Introdução
A tributação no mundo passa por um momento de profunda incerteza, senão de perplexidade. Os gestores e estudiosos deste tema parecem ignorar os novos caminhos da organização do processo produtivo no mundo exponencial no qual vivemos. Continuam presos a modelos conceituais datados do século passado, marcados pela preponderância da produção industrial e da economia analógica. Ainda raciocinam quase que exclusivamente em cadeias lineares de produção e de agregação de valor.
Assim, continuam insistentemente a adotar protótipos tributários adaptados àquela realidade, que está distante do mundo em profunda transformação no qual vivemos. Seguem metodicamente os modelos dos livros textos convencionais de economia, pouco ajustados ao mundo intangível dos serviços, da inovação exponencial, dos nódulos de produção organizados em rede, e do metaverso onde a matéria perde espaço para os avanços dos bits and bites da era digital da informática.
A sociedade sente que o sistema tributário herdado do passