentalidade dos colonizadores é que fez uma grande diferença. Enquanto na América do Norte os fundamentos para uma sociedade moderna eram lançados em conseqüência da liberdade concedida, no Brasil esta era usada para perpeturar privilégios tradicionais.

Diz Berlinck que "a América do Norte começou a ser colonizada por um povo do século XVI, ao passo que o (Brasil) teve seu. início com um povo que havia praticamente chegado a uma cessação completa de sua evolução no final da Idade Média. A população americana estava cônscia de seus interesses em oposição aos de uma elite local opressiva, ou de uma elite metropolitana igualmente opressiva.. "Esta independência das classes governamentais vis-a-vis a metrópole foi o fator básico no desenvolvimento das colônias norte-americanas, visto que isso significava que podiam confiar cri organizações políticas suscetíveis de serem as verdadeiras intérpretes de seus próprios interesses, em lugar de serem caixas de ressonância de eventos em algum centro econômico predominante, mas distante." Com efeito, o controle popular opunha-se aos direitos dos proprietários nas colônias americanas e a concessão de Penn em 1701 da Patente de Privilégios marcou o final de sua porfia quando “os privilégios feudais, como característica do governo na América (do Norte) podem ter sido considerados como extintos”.

Finalmente, na esfera econômica, temos de levar em conta a hipótese de Max Weber relacionada à "ética protestante", que moldou uma parte significativa dos desempenhos econômicos das sociedades influenciadas por Calvino. O conceito de que "o homem era apenas um administrador do que Deus lhe havia dado" e que "condenava os prazeres, mas não permitia a fuga do mundo, considerando o trabalho, juntamente com sua disciplina racional, como a tarefa religiosa do indivíduo" (tarefa dada por Deus, uma convocação), era essencial na formação de um espírito capitalista. Racionalidade, alta propensão a poupar ao invés de alta propensão a consumir bens de luxo, oportunidade para mobilidade econômica etc., certamente existiam nos Estados Unidos em muito maior proporção do que no Brasil colonial. É na comparação entre o Brasil e os Estados Unidos que se torna mais aparente a importância do espírito capitalista. Também se torna claro que as afirmativas de certos autores, de que o processo de subdesenvolvimento é um resultado direto da dependência a que os países são arrastados, uma vez incorporados ao sistema capitalista, passam a ser um argumento muito mais frágil que solicita importantes ressalvas.

Café: Um Ciclo de Modernização e Crescimento

O século XIX foi um período durante o qual o Brasil emergiu como nação unificada, integrada e independente. Depois de três séculos de completa subordinação política e/ou econômica à Europa, o País foi capaz de olhar para dentro e gerar uma economia que mais visava a suportar sua própria população do que a atrair população para suprir economias estrangeiras. Isto foi possível, não importa o quão contraditório possa parecer à primeira vista, através da integração do Brasil na economia do mundo capitalista como parceiro independente empenhado em comerciar seu principal produto exportável - o café.

A primeira metade do século pode ser caracterizada como um período, em

que começavam a formar-se algumas condições importantes para a aparição dos efeitos-difusão. Depois dos desenvolvimentos das últimas décadas do século anterior, os primeiros cinqüenta anos do século XIX prepararam o terreno para o sucesso de desempenho do produto principal seguinte do Brasil. As cinco décadas seguintes, cujas características iriam continuar em boa parte do século XX, marcaram o início da evolução do Brasil de hoje.

Na Europa, o século XIX foi um período durante o qual estavam ocorrendo mudanças importantes. No que tange à História Econômica brasileira, o evento mais importante que moldou o século XIX foi a Revolução Industrial que estava ocorrendo na Inglaterra desde a metade do século anterior.

As transformações institucionais, sociais e políticas, que estavam tendo lugar na Inglaterra desde o século XVI, possibilitaram a utilização, no domínio econômico, dos grandes progressos conseguidos nas ciências exatas. Tais avanços foram incorporados em novos processos tecnológicos de produção que, juntamente com grande acumulação de capital, resultaram na crescente importância dos produtos manufaturados, em geral, e dos bens de capital em particular. Acresce a isso que o progresso nos sistemas de transporte aumentou consideravelmente a faixa de mercado de produtos agrícolas e manufaturados.

O resultado foi que o papel da maioria dos países produtores de produtos primários periféricos fez meia-volta durante o século XIX: em lugar de serem basicamente produtores de matérias-primas, metais preciosos e víveres, passaram a ser considerados como mercados potenciais para quantidades crescentes de produtos industrializados que saíam das fábricas européias.

Com esta perspectiva, as novas configurações de comércio estabelecidas no século XIX podem ser caracterizadas como busca agressiva de mercados por parte das nações européias mais adiantadas. O forte intervencionismo que antes existia foi substituído pela doutrina do livre comércio, muito mais funcional para atingir este fim. "Assim, o livre comércio tornou-se a melhor política da Inglaterra, não porque fosse inerentemente melhor do que qualquer outra política, mas porque a Inglaterra, tendo grande vantagem na produção de manufaturas, ganhava trocando-as com outros países."

Na Inglaterra, os ideais de livre comércio, que em 1820 haviam-se tornado um "estado de espírito, senão uma convicção", também eram interpretados como significando a livre movimentação de fatores entre nações, especialmente depois da década de 1830, quando os ideais coloniais emergiram uma vez mais. Houve importantes fluxos de capital da Inglaterra para países ricos em recursos naturais onde a produtividade do capital era mais elevada. Além disso, importantes movimentos da população também ajudaram a caracterizar o século XIX como um período de mobilidade bastante alta de produtos e fatores.

A integração do Brasil neste novo padrão de relações internacionais surgiu com a invasão de Portugal pelo exército de Napoleão em 1807. D. João VI, sua mãe D. Maria I e a corte portuguesa, de cerca de 15.000 pessoas, fugiram para o Brasil sob a proteção britânica, passando este país a ser sede do império português.

A chegada da corte portuguesa ao Brasil e a assinatura da Carta Régia de 1808 assinalaram o início de uma nova era na História Econômica brasileira. A partir de então, o País foi incorporado ao mercado mundial como unidade independente e tornou-se capaz de formular suas próprias políticas de acordo com seus objetivos, apesar de que, pelo mesmo motivo, estava sujeito às políticas de outros agentes que atuavam no mercado. Conseqüentemente, o processo de crescimento econômico que se seguiu foi resultado de dois componentes básicos: primeiro, a influência das políticas adotadas pelos parceiros de comércio do Brasil e, segundo, a percepção de seus próprios interesses e das políticas resultantes adotadas. É com esta nova perspectiva em mente que a História Econômica brasileira do século XIX deve ser abordada, a qual difere significativamente de seu papel anterior de extensão passiva dos interesses metropolitanos.

À sua chegada ao Brasil, D. João VI adotou políticas que visavam ao desenvolvimento da economia brasileira que, então, era o núcleo do império. Com certeza sua intenção era a criação de uma economia forte que talvez pudesse tornar-se a sede permanente da dinastia dos Braganças. Com este propósito em mente, adotou, durante sua permanência no Brasil, até 1821, uma série de medidas destinadas à criação de um setor manufatureiro no País. Por outro lado, sua política tinha uma tendência contraditória, no sentido de que refletia a ideologia do livre comércio, o que chegou a impedir do nascimento de um setor industrial brasileiro.

A assinatura da Carta Régia e do decreto de 19 de abril de 1808, que (a) abria os portos brasileiros a "todas as nações amigas" (talvez devêssemos ler, ao invés, Inglaterra) e (b) abolia o Alvará de 1785 assinado pela mãe de D. João VI, D. Maria I, o qual proibia todas as atividades manufatureiras no Brasil, constituíram o coroamento da vitória dos ideais do laissez faire no Brasil. Euclides da Cunha referiu-se a estes decretos como equivalentes a duas revoluções liberais, no sentido de que representavam a adoção do livre comércio como a política econômica oficial.

A Carta Régia de D. João VI foi o resultado de duas influências principais:

primeira, a pressão que os ingleses exerceram sobre ele e, segunda, a pressão que sofreu por parte dos intelectuais e empresários brasileiros.

Pode-se ver imediatamente que os britânicos exerciam influência na corte portuguesa pelo fato de que representavam a única fonte de proteção contra Napoleão. Com o mercado europeu fechado aos bens britânicos, era de seu interesse liberalizar o comércio no Brasil, especialmente porque a Grã-Bretanha era o único país em condições de tomar conta do mercado brasileiro e, através do Brasil, das colônias espanholas na América Latina.

Internamente, os ideais de livre comércio foram adotados com a mesma espontaneidade. Um levantamento feito no Brasil em 1807 pelo governador da Bahia, Conde da Barca, revelou claramente que as classes empresariais brasileiras consideravam o livre comércio como a melhor política possível. De fato, para um país que sempre teve seus pés e mãos atados por interesses metropolitanos, era desejável uma política econômica liberal. Devemos notar, porém, que no Brasil as motivações para a adoção da doutrina do livre comércio orientavam-se para o setor agrícola. Tratava-se de um liberalismo agrário baseado em condições favoráveis do mercado para produtos agrícolas e na vantagem comparativa do Brasil em produção primária. Claramente, era do maior interesse para as classes proprietárias de terras que o comércio fosse liberalizado e que as importações de produtos manufaturados fossem barateadas.

Pressionado pelos interesses britânicos e brasileiros, sob a liderança do Conde da Barca e do economista brasileiro, grande admirador de Adam Smith, o Visconde de Cairu, D. João VI cedeu à ideologia do laissez faire que, então, se achava em moda.

Por outro lado, estava interessado em encorajar o nascimento de manufaturas no Brasil e, com este propósito em mente, não hesitou em adotar políticas protecionistas. Durante este período, sob a tutela do governo, foi iniciada a primeira onda da manufatura moderna no Brasil, a qual teve curta duração. Isso foi possível, apesar da concorrência britânica, por duas razões principais: primeira, a proteção natural, à forma de tarifa, decorrente da distância geográfica e os custos de transporte; e, segunda, pelo fato de que de 1808 a 1810 a Grã-Bretanha estava muito ocupada com as perturbações políticas e econômicas na Europa para empenhar-se agressivamente numa competição pelo mercado brasileiro.

Começando com o decreto de 28 de abril de 1809, isentando de direitos aduaneiros a importação de matérias-primas de que os brasileiros necessitavam, foi assinada uma série de decretos com a finalidade de encorajar o início de um setor manufatureiro, bem como para criar uma infraestrutura econômica compatível com suas tentativas de gerar um processo de crescimento econômico. As tentativas para a industrialização foram caracterizadas por isenções tarifárias de direitos de exportação, obrigação de usar produtos feitos no Brasil em certos setores governamentais, subsídios, concessão de privilégios de monopólio e a criação do primeiro Banco do Brasil.182

Conquanto tais políticas pró-industrialização tivessem sido postas em vigor durante a permanência de D. João VI no Brasil, os britânicos se asseguraram, logo de início, que elas não resultariam em quaisquer ameaças à sua indústria e comércio. Em 1810 foi assinado um tratado que garantia aos britânicos não apenas a continuação das políticas de livre comércio, mas também tarifas preferenciais para seus produtos. De acordo com o tratado, os produtos ingleses seriam tributados em 15%, ou 1% menos que os produtos portugueses, ao passo que os bens de outros países seriam tributados em 24%, Foram concedidos outros importantes privilégios aos súditos britânicos residentes no Brasil, além das cláusulas que asseguravam que os produtos brasileiros não concorreriam no mercado inglês com os similares das Índias Ocidentais. Além disso, o tratado estabelecia Santa Catarina como porto livre, o que era um meio de facilitar a penetração dos produtos ingleses na América do Sul espanhola.

O Tratado de 1810, que se supunha fosse de liberação do comércio a reciprocidade de concessões, na realidade foi um documento criador de privilégios. Na verdade não houve reciprocidade para os produtos brasileiros, já que o artigo 20 mantinha explicitamente a proibição da importação, pela Inglaterra, de produtos como café e açúcar. Naturalmente, livre comércio em base unilateral só podia levar ao colapso de qualquer tentativa de industrialização no Brasil.

Nos primeiros poucos anos após a chegada da corte portuguesa ao Brasil, houve um pequeno aumento de atividades manufatureiras, especialmente em têxteis e no setor altamente subsidiado da metalurgia. Essas atividades, porém, não podiam criar a base para o nascimento de um setor industrial no Brasil e não se pode negligenciar o Tratado de 1810 como uma das causas mais importantes deste fracasso.

Esta política de livre comércio, adotada desde a abertura dos portos brasileiros, teve efeito importante no comércio exterior. Houve grande aumento de importações, principalmente da Inglaterra, embora o comércio com outros países também fosse muito expandido. Enquanto em 1805 entraram no porto do Rio de Janeiro 810 navios, em 1810 o número havia se elevado para 1.636. A participação de Portugal no comércio brasileiro, porém, declinou consideravelmente em decorrência da perda do papel de intermediário. Já em 1812, as exportações britânicas para o Brasil se tornaram maiores que as portuguesas. O comércio total com Portugal (exportações mais importações), que em 1796 montava a £5,1 milhões, em 1808 estava reduzido a menos de £0,6 milhões. Depois que Portugal se libertou da França, o comércio se soergueu novamente, mas permaneceu bem abaixo de sua marca atingida em 1796. Em 1810 era de £1,9 milhões e em 1820, de £ 3,9 milhões.

O Rio de Janeiro tomou-se o ponto focal do aumento do movimento comercial no Brasil, embora em outras cidades, como Salvador, também tivesse aumentado muito. A população do Rio de Janeiro subiu de 43.000, em 1799, para 112.000, em 1821, mostrando considerável elevação na percentagem de estrangeiros. Somente a corte portuguesa compreendia aproximadamente 15.000 pessoas.

No Brasil, o comércio atacadista ou varejista, rural ou urbano, caiu quase. completamente em mãos estrangeiras, com grande participação de empresas inglesas, francesas e portuguesas. Durante este processo, o balanço de pagamentos do Brasil esteve sob considerável dificuldade.

Desde 1808, quando foram adotadas as políticas de livre comércio, até 1846, o Brasil sofreu os efeitos de um contínuo déficit comercial anual, causado não apenas pelo grande aumento de importações, decorrentes da abertura dos portos, mas também pelo aumento excessivamente lento das exportações até 1850. A falta de um mercado dinâmico de exportação e o crescimento lento do mercado interno devem ser acrescentados ao Tratado de 1810 como obstáculos adicionais ao desenvolvimento de um setor industrial na primeira metade do século XIX.

Em 1818 foram tomadas algumas providências para melhorar o balanço de pagamentos com as nações estrangeiras. Pelo decreto de 2 de maio, os artigos importados de Portugal tiveram suas tarifas reduzidas para 15%, iguais às impostas aos bens ingleses. Além disso, as manufaturas portuguesas teriam uma redução de 5% como bonificação. Naturalmente, estas medidas eram totalmente inadequadas para enfrentar os problemas do déficit no comércio do Brasil.

Em 1821, D. João VII regressou a Portugal, em resultado da Revolução do Porto, deixando seu filho D. Pedro no Brasil. Logo após, o governo português procurou restabelecer o status colonial anterior do Brasil, tentando conter ou diminuir os privilégios que o Brasil havia adquirido nas duas décadas anteriores. Aconteceu, porém, que não podia haver tal regresso. Uma aliança entre a aristocracia dos plantadores e a burguesia urbana. serviu como instrumento para que o príncipe D. Pedro proclamasse a independência do Brasil em 1822 e se tornasse seu primeiro imperador, D. Pedro I.

Nesta ocasião, uma vez mais a Grã-Bretanha usou de oportunismo político para atingir seus objetivos económicos. Em 1825, sob forte pressão da Inglaterra, o Brasil assinou com Portugal um tratado de independência. De acordo com esse tratado, o Brasil assumia a responsabilidade de pagar uma dívida portuguesa à Inglaterra no valor de £1,4 milhões, além de compensar a coroa portuguesa pela perda de suas propriedades, em £0,6 milhões. Nesta ocasião, o Brasil teve de contratar o primeiro de uma série de empréstimos com a Inglaterra, sob condições que estavam longe das práticas bancárias habituais. Ao redor de 1850, o serviço da dívida brasileira já respondia por 40% das receitas do governo. Em 1827, como pagamento pelo reconhecimento, pela Grã-Bretanha, do novo império brasileiro, foi assinado um tratado de acordo com o qual os privilégios obtidos pela Inglaterra, em 1810, prolongavam-se por mais 15 anos, além de uma cláusula que comprometia o governo brasileiro a extinguir o tráfico de escravos dentro de três anos. A tarifa de 15% sobre os produtos britânicos foi mantida até 1844. Em 1826, no entanto, a mesma taxa foi estendida aos bens franceses e, em 1828, abrangeu todas as importações estrangeiras.

O ano de 1844, quando expirou o Tratado de 1827 com a Inglaterra, marcou o início de um novo período da vida econômica do Brasil no século XIX. Sob dezenas de protestos internacionais, passou a vigorar a Tarifa Alves Branco, dessa forma iniciando um período de industrialização auto-sustentada, embora errática.

Em retrospecto, de 1808 a 1844, o Brasil esteve sob o regime do laissez-faire, embora houvesse a superposição de uma política nacionalista, mais forte em intenção do que em realização.

Por si só, a simples adoção de uma política econômica liberal já era um grande avanço e não devemos considerar os primeiros defensores da política de livre comércio com o mesmo rigor com que consideramos os que a defenderam posteriormente, quando algumas das condições para a industrialização já podiam ser encontradas no cenário econômico brasileiro.

Nos primeiros 40 anos depois da Carta Régia, o desenvolvimento industrial do Brasil nada mostrou de expressivo. Sem errarmos muito, poderíamos dizer que o País atingiu um estágio industrial não superior ao de 1785, quando as manufaturas foram proibidas. Somente as indústrias manuais muito simples, protegidas naturalmente pela distância geográfica e alto custo de transporte, é que puderam sobreviver.

Por outro lado, o período deixou alguns lançamentos positivos na conta econômica e social do Brasil. A urbanização prosseguiu com grande rapidez, as atividades comerciais, posto que quase totalmente controladas por estrangeiros, aumentaram significativamente, as comunicações por terra e água melhoraram e foi criado o primeiro Banco do Brasil. Fatos de menores resultados tangíveis, mas igualmente importantes no processo de crescimento e desenvolvimento econômicos, também foram realizados, como a fundação da Academia Naval, de um Colégio de Medicina, uma biblioteca pública com 60.000 volumes, um jardim botânico e a vinda, para o Brasil, de alguns importantes intelectuais e cientistas.

Finalmente, na arena política, este período marcou a ,unificação do País sobre bases sólidas. O Brasil, que até então "era realmente um agregado de aproximadamente vinte províncias espalhadas e centrífugas..." adquiriu, não sem alguns períodos extremamente agitados, especialmente na década de 1830, uma certa coesão política e espírito nacional. Um exemplo da determinação que se desenvolvia no Brasil foi a questão com a Inglaterra sobre o tráfico de escravos. Foi somente em 1850, quando as condições internas do País não permitiram outra escolha senão a cessação das importações de escravos, é que foram tomadas providências positivas nesse sentido.

Em 1850, pelo menos no que tange às infra-estruturas política e econômica, o Brasil estava preparado para crescimento e prosperidade. Mas o País ainda tinha falta de um catalisador que pusesse essas forças em movimento, isto é, tinha a falta de um produto principal exportável. Vimos acima como as exportações brasileiras,. durante os primeiros cinqüenta anos do século XIX, cresciam a uma taxa muito lenta, não podendo, por isso, gerar suficiente acumulação de capital ou um mercado interno significante. Esta lacuna foi preenchida na segunda metade do século pelas exportações de café que, como vimos antes, havia encontrado um ambiente econômico adequado para se desenvolver, em grande parte como resultado do ciclo anterior de produto principal. "O renascimento econômico do Brasil começou em 1850.”

Já em 1822 o Brasil exportava 170.000 sacas de café; em 1889 as exportações alcançaram 5.586.000 sacas; em 1899, 9.771.000 sacas; e em 1909, 16.881.000 sacas. O aumento nas exportações de café pode ser observado de modo mais realista em quantidades por década.



Pode-se ver que tais exportações, no século XIX, aumentaram a altas taxas e que o movimento de preço, começando na década de 1841-1850, aumentou de £ 1,32 por saca para £2,52 no período de 1891-1900. Em resultado, as receitas do café aumentaram através do século, elevando sua participação, no total das exportações, de 18,4% em 18211830 para 64,5% em 1881-1890. Durante 80 anos, de 1821 a 1900, a receita total das exportações de café montou a £604 milhões, o que é uma indicação de grande riqueza dele derivada.

Talvez este novo ciclo econômico tivesse sido apenas um outro cicio se não tivesse ocorrido quando ocorreu. O fato, porém, é que o café adquiriu tal importância na economia brasileira que foi capaz de levar o País para uma nova trilha de crescimento econômico - o de um processo auto-sustentado, gerando efeitosdifusão para frente e para trás, bem como a uma economia nacional integrada.

Analisando a função de produção do café, somos tentados a dizer que esta tem características tecnológicas e econômicas que não diferem grandemente das de outros produtos tropicais como açúcar, fumo ou algodão. Todos eles possuem algumas características em comum, tais como alta intensidade em mão-deobra, acentuados rendimentos de escala e pouco processamento para que estejam prontos para a exportação. Por conseguinte, dever-se-ia esperar que isso levaria a configurações de produção semelhantes às observadas nas áreas açucareiras do Nordeste do Brasil, como latifúndios, dependência da força de trabalho escrava, grande concentração de renda, ambiente social não igualitário, alta propensão a importar e assim por diante.

Na realidade, todas estas características eram observáveis nas regiões cafeeiras do Sul do Brasil. Não obstante, o resultado final do ciclo do café como produto principal foi bastante diferente do ciclo do açúcar. Podem ser mencionadas algumas razões.

Antes de mais nada, o próprio País havia desenvolvido sua estrutura, adequada ao novo ciclo, e da maneira mais apropriada a seu ambiente. Não foi necessário que fatores de produção, bem como um arcabouço institucional, fossem transportados parva região com a finalidade única de explorar a nova fonte de riqueza, como tinha acontecido nos ciclos econômicos brasileiros anteriores. Sob este aspecto, o ciclo do ouro foi importante, como tivemos oportunidade de observar. Um pouco da acumulação de capital, sob a forma de escravos e derrubada das matas, foi resultado direto do ciclo anterior, que serviu como instrumento para ocasionar um aumento significante na produção de café, como resposta aos sinais do mercado. Outros fatores, que também foram essenciais para explicar a alta elasticidade-preço da oferta e que podem ser rastreados aos desenvolvimentos do século precedente, são a concentração populacional na região, o desenvolvimento de um significante centro financeiro e comercial no Rio de Janeiro, o surgimento de um certo grau de consciência nacional, a existência de algumas rotas de comércio que podiam suprir amplas áreas do País e, também, a continuação de alguns setores que já existiam, como a criação de mulas, cuja importância no desenvolvimento da produção cafeeira não pode ser suficientemente enfatizada.

Ademais, a produção de café difere da maioria das demais safras tropicais, no sentido de que é uma cultura permanente, ao, invés de anual ou temporária. Exige uma quantidade muito maior de investimentos fixos do que outras culturas em seus estágios iniciais, já que o cafeeiro leva quatro anos para iniciar a produção. Por outro lado, uma vez iniciada a vida produtiva do cafeeiro, ele tem um custo variável mais baixo.

Este tipo de estrutura de produção torna mais provável o aparecimento de uma configuração de produção itinerante, já que os fatores de produção - neste caso, especialmente a força de trabalho escravo - se tomam superabundantes e são utilizados abaixo da capacidade, uma vez completos os estágios iniciais de produção. O resultado desta configuração itinerante foi a busca constante de novas terras, para a produção de café, que proporcionassem maior produtividade do que os antigos locais, melhorando o resultado econômico das plantações. Por onde o café passou, deixou atrás um sistema de ocupação da terra baseado em pequenas propriedades já desmatadas, o que constitui uma característica favorável, no que tange aos encadeamentos renda-consumo. Este resultado foi obtido nas áreas açucareiras do Nordeste, onde as plantações assumiram fortes características de enclaves estáticos de grandes dimensões, ocupando a maior parte da terra produtiva.

Uma outra característica importante da produção de café é que se trata de um produto de baixo valor por peso unitário, quando comparado a ouro ou diamantes. Como tal, é volumoso e exige para sua produção eficiente um bom sistema de transporte, que não era exigido, por exemplo, na produção de ouro no século XVIII, já que os metais e pedras preciosas podiam ser facilmente transportados até mesmo por caminhos primitivos e rudimentares. Assim, uma conseqüência importante do ciclo do café foi o impulso que deu à construção de estradas e, posteriormente, às ferrovias.

Não obstante, o café tem um valor mais alto por peso unitário do que outros produtos tropicais, como o açúcar de cana ou o algodão. Por que, então, devia gerar mais fortes encadeamentos retroativos no setor de transportes? A razão é que o açúcar, por exemplo, é adequado para a produção a baixas altitudes. Por isso, concentrou-se nas áreas costeiras do País, minimizando a necessidade de transporte terrestre. O café, porém, exigia produção a altitudes mais elevadas no interior do País. 

Estas duas características da função de produção do café, sua dispersão geográfica e sua necessidade de um sistema eficiente de transporte, foram importantes na construção das ferrovias brasileiras. Na verdade, foi o setor cafeeiro que proporcionou a justificação econômica para sua existência e, com efeito, o transporte do café foi seu objetivo principal.

A primeira estrada de ferro no Brasil, ligando o Rio de Janeiro a Petrópolis, foi inaugurada em 1854 pelo Visconde de Mauá, o mais importante industrial e financista do século XIX.Em 1855, foi seguida pelo início da construção da ferrovia D. Pedro II, ligando o Rio de Janeiro às regiões cafeeiras do Vale do Paraíba e, por fim, fazendo conexão com São Paulo. Em 1866, Santos, um importante porto marítimo para as exportações de café de São Paulo, foi ligado aos planaltos de Jundiaí e, com a expansão do café para o oeste de São Paulo, depois de 1870, a construção ferroviária atingiu um nível febril de atividade.

Em seus estágios iniciais, a construção de estrada de ferro tinha de confiar no entusiasmo e talento empresarial de homens como Mauá e no influxo de capital britânico; em seus estágios posteriores, os planos foram executados com capital dos grandes fazendeiros de café, ávidos de ligar suas propriedades à mais próxima linha de estrada de ferro. Desse modo, a construção ferroviária teve enorme impulso, atingindo todas as direções em que havia fazendas de café. Esta expansão foi particularmente grande no último quartel do século.

Mas a contribuição do setor cafeeiro ao desenvolvimento econômico do Brasil não cessou aí. Proporcionou uma fonte importante de encadeamentos para trás tanto no setor agrícola como industrial, particularmente na indústria de bens de capital. A produção de juta e a indústria têxtil de juta, produtores de sacas para a manipulação e transporte de café, aumentaram muito. Da mesma forma, foram feitos investimentos nas indústrias produtoras de máquinas de processamento de café, ferro e oficinas mecânicas que, em conjunto, excluindo os têxteis, representavam o setor industrial mais importante que nascia no Brasil do século XIX.

A elite do café era diferente da elite do açúcar. Não havia desenvolvido a "mentalidade de rentier" na mesma extensão que a aristocracia nortista. Conquanto a propriedade de terras e escravos ainda fosse um símbolo de prestígio social e a garantia de um estilo de vida tipo grand seigneur, os "barões" do café eram muito mais motivados por objetivos capitalistas, como lucro e acumulação de capital, do que seus iguais do açúcar. Como já vimos, a nova classe social tinha suas origens nos homens que faziam prospecção de ouro em Minas Gerais e que abriram novas áreas para produção, quando o café se tornou lucrativo. Especialmente depois de 1780, quando o café se disseminou mais profundamente no Estado de São Paulo, esta classe foi ainda mais fortalecida pelos paulistas que foram realmente os responsáveis pelo grande sucesso do ciclo do café. Sua crescente responsividade às condições do mercado, sua familiarização com a abertura de novas fronteiras e sua capacidade para realocar recursos foram fatores importantes na geração e assimilação de efeitos-difusão originados por este novo produto principal de exportação.

Finalmente, deve-se mencionar o encadeamento renda-consumo criado pelo setor cafeeiro. Vimos acima que a distribuição concentrada da renda induzida pela escravidão tende a estreitar o mercado para produtos domésticos, dessa forma. limitando os efeitos multiplicadores de renda através de uma mais alta propensão a importar. Contudo, no setor cafeeiro do Brasil, os eventos levaram à direção oposta. Em outras palavras, durante , o século ocorreu um processo de redistribuição de renda em favor da mão-de-obra, através de aumentos de salários reais. As causas deste Desde o Tratado de 1810 a Inglaterra vinha exercendo forte pressão sobre o Brasil para terminar o tráfico de escravos e, finalmente, abolir a escravidão. A pressão se intensificou constantemente e, embora o Brasil resistisse e as importações de escravos continuassem sem alteração, por volta de 1850 o governo já não podia mais ignorar o problema.

A interrupção do tráfico de escravos criou grande escassez de mão-deobra nas regiões cafeeiras que se expandiam, a qual foi temporariamente resolvida pela relocalização crescente da força de trabalho escravo do Nordeste para o Sul do País. Ao mesmo tempo, começou a ser aproveitada uma nova fonte de mão-de-obra - a migração da Europa.

Já no tempo de D. João VI o governo tinha feito tentativas de colonização com planos subsidiados pelo governo. Estas tentativas foram continuadas ininterruptamente nos Estados mais ao sul do Brasil, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Contudo, foram os esquemas de imigração relacionados às regiões cafeeiras que tiveram grande impacto na economia do Brasil. Diferiam dos esque. mas oficiais de colonização, no sentido de que os imigrantes eram trabalhadores assalariados nas plantações de café e não pequenos fazendeiros em colônias subsidiadas.

As primeiras tentativas nesse sentido foram feitas pelo senador Vergueiro que, no período de 1847 a 1857, estabeleceu em suas plantações 177 famílias alemãs, suíças, belgas e portuguesas. Não se tratava de migração espontânea,. mas sim planejada e financiada pelo próprio plantador. Este exemplo foi logo imitado por muitos outros, porém estas primeiras tentativas muitas vezes foram. prejudicadas por uma série de obstáculos e complicações. A partir de 1870, depois de alguns conflitos entre os plantadores de São Paulo e as forças mais conservadoras, representando as áreas açucareiras na velha zona do café no Vale do Paraíba, que ainda controlavam o governo central, teve início um movimento de imigração maciça. Financiados pelo governo, ou diretamente pelo plantador, eram trazidos trabalhadores da Europa como indentured servants, no sentido de que deviam pagar de volta ao plantador as despesas incorridas por ele no transporte da Europa.

O efeito da crescente dependência dos trabalhadores assalariados, à medida que a escravidão vagarosamente entrava em colapso, foi aumentar o potencial do setor cafeeiro, através da redução de desembolsos imobilizados em escravos, bem como elevar o potencial do mercado interno. Como podemos ver, o número de imigrantes entrando no Brasil de 1820 a 1900 vai além de 2.000.000, sendo que São Paulo sozinho recebeu, nos últimos vinte e cinco anos do século, 803.000 imigrantes, dos quais 577.000 eram de origem italiana. A magnitude do fluxo da população pode ser aquilatada levando-se em conta o fato de que, em 1872, a população brasileira era de 9.930.478 habitantes dos quais 1.510.806 eram escravos.

Além do crescimento de um mercado interno originado pela mão-de-obra assalariada, a abolição da escravidão em 1888 reforçou esse mercado por ter causado uma elevação na taxa do salário real.

A abolição da escravidão pode ter dois efeitos extremos na repartição de renda: os salários reais podem aumentar se, em resultado da abolição, a curva de oferta da mão-de-obra se tornar de inclinação positiva, interceptando o eixo dos salários ao nível de salário de subsistência que, em um sistema de escravidão, é o nível em que se localiza a curva horizontal da oferta; ou, então, a curva horizontal anterior da oferta pode não se alterar absolutamente em resultado da abolição da escravidão.

Pode surgir a segunda situação se a força de trabalho, que se tornou livre, não encontrar vida alternativa e se vir forçada a permanecer no mesmo trabalho, embora agora receba um pagamento equivalente a seu nível de subsistência anterior. O primeiro caso, porém, surge em situações em que o escravo liberto pode encontrar trabalho alternativo a salários mais altos que os de subsistência (como, por exemplo, emigrando para as cidades), ou pode dedicar-se ao cultivo de subsistência em terras marginais.

Furtado sugere que em São Paulo ocorreu uma mescla do primeiro e segundo efeitos, de modo que os salários reais aumentaram em resultado da abolição. Efetivamente, do que vimos acima, a característica itinerante da plantação de café deixou atrás de si solos abundantes, embora exaustos, para os quais os ex-escravos podiam retirar-se e ter um padrão de vida de subsistência.

Em conclusão, o setor cafeeiro contribuiu significantemente para a ampliação do mercado interno, por ter estabelecido fluxos de imigração e por ter sido capaz de elevar os salários reais dos trabalhadores.

Levando em conta tudo quanto foi mencionado acima, não causa grande supresa que a industrialização do Brasil começou e se desenvolveu concomitantemente com a rápida expansão do café. É para o setor industrial que agora voltamos nossa atenção.

Em 1844, quando entrou em vigor a Tarifa Alves Branco, foi dada uma certa proteção ao setor manufatureiro local. Ao invés da tarifa geral de 15%, que prevalecia desde 1810, a tarifa nominal média agora tinha sido elevada para 30%, sendo alguns produtos tributados até 60%. Este fato conduziu a um surto industrial, especialmente na indústria têxtil de algodão, que iria tornar-se o mais importante setor manufatureiro do Brasil, primeiramente na Bahia e mais tarde na área São Paulo/Rio.

Além disso, a proibição do tráfico de escravos em 1850 teve dois efeitos importantes na industrialização brasileira. Primeiro, melhoraram as relações diplomáticas do Brasil com a Inglaterra, o que facilitou e encorajou o influxo direto de investimento britânico. Em segundo lugar, desempatou uma grande quantidade de capital que anteriormente estava empregado no tráfico de escravos que, na época, era o negócio não-agrícola mais importante no Brasil. O resultado foi uma grande diversificação no perfil de investimento no Brasil, incluindo comércio, indústria, serviços bancários, ferrovias, mineração, colonização, seguro e serviços de utilidade pública.

Este período foi importante na História Econômica do Brasil porque deu a oportunidade para o nascimento de moderno e agressivo espírito empresarial, exemplificado por homens como Mauá, Otoni, Mariano Procópio e outros. Uma barreira de proteção tarifária mais a possibilidade de dispor de fundos inversíveis foi tudo quanto estes homens necessitaram para tomar em suas mãos o destino econômico da Nação.

Em resultado destes eventos favoráveis, em 1850, o Brasil tinha 72 fábricas empenhadas na produção de chapéus, velas, sabão, cerveja, cigarros e produtos têxteis de algodão. Entre 1850 e 1860, o nível de atividade empresarial foi grandemente acelerado. Neste período, surgiram 62 indústrias, 14 bancos, 3 caixas econômicas, 20 empresas de navegação, 23 companhias de seguros, 4 empresas de colonização, 8 de mineração, 3 de transportes urbanos, 2 de gás e 8 ferrovias. Foi um período agitado, durante o qual o Brasil fez suas primeiras tentativas no moderno capitalismo industrial. Infelizmente, grande parte deste dinamismo baseava-se em razões puramente especulativas que não podiam fazer frente às taxas de inflação resultantes, ou aos reflexos da depressão importada que causaram as crises de 1857 e 1864. Acresce a isso que a Guerra do Paraguai de 1865-1870 tornou-se um desastre financeiro e deve ter limitado seriamente as possibilidades de apoio governamental a estas empresas pioneiras. Conquanto disposto a prover certo apoio a novas empresas, o governo não proporcionou o suporte necessário, ou cooperação, quando surgiram dificuldades.

Apesar de tudo isso, o surto industrial recomeçou pouco depois de 1870. A década seguinte preparou uma base mais sólida para industrialização ulterior, por fortalecer a posição e a disponibilidade de intermediários. financeiros como bancos, empresas de seguros e o mercado de títulos, tão importantes no processo de acumulação de capital. Em 1880, o Brasil estava pronto para seu "grande surto" de industrialização.

Entre 1881 e 1889, este o ano da abolição do regime monárquico, o número de empresas industriais tinha aumentado de 200 para 600, empregando 54.169 trabalhadores. Pelo final deste período, compreendia um capital de £25 milhões, distribuído da seguinte maneira: 60% em têxteis, 15% em produtos alimentícios, 10% em produtos químicos, 4% em produtos de madeira, 3,5% na indústria de roupas e 3% em metalurgia. Entre 1890 e 1895, foram fundadas mais 452 empresas com um capital de aproximadamente £15 milhões e, em 1907, quando houve o primeiro censo, este número tinha aumentado para 3.250, empregando 150.841 trabalhadores.


Infelizmente não há muitos dados sobre a produção industrial do Brasil no século XIX. Mesmo assim, poderíamos, experimentalmente, estimar que o primeiro grande surto de produção industrial brasileira ocorreu entre a década de 1880 e os primeiros cinco anos do século XX. Esta estimativa pode ser apoiada por dados sobre o volume de produção da indústria têxtil que era, muito acima das demais, o maior componente da produção industrial brasileira.

Como podemos depreender dos dados acima, o período de 1885-1910 mostrou uma taxa de crescimento consideravelmente maior, na indústria têxtil, do que o período de 1844-1866. Os dados que vêm a seguir contêm informação quanto às taxas de crescimento de 1866 a 1915. Como podemos observar, o período 1885-1905 foi quando a indústria atingiu a sua mais alta taxa de crescimento durante o século XIX e primeiros cinco anos do século XX. Levando em conta o peso da indústria têxtil no setor manufatureiro, poderíamos concluir, experimentalmente, que foi nas duas ou três últimas décadas do século XIX que o Brasil atingiu um estado de industrialização que o manteria na trilha do crescimento auto-sustentado.

Devem ser feitas algumas observações sobre o papel do Estado nesse processo. Já vimos a importância das tarifas de 1844 nos primeiros esforços para a industrialização. Igualmente realçamos o apoio proporcionado pelo governo central, ou local, no encorajamento da imigração e na construção de estradas de ferro - dois aspectos importantes na industrialização do País. Leff, por exemplo, julga que o governo proporcionou um ambiente adequado à industrialização na segunda metade do século XIX, "porque durante este período a indústria brasileira tinha substancial proteção tarifária".


O fato, porém, é que a ação governamental foi deficiente, errática e, por vezes, altamente prejudicial à causa da industrialização. Vimos como falhou em desempenhar uma função estabilizadora, ou anticíclica, em muitos casos importantes, embora, como veremos no capítulo seguinte, tenha contribuído enormemente para viabilizar o processo de investimentos industriais e de infraestrutura.

A política aduaneira era extremamente errática. Embora Leff estivesse certo em dizer que as tarifas de 1844, 1874, 1879 e 1900 deram alguma proteção à indústria doméstica, por manter as tarifas nominais entre 30% e 80%, devemos atentar para as tarifas de 1857 e 1860 que reduziram significativamente as taxas de proteção, assim como as reformas tarifárias de 1869, 1880, 1881, 1887 e 1889, para mencionar apenas as mais importantes, que muitas vezes elevavam algumas alíquotas e baixavam outras, dependendo das circunstâncias políticas da época. Tal política errática pode ser extremamente prejudicial ao desenvolvimento industrial, já que os aumentos e reduções de tarifa não têm efeitos simétricos sobre a taxa de crescimento do volume de produção industrial. Uma redução tarifária pode matar uma indústria e nenhuma inversão de tal política pode revivê-la com a mesma facilidade com que foi extinta. A indústria metalúrgica de Mauá, que, por fim, foi extinta .pela Tarifa Silva Ferraz, de 1860, é um exemplo eloqüente dos efeitos nocivos da falta de uma política industrial coerente. Stein, referindo-se à indústria têxtil, escreveu que "dentro dos poucos anos da tarifa (protetória de 1879), os livres comerciantes conseguiram diminuir seus princípios protecionistas, é a indústria teve de esperar até 1897 para obter proteção adequada". Realmente, foi somente com o regime republicano que se implantou uma política protecionista deliberada. Até então, não fosse pelos constantes défcits orçamentários do governo, a política tarifária provavelmente teria sido ainda mais liberal.237

Mas, na realidade, isto não deve causar surpresa. O núcleo do problema está no fato de que o País ainda era dominado, sob todos os aspectos, pela aristocracia rural que não demonstrava interesse imediato pelo setor secundário. Apesar do crescimento da burguesia urbana, os grandes proprietários de terras, primeiramente os produtores de açúcar e os "velhos" plantadores de café e, mais tarde, os proprietários de novas plantações em São Paulo, ainda controlavam o processo político. Era de seu interesse manter uma polí.tica liberal, consermando baixos; os preços de importação, o que justificavam mencionando o alto custo de vida induzido por altos preços de produtos importados, pelos altos custos de produção de sucedâneos, ou, ainda, alegando que a industrialização iria competir com o setor cafeeiro, que era o que criava riqueza, no que dizia respeito a capital e outros recursos.

O problema da falta de uma política industrial adequada, no Brasil, foi uma fonte de conflito entre a aristocracia rural e, às vezes, interesses comerciais, de um lado, e, do outro, os industriais. Foi somente com o aparecimento de líderes industriais como Felício dos Santos, Amaro Cavalcanti, Serzedelo Corrêa e outros que a causa do intervencionismo em favor de uma política industrial teve sucesso à volta do século.

No todo, porém, o surto industrial do século XIX que ocorreu no Brasil coexistiu de modo geral com uma política de livre comércio caracterizada por proteção inadequada. Embora isto provavelmente tenha diminuído a rapidez da industrialização, indiretamente foi responsável por alguns efeitos favoráveis sobre o índice de crescimento industrial, via criação de um forte e dinâmico setor cafeeiro que, como vimos, estava na base de todo o fenômeno econômico que ocorria na segunda metade do século XIX. A realização de que a industrialização ocorreu a despeito de muitos efeitos adversos, tais como política governamental inadequada, falta de combustíveis adequados e muitas outras condições menos do que apropriadas, indica a grande relevância da abordagem do produto principal nos anos iniciais do crescimento industrial no Brasil. Apesar de não ser obviamente o único fator relevante, a existência de um produto principal de exportação constitui, com certeza, a condição mais importante para o êxito dos primeiros passos na trilha industrial.

Além da importância do setor cafeeiro na criação de um excedente econômico, gerando um mercado, encorajando a construção ferroviária e originando importantes encadeamentos de produção, foi de tal setor que emanou a maior parte da formação de capital industrial no Brasil-século XIX.

Ignorando os influxos 'líquidos de capital associados à vinda da corte portuguesa para o Brasil,242 podem ser identificadas três fontes importantes de capital industrial: primeira, o capital liberado do tráfico de escravos após 1850; segunda, capital vindo diretamente do setor agrícola, particularmente do cafeeiro; terceira, capital estrangeiro.

Já vimos como foi importante a contribuição do capital liberado do tráfico de escravos durante a primeira onda industrial das décadas de 1850 e 1860. 0 que a esta altura deve ser enfatizado é que tal concentração de capital foi causada pela crescente importância do setor cafeeiro, que reativou o tráfico de escravos em decorrência da escassez de mão-de-obra no Sul. Foi do setor cafeeiro que o capital foi canalizado para o tráfico de escravos e, depois, para as empresas industriais e financeiras.

Porém, algum capital industrial também veio diretamente do setor do café e, em menor extensão, de outros setores agrícolas. "É possível que a disponibilidade de capital previamente acumulado no setor agrícola e empregado na indústria, em resultado da queda de-preços, particularmente do café e do açúcar, tenha contribuído muito pára a expáñsão industrial após a década de 1870. Quanto à indústria têxtil, Stein declara que "além do estímulo das tarifas, a acumulação anterior de capital em anos precedentes de prosperidade agrícola foi um fator decisivo".

Finalmente, o capital externo, como investimento estrangeiro direto, ou como empréstimos governamentais, pôde ser obtido em grandes montantes somente em resultado da alta posição de crédito desfrutada pelo Brasil, em conseqüência de sua expansão rápida na produção de café. Não seria exagero afirmar, neste ponto, que a vida econômica do Brasil, durante o segundo império e a primeira república, centralizouse totalmente no grande produto principal exportável - o café. Neste setor é que devemos buscar a origem de todos os fenômenos econômicos que ocorreram durante os primeiros anos do desenvolvimento industrial do Brasil.

Em conseqüência dos crescentes interesses britânicos no Brasil, desde sua integração no sistema capitalista industrial, devemos procurar avaliar qual foi o papel da Grã-Bretanha na promoção de mudanças no País.

Os britânicos tiveram influências opostas no processo de modernização e industrialização do Brasil. Seus interesses no setor cafeeiro e no comércio exterior impediram, muitas vezes, a adoção de políticas governamentais mais eficazes para o crescimento do setor manufatureiro. Muitas vezes estiveram ao lado dos interesses brasileiros que se opunham ao protecionismo, ao apoio governamental à indústria, à reforma agrária e assim por diante. Por intermédio de suas grandes e importantes contribuições à navegação, seguros, comércio, portos e ferrovias, todos setores importantes em conexão com a exportação de café, possibilitaram o desenvolvimento de um sistema econômico que dependia pesadamente de um único produto agrícola - com todas as inconveniências que fluem de tal configuração de monocultura. Além disso, em resultado de sua disposição de oferecer empréstimos e investimento direto de capital no Brasil, geraram um padrão de dependência financeira e tecnológica que, sendo habitualmente soluções de curto prazo para problemas prementes, impediram ação mais forte que visasse à sua solução a longo prazo.

Por outro lado, foi em grande parte em decorrência de sua contribuição que o setor cafeeiro pôde desenvolver e gerar condições para industrialização. Os britânicos participaram em todos os estágios da coleta e distribuição de café, do transporte aos serviços bancários e ao seguro.

Também proporcionaram capital para algumas importantes manufaturas, como têxteis, calçados e usinas para o processamento de açúcar. E mais, proporcionaram técnicos, suprimentos e sua tecnologia para a maioria das empresas manufatureiras. Sua atividade em infra-estrutura possibilitou o aumento no processo de urbanização e, juntamente com este, a introdução de novas idéias, cujos resultados foram homens como Mauá, Prado, São Vicente e muitos outros. Finalmente, sua influência no colapso do sistema escravocrata, posto que não intencional, constitui um outro exemplo das forças da mudança ocasionadas pela integração do Brasil no sistema capitalista industrial.

Ao mesmo tempo em que colocava seus braços fortes e exploradores ao redor do Brasil, a Grã-Bretanha foi forçada a modernizá-lo em benefício do intercâmbio econômico. "Os britânicos tinham feito muito para ocasionar o estabelecimento da modernização, embora também tivessem dado algum apoio às forças que se opunham a isso. Atuando sem altruísmo ou malícia, mas impelidos pelas ambições e desejos instilados por sua sociedade modernizante, os britânicos desempenharam uma grande parte em iniciar a mudança no Brasil."

À conclusão deste trabalho, devem ser feitas algumas observações sobre os conceitos de desenvolvimento e industrialização.

Até muito recentemente acreditava-se, geralmente, que o processo de industrialização conduzia ao desenvolvimento econômico. Neste trabalho, estes dois termos foram usados quase intercambiavelmente. Por conseguinte, deve parecer paradoxal que venhamos falando de uma industrialização auto-sustentada com cem anos de idade, em um país que atualmente se acha colocado entre as fileiras dos países subdesenvolvidos do mundo.

O fato, porém, é que nos dias atuais o Brasil é um país industrializado, apesar de seu subdesenvolvimento, o que tem levado muitos economistas a questionar a trilha da industrialização para a consecução de desenvolvimento econômico.

Usando as palavras de Furtado, o aparecimento de um

"subdesenvolvimento industrializado" é. um fenômeno relativamente novo na literatura econômica. Será que este fato, de um modo ou de outro, menospreza a importância da abordagem do produto principal em rastrear a origem do processo de crescimento e desenvolvimento econômicos?

Amiúde, o Brasil tem sido citado como um exemplo clássico da falha de um produto principal exportável na obtenção de desenvolvimento econômico. O fato, porém, é que o Brasil do século XIX estava claramente separado em dois sistemas economicamente distintos - as regiões cafeeiras Rio-Minas-São Paulo (e incluiríamos neste sistema econômico os demais Estados sulinos) e o resto do

Brasil.

Levando em consideração o País inteiro, poderíamos justificar a falta de desenvolvimento econômico generalizado, observando que o crescimento de exportação per capita foi baixo no Brasil do século XIX. Foi estimado em 2,2% ao ano. Outrossim, a taxa de crescimento de valor per capita das exportações, dividida por um índice de preços de importação, para o período de 1850-1896 - os anos cruciais para o início industrial do Brasil -, foi estimada. tão baixo quanto 1,6% ao ano. Nestas condições, o caso brasileiro realmente não justifica o uso da abordagem do produto principal para o entendimento de seu processo de industrialização. Por conseguinte, o problema com o caso do Brasil é que não devemos realmente agregar dois sistemas econômicos, já que em um as exportações per capita estavam crescendo velozmente, ao passo que no outro estagnavam ou até mesmo declinavam.251 Com efeito, se desagregarmos o País, veremos que o Sudeste demonstrou notável surto de progresso e desenvolvimento econômico, a partir da metade do último século, especialmente no Estado de São Paulo.

Em uma interessante análise dos níveis de renda no Brasil do século XIX, Furtado nos proporciona uma outra explicação para o paradoxo do "subdesenvolvimento industrializado". Estima que, entre 1850 e 1900, a renda per capita do Brasil cresceu cerca de 1,5% ao ano, que ele diz ser uma cifra relativamente alta para a época.253 Se o Brasil tivesse crescido a esta mesma taxa per capita de 1,5% ao ano durante o século XIX, ao invés de sofrer estagnação nos níveis de renda per capita na primeira metade do século, e iniciado com uma cifra conservadora de 50 dólares per capita (no poder aquisitivo de 1868), o Brasil teria alcançado uma renda per capita de US$224 à volta do século, e não os US$106 realmente estimados. Se de 1900 a 1950 - continua o autor - o Brasil tivesse crescido à mesma taxa conservadora de 1,5% ao ano, o País teria atingido uma renda per capita de cerca de US$500, comparável à renda média da Europa Ocidental para o mesmo ano.

CAPÍTULO 3: A INFLUÊNCIA DA AGRICULTURA E DO ESTADO NA INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA

Introdução

No Capítulo I de nosso trabalho afirmamos que a evidência empírica para os países que se industrializaram nos séculos XVIII e XIX parecia ser concludente com relação ao problema "desenvolvimento agrícola-desenvolvimento industrial". Efetivamente a evidência histórica parece indicar que foi necessário que ocorresse primeiro uma grande transformação na agricultura para que, a seguir, pudesse acontecer a revolução industrial.

Nossa evidência empírica encontra forte apoio teórico na visão ricardiana do desenvolvimento econômico. Para Ricardo, como vimos no Capítulo I, sem um setor agrícola em desenvolvimento, as possibilidades de um desenvolvimento ininterrupto no setor industrial seriam nulas. Poderíamos criticar tal visão como sendo o produto de condições especIficas do século XIX e que não se aplicaria aos nossos dias. Mas, o importante a frisar com relação à visão ricardiana é que, do ponto de vista lógico, isto é, de teoria pura, sua argumentação parece impecável, fato este que leva vários economistas contemporâneos a adotarem uma posição ricardiana diante do desenvolvimento agrícolaindustrial.

Apresentamos a visão de Mellor como típica dessa corrente de economistas neoricardianos. Para este autor, o desenvolvimento agrícola e o industrial estariam intimamente ligados de tal forma que só consegue explicar o desenvolvimento industrial a partir do desenvolvimento agrícola (fase 11 de seu esquema faseológico). Mellor não chega a explicar os fatores que levam à introdução de inovações na agricultura, de forma a permitir que essa entre em sua segunda fase.

Na realidade, boa parte dos economistas que se preocupam com o desenvolvimento econômico é omissa com relação a este aspecto. Quando não são totalmente omissos, as explicações dadas são apenas parciais. Assim, Hodder, outro dos autores apresentados, aponta para certos fatores demográficos como sendo responsáveis por algumas dessas transformações. Sua analise, entretanto, não vai muito além da inclusão dos citados fatores demográficos entre as variáveis explicativas da transformação agrícola. Colin Clark e M. Haswell em sua obra sobre a agricultura de subsistência não vão muito além de Hodder ao apontarem para o fator demográfico como uma das variáveis mais importantes nessa transformação. É bem verdade que adicionaram algumas outras como a abertura de mercados e o desenvolvimento dos transportes como possíveis variáveis explicatórias, mas não chegam a construir nenhuma teoria completa sobre o assunto.

A rigor, não precisamos preocupar-nos-com este aspecto teórico do assunto visto que o problema que nos propusemos a tentar resolver de início foi algo diferente. Acreditamos que o desenvolvimento industrial brasileiro, pelo menos em suas fases iniciais, ocorreu sem que houvesse qualquer coisa que se aproximasse de uma "revolução agrícola" (entendida como o resultado de inovação tecnológica). O problema proposto, portanto, é de como seria possível ocorrer uma industrialização com uma agricultura em estagnação, ou semi-estagnação? Em outras palavras, existiria alguma exceção à tese ricardiana? Apresentamos três autores que respondem a esta pergunta com um sim condicional.

Lewis bem como Ranis & Fei apontam para certas economias que seriam capazes de desenvolver parcialmente um setor industrial se tiverem um excedente de mão-de-obra.

Tivemos oportunidade de examinar algumas críticas teóricas que poderiam ser formuladas contra uma tal posição. Não obstante, acreditamos que a posição de Lewis do ponto de vista teórico é defensável se estivermos considerando pequenas propriedades

familiares.

O mesmo, entretanto, já não podemos falar acerca da visão de Ranis & Fei. Como tivemos oportunidade de observar anteriormente, enquanto Lewis tinha em mente uma agricultura baseada em pequenas propriedades familiares, Ranis & Fei tomaram como ponto de partida uma agricultura de grandes propriedades. Com tal estrutura fundiária, não acreditamos nem mesmo na possibilidade teórica de termos um excedente de mão-de-obra numa economia capitalista.

Quanto ao aspecto empírico de se existe ou já existiu alguma economia com excedente de mão-de-obra, há um bom número de trabalhos que aborda o assunto. Não d necessário debatermos o problema visto que no caso brasileiro, que e o que nos interessa explicar, a estrutura fundiária de grandes propriedades impediria o aparecimento de mão-de-obra supérflua na agricultura.

Assim, pareceria que voltamos à estaca zero. Acreditamos, em alguns casos, ser possível o desenvolvimento de um setor industrial, pelo menos parcialmente, se existir mão-de-obra excedente. Mas, no caso do Brasil, esse excedente não parece ter existido. Como então explicar o início de nossa industrialização?

A resposta a esta pergunta talvez seja encontrada no modelo de Hymer & Resnick. Acreditamos que este último, um pouco mais elaborado, possa fornecer-nos o que estamos procurando. Basicamente o que estes dois autores enfatizam é que na agricultura, especialmente em seus estágios iniciais, nunca encontramos toda a mão-de-obra dedicada aos afazeres ditos agrícolas. Parte de seu tempo é alocada ao artesanato, às atividades religiosas, e, mesmo, ao lazer. A evidência empírica é substancial quanto a esse aspecto. A Tabela 1, a seguir, nos dá uma idéia da distribuição das horas disponíveis por pequenos agricultores, na Rússia, no início do século.

Para economias primitivas, o tempo empregado em outras atividades pelos agricultores que não as propriamente agrícolas parece ser ainda maior que o para a Rússia do início do século. A Tabela 2 nos fornece a distribuição do tempo disponível para a tribo dos Toupourri, do norte dos Camarões.

Podemos observar a partir da tabela acima que não somente o tempo alocado a outras atividades pode ser grande como o tempo dedicado ao ócio pode ter importância razoável em certas sociedades.

A partir destas observações podemos começar a elaborar nossa estrutura teórica. Podemos supor que quanto mais atrasada uma sociedade, tanto mais autosuficientes deverão ser suas unidades econômicas. Assim, no limite, isto é, na ausência de um sistema de mercado, as unidades econômicas deverão produzir quase tudo que consomem. A unidade econômica variará de acordo com o tempo e a sociedade em questão, podendo ser uma família camponesa como na Rússia do início do século, ou uma tribo do norte dos Camarões de nossos dias, ou ainda, mesmo, uma fazenda brasileira em meados do século passado. O importante a observar é que essas unidades isoladas de um mercado devem produzir quase tudo que consomem. Aquilo que obtêm de fora o fazem através de contatos esporádicos ou muitas vezes só a custos extremamente elevados. Assim, não é de se estranhar que em sociedades onde a estrutura de mercado, por qualquer motivo que seja (talvez, devido à ausência de transportes ou, talvez, devido à falta de segurança política), não esteja muito desenvolvida, as unidades agrícolas se dediquem a afazeres não estritamente agrícolas. E, também, não é de se estranhar que nessas sociedades o ócio possa absorver boa parte do tempo dos trabalhadores. Suponhamos que uma unidade econômica nessas circunstâncias já tivesse produzido tudo que precisava para satisfazer suas necessidades básicas e que houvesse a possibilidade de expandir a produção agrícola de um produto, através de uma redução do tempo alocado ao ócio. Que incentivo poderia ter uma tal unidade para assim proceder, se com o excedente agrícola produzido nada poderiam fazer, isto é, não poderiam trocá-lo por nada visto inexistirem mercados onde essas trocas pudessem ser efetuadas?

Está claro que à medida que os mercados se desenvolvem surgem as possibilidades de troca e conseqüentemente a possibilidade de uma redução do tempo alocado ao ócio, bem como de uma maior especialização nas atividades mais produtivas. Para o setor agrícola acreditamos poder admitir, sem incorrermos no risco de ser contestados, que as atividades mais produtivas são as próprias atividades agrícolas. Assim, com o crescimento do mercado e a conseqüente especialização que este permitiria, haveria a tendência para o setor agrícola se dedicar cada vez mais às atividades propriamente agrícolas e abandonar as atividades artesanais.

Tal visão dos efeitos do crescimento do mercado não é defendida somente por economistas de formação "clássica" como Smith e Ricardo, como também por economistas de outras escolas. Lenin, por exemplo, cita extensamente Marx para mostrar que a divisão do trabalho é uma das pedras fundamentais do desenvolvimento do capitalismo. Em suas palavras: "... a divisão social do trabalho é a base de todo o processo de desenvolvimento da economia de produtos e do capitalismo".

Nosso modelo alternativo de desenvolvimento industrial deve resolver teoricamente todos os problemas apresentados pelos outros modelos. Em outras palavras, só podemos nos dar por satisfeitos do ponto de vista teórico se o modelo responder adequadamente a uma série de perguntas. Chamemos o nosso modelo de desenvolvimento industrial pela simples especialização. Pois bem, as perguntas que deve responder seriam as seguintes: primeiramente, a simples especialização criaria um mercado para produtos industriais? Em segundo lugar, forneceria a mão-de-obra para o setor emergente? Em terceiro lugar, forneceria a alimentação para essa mão-de-obra? Em quarto lugar, o problema de fornecimento de matériaprima para o nosso setor industrial seria resolvido? E, finalmente, de onde viria o capital para o novo setor?

Tentemos resolver esses problemas um a um. Vejamos primeiramente o problema do mercado. A especialização levaria ao aparecimento de um mercado para produtos industriais? Acreditamos que esta seja a pergunta mais fácil de responder. Vejamos por quê. Estamos partindo do pressuposto de que estamos frente a uma economia em que as unidades econômicas estão mais ou menos isoladas umas das outras e que, por conseguinte, tenham de ser razoavelmente auto-suficientes. Assim, no caso brasileiro, as fazendas no século passado fazian. seus próprios implementos agrícolas, seus utensílios domésticos (potes, vasilhames etc) e boa parte do que precisavam em termos de vestimentas (especialmente para a escravaria). Ora, se essa era a situação inicial, havendo especialização na produção de produtos agrícolas, essas atividades seriam abandonadas, criando-se, assim, um mercado para esses produtos que antes eram produzidos na própria fazenda. O agricultor em vez de produzi-los diretamente iria obtê-los no mercado em troca de produtos agrícolas.

O segundo problema - fornecimento da mão-de-obra - também não parece muito difícil de ser solucionado. Efetivamente, se partirmos do ponto de que a divisão do trabalho com a especialização dos agricultores na atividade agrícola aumenta a produtividade do sistema como um todo, isto significa que haveria mão-de-obra para as novas atividades fabris. Mesmo que a especialização não aumentasse a produtividade, poderíamos conceber a transferência das pessoas que antes executavam as tarefas artesanais no setor agrícola para o novo setor fabril, e, mesmo assim, com esse pressuposto mais restritivo, resolveríamos o problema da mão-de-obra. O problema seria ainda mais facilmente solucionado se em vez de pensarmos em termos de transferência de mão-de-obra, pensássemos em termos de um processo mais longo que resultaria do crescimento mais lento do emprego no setor agrícola em comparação com o do setor industrial. Isso se daria se uma proporção crescente dos novos integrantes da força de trabalho fosse absorvida pelo setor fabril em vez de o ser pela agricultura. Aqui surge um problema. Se houvesse uma transferência direta da mão-de-obra da agricultura para o setor fabril ou indireta através de taxas de absorção diferentes, como foi sugerido acima, isso não envolveria algum custo social? Devemos lembrar-nos que é na resposta a esta pergunta que se situa uma das maiores críticas ao modelo de Lewis. Não somos tão otimistas quanto Lewis a ponto de afirmar que a transferência se daria sem custos sociais. Acreditamos que tais mudanças envolvem custos sociais que são algumas vezes substanciais. Mas também afirmamos que se a especialização levar a um aumento na renda per capita da comunidade, estes custos sociais poderiam ser pagos sem grande dificuldade.

O terceiro problema, qual seja, se o nosso modelo forneceria a alimentação para a mão-de-obra fabril emergente, cremos que já foi solucionado na resposta à pergunta anterior. Se partirmos do pressuposto de que nossa situação inicial é uma onde parte da mão-de-obra do setor agrícola se dedica a atividades artesanais, é óbvio que esta mão-deobra deve estar sendo alimentada. Se transferíssemos essa mão-de-obra para o setor fabril, a produção agrícola em nada cairia e, dessa forma, não podemos ver como essa mão-de-obra poderia deixar de ser alimentada. As mesmas observações seriam validas para o problema da matéria-prima.

Quanto ao capital para o novo setor, aí o problema toma feições mais complexas. Poderíamos tentar resolver esse problema à la Lewis, afirmando que nas fases iniciais de desenvolvimento do setor fabril a maior parte das inversões seria na forma de obras de engenharia civil, onde a própria mão-de-obra se metamorfosearia em capital. Acreditamos ter mostrado quando da apresentação do modelo de Lewis que o problema não é tão simples assim. Mesmo que grande parte das inversões fosse em construção civil, ainda haveria uma parte correspondente às máquinas e equipamentos que forçosamente deveriam ser importados.

Assim, tínhamos mostrado na ocasião que para que o modelo funcionasse não bastaria somente a existência de um excedente de mão-de-obra, mas também um excedente agrícola exportável. Para seu funcionamento é necessário que o setor agrícola esteja exportando ou seja capaz de exportar produtos agrícolas. A análise baseada na "abordagem do produto principal", no capítulo anterior, demonstrou que o ciclo do café conseguiu gerar as condições básicas para o início do processo de industrialização.

Neste ponto poder-se-ia perguntar como seria possível a uma economia do tipo que descrevemos exportar? Partimos do pressuposto que a economia era atrasada provavelmente devido à dificuldade de comunicações, o que forçava suas unidades econômicas a serem auto-suficientes. Muito bem, como seria possível a uma economia nessas condições exportar? A existência de um setor exportador pressupõe algum meio de transporte razoavelmente eficiente para os produtos agrícolas chegarem até os portos.

Então como explicar o caso brasileiro? Como veremos adiante, em meados do século passado, as vias de transporte no Brasil eram das mais primitivas. Quase todo o transporte no interior do País se fazia no lombo de burros. Nestas condições, as unidades econômicas da época, isto é, as fazendas, eram quase que completamente autosuficientes. O que permitiu que o mercado se desenvolvesse, levando à especialização, ao aumento na produtividade (na ausência de novas técnicas agrícolas), à rápida acumulação de capital, ao desenvolvimento dos meios de transporte e a uma incipiente industrialização foi o fato que acabamos de apontar - o Brasil estava numa situação privilegiada quanto ao produto que podia exportar, o café, um produto de alto preço por unidade de peso. Foi este o elemento-chave que permitiu a quebra de nosso isolamento econômico e o início do desenvolvimento brasileiro.

Embora o desenvolvimento industrial pela simples especialização pareça viável e, segundo veremos oportunamente, corresponda aproximadamente à experiência brasileira, este não se processa automaticamente. É necessário que haja um agente para que este ocorra. O comércio internacional cria as condições para que a especialização possa processar-se e, através desta, o país sofra uma diversificação econômica. Mas a questão que se coloca é se estas condições serão aproveitadas. Para que tal aconteça é necessário a existência de agentes que percebam o aparecimento dessas oportunidades para transformações e decidam aproveitá-las.

No caso da venda de produtos agrícolas para o mercado internacional, podemos admitir que num país onde a agricultura estivesse nas mãos de grandes proprietários preocupados em fazer lucros, como seria o caso brasileiro, os próprios proprietários se encarregariam de realizar as transformações no setor agrícola. Em outras palavras, quanto à especialização na agricultura, os agentes, no caso, seriam os próprios fazendeiros.

Não podemos dizer o mesmo com relação às transformações em outros setores. O comércio internacional abre perspectivas para a diversificação de toda a estrutura econômica de um país e não só de um maior "desenvolvimento" agá,cola, como amplamente demonstrado no capítulo anterior. Ocorre que quanto aos outros setores que poderiam diversificar ou, mesmo, surgir, como subproduto das oportunidades que o comércio internacional abriria, provavelmente não o farão através da atuação dos fazendeiros. Não precisamos, necessariamente, acreditar na miopia empresarial como proposta por Hirschman para que concordemos com essa formulação. Basta lembrarmos que num país tecnologicamente atrasado com relação a outros, novas áreas ou setores só se desenvolverão à custa da absorção de novos conhecimentos técnicos e com adequado apoio financeiro. Em outras palavras, o agente das transformações econômicas, ou seja, o empresário, necessitaria, como na visão de Schumpeter, de recursos financeiros e conhecimentos técnicos adequados. Convém observar que a existência de amplos recursos nas mãos de um empresário poderia, até certo ponto, compensar a carência de conhecimentos tecnológicos, visto que com os recursos financeiros disponíveis poderia importar as máquinas e os técnicos necessários à implantação de um novo setor. O que gostaríamos de enfatizar é que a carência de conhecimentos tecnológicos só seria compensada com um acréscimo nos recursos financeiros. Assim, se tivermos dois empresários A e B, sendo que A dispõe de conhecimentos tecnológicos e de recursos financeiros para a implantação de um empreendimento "novo" Z, e B não dispõe dos conhecimentos para a implantação de Z; B só poderia fazê-lo se dispusesse de recursos financeiros superiores aos de A. Esperaríamos que quanto mais sofisticado, tecnicamente, o processo envolvido no empreendimento Z, tanto maior deverá ser o adicional de recursos financeiros de que B deverá dispor para poder suprir sua deficiência de conhecimentos tecnológicos.

Ora, acreditamos que os fazendeiros não seriam o grupo melhor colocado para desenvolver os novos setores visto que, em comparação com outros grupos da sociedade que poderiam agir. como os empresários destes novos setores, os fazendeiros estariam mal colocados tanto em relação à falta de conhecimentos técnicos como também devido à falta de recursos financeiros líquidos suficientemente amplos. Assim, esperaríamos que os novos setores não fossem desenvolvidos pelos fazendeiros mas por outros grupos melhor preparados para tal. Não queremos dizer com isto que os fazendeiros não teriam nenhuma participação no processo de diversificação dos outros setores mas que, provavelmente, esse papel seria reduzido quando confrontado com o de outros grupos. Esses outros grupos a que estamos fazendo alusão seriam: a) empresários estrangeiros, b) empresários nacionais detentores de conhecimentos técnicos e/ou recursos financeiros adequados para desenvolver novos setores e c) o Estado.

Quanto aos empresários estrangeiros, especialmente os britânicos no século passado, eles estariam idealmente preparados para desenvolver os setores mais modernos pois não somente seriam os detentores dos conhecimentos tecnológicos como disporiam de recursos financeiros adequados para o desenvolvimento de tais setores. Quanto aos empresários nacionais, acreditamos que estariam preparados a desenvolver setores de tecnologia menos sofisticada e que demandassem um empate financeiro mais modesto. Enquanto o Estado, devido à massa de recursos financeiros à sua disposição, poderia desenvolver qualquer área que lhe aprouvesse.

A Agricultura no Período 1850-1930:

A Inexistência de uma Revolução Agrícola

Uma análise do desenvolvimento econômico brasileiro no século XIX implica forçosamente um estudo detalhado de sua evolução, porque a agricultura, na época, era a atividade econômica de maior expressão. À semelhança do que faz a maioria dos autores, podemos dividir a agricultura como: de subsistência e de exportação. A de subsistência compreenderia todos os produtos que são normalmente produzidos pelas unidades econômicas para consumo próprio, não visando, portanto, ao mercado. No Brasil do século passado seriam produtos como o milho, o feijão, o arroz, a mandioca etc. Geralmente esses produtos eram produzidos nas fazendas para consumo interno, raramente eram comercializados. Quando isto sucedia, era quase que exclusivamente para o comércio local devendo o volume de tais transações ser bastante reduzido devido ao isolamento em que viviam as unidades econômicas. Não vamos nos preocupar com uma análise de produção de produtos de subsistência por três razões. Primeiramente, por serem produtos que deveriam ser produzidos, como vimos acima, em quantidades exclusivamente necessárias para o consumo, não devendo apresentar sua produção per capita, portanto, grande variação ao longo do tempo. Em segundo lugar, por não serem objeto de comércio. E, finalmente; por não existirem muitas informações a respeito de sua produção.

O que nos interessará, basicamente, em nossa analise, será o estudo da agricultura para exportação. Esta, sim, mediria, por assim dizer, o excedente econômico gerado numa economia agrícola e como tal nos daria para esse tipo de economia um índice razoável de seu grau de desenvolvimento.

Analisando as estatísticas do comércio exterior brasileiro, apresentadas na Tabela 3, podemos ver que durante o século passado (e, na realidade, até 1940) oito produtos agrícolas foram responsáveis, nesse período, por entre 80% e 95% de nossas exportações totais, a saber: café, açúcar, cacau, erva-mate, fumo, algodão, borracha, e couros e peles. Desses oito produtos a maioria, como o cacau, o mate, o algodão, o fumo, a borracha e os couros e peles, sempre teve uma participação reduzida em nossas exportações; quando eles chegaram a alcançar uma certa importância como no caso da borracha (e, talvez, do algodão), foi de curta duração o período em que pesaram na balança.

Dessa forma, grosso modo, o estudo de nosso desenvolvimento agrícola no século passado prendeu-se a dois produtos: o açúcar e o café, ou no máximo a três produtos, se incluirmos o algodão. É nesses dois ou três produtos que vamos encontrar a chave de `nosso desenvolvimento agrícola no século passado, e, mesmo, nas primeiras décadas de nosso século. É também através da analise da evolução da produção desses produtos que iremos descobrir o início de certas tendências que levaram primeiramente a um desenvolvimento desequilibrado da economia

brasileira, e, em segundo lugar, aos primórdios de nossa industrialização.

Antes de prosseguirmos com nossa analise, entretanto, conviria termos uma, idéia do desenvolvimento das exportações brasileiras no século passado em termos globais. Encontramos a seguir a Tabela 4 que nos fornece o valor das exportações per capita entre 1796 e 1907 em £ correntes.

A julgar pelos dados contidos, nessa tabela, as exportações per capita estagnaram (chegando inclusive a cair no período de agitação política de 18081830) até meados do século, a partir do qual parecem ter quase que dobrado. Se nos dermos ao trabalho de transformar os dados em £ correntes para £ com um valor constante (base 1913), veremos que os resultados obtidos acima não se alteram substancialmente. A Tabela 5 a seguir nos dá o valor aproximado das exportações brasileiras per capita em libras de 1913.

Assim, novamente são confirmadas as conclusões anteriores. Parece que, até a década de-40, as exportações brasileiras per capita paralisaram-se. A partir da década de 50 sofreram um aumento em cerca de 100%. Convém lembrar que se as exportações per capita estagnaram na primeira metade do século e que se durante este período de inércia houve, como sugere Celso Furtado, um aumento relativo no setor de subsistência, isto seria perfeitamente compatível com um aumento no nível de renda per capita e, não, como afirma Furtado, com uma queda no nível de renda durante o período. De qualquer forma, se é que houve uma regressão ao setor de subsistência, o aumento no nível de renda per capita deve ter sido mínimo.

A partir de 1850 é que notamos um grande desenvolvimento do setor exportador o qual consegue dobrar seu volume de exportações per capita em cerca de 50 anos. Admitindo-se um setor de subsistência em estagnação em termos per capita e uma participação percentual constante deste na economia como um todo, entre 1855 e 1905, a renda per capita no Brasil não pode ter aumentado mais do que 50%. Desta forma, acreditamos ser um pouco exagerada a estimativa de Furtado de uma taxa de crescimento de 1,5% a.a per capita nesse período. Acreditamos com Leff' que a taxa de aumento na renda per capita : deva ter sido bem menor do que aquela estimada por Furtado.

Pelos dados anteriormente apresentados, somos levados a concluir que pouco parece ter ocorrido em termos globais no panorama agrícola brasileiro no século passado. Na realidade, entretanto, essas taxas de crescimento escondem profundas mudanças na situação agrícola do País. Tais mudanças estiveram associadas ao declínio agrícola do Norte/Nordeste e à ascensão da agricultura do Sudeste como vimos no capítulo anterior. A tabela a seguir nos dá uma idéia da magnitude das transformações ocorridas entre meados do século passado e início do presente.

O que salta imediatamente aos olhos num exame da tabela acima é a substancial diminuição em termos relativos da participação do Nordeste no nosso comércio exterior nas seis décadas abragidas pela tabela e o aumento na participação relativa do Sudeste. Este processo já se havia iniciado a partir de princípios do século XIX como atestam os dados de Simonsen sendo que os últimos 50 anos só, por assim dizer, o completaram. Assim, segundo o referido autor, a participação do que séria o Grupo II.(Norte), nas nossas exportações, em 1796, seria de 11,6%; a do Grupo III (Nordeste), de 55,6%; e a do Grupo IV (Sudeste), de 32,8%. 0 que houve, portanto, entre 1796 e 1850 foi exatamente a inversão das posições relativas do Nordeste e do Sudeste. Enquanto no início do século XIX era o Nordeste que liderava as exportações, em meados do século essa primazia tinha passado para o Sudeste, a última metade do século vindo somente acentuar a tendência que tinha se firmado desde seu inicio.

A mudança que acabamos de observar nos pólos econômicos fez-se acompanhar de uma série de mudanças secundárias, inclusive no setor demográfico. Enquanto Pernambuco e Bahia, os dois típicos representantes do Grupo III (Nordeste), mostraram taxas de crescimento variando entre um mínimo de 1,1% a.a e um máximo de 1,9% a.a,, durante o século passado, a população do Sudeste crescia a taxas bem mais elevadas, atingindo em São Paulo, na década de 90, a elevada taxa de 5,1% a.a.

Vamos encontrar as origens de tais mudanças no século XVIII, na descoberta do ouro em Minas, e no século XIX, no "colapso" da economia açucareira e algodoeira nordestina e na ascensão do café no Sudeste. Na tabela a seguir encontramos uma síntese do desenvolvimento do setor exportador das principais regiões do Brasil até inícios de nosso século.

Como podemos observar, em termos per capita, enquanto as exportações baianas e pernambucanas estagnaram por um século, tal não sucedeu com o Centro-Sul representado por São Paulo e pelo Rio, que apresentaram acentuado aumento nas exportações per capita. No caso do Rio, o ápice de tal desenvolvimento parece ter ocorrido nas décadas de 70 e 80. Já em São Paulo, parece ter ocorrido na última década do século passado e na primeira do século XX. Para o Rio as exportações aumentaram nada menos do que sete vezes entre 1796 e a década de 80 e para São Paulo em mais de vinte vezes entre 1796 e o fim do século.


Assim, o que à primeira vista pareceria uma economia, o que vale dizer para a época, uma agricultura, em semi-estagnação, na realidade apresenta dois aspectos distintos: o de uma região que praticamente esteve inerte por um século e uma segunda região onde a agricultura de exportação apresentou taxas elevadíssimas de crescimento no mesmo período.

Vamos encontrar a razão para tais fenômenos no século passado, no comportamento dos três elementos básicos acima apontados, da agricultura de exportação brasileira no período: o algodão, o açúcar e o café. Os dois primeiros produtos seriam típicos das exportações do Norte/Nordeste, enquanto o café representaria as exportações do Sudeste.

Na verdade, se analisarmos mais atentamente os dados da tabela anterior veremos que o Nordeste mesmo dentro de uma perspectiva de estagnação secular vai mostrar certas variações substanciais em suas exportações em certos períodos. Tal é o caso de Pernambuco onde o valor médio das exportações per capita chega quase a dobrar entre as décadas de 50 e 60 para, nas décadas seguintes, voltar ao nível anterior. Tal comportamento, como teremos oportunidade de demonstrar adiante, prendeu-se a efeitos gerados pela guerra civil norte-americana sobre as culturas tradicionais da região. Uma vez terminada a guerra e cessados os efeitos, a região regrediu ao status quo.

É dentro dessa, visão de estagnação secular em termos per capita do Norte/ Nordeste e do rápido desenvolvimento do Centro-Sul que analisaremos os três produtos típicos de nossa pauta de. exportações no século passado: o algodão, o açúcar e o café. Comecemos com o algodão.

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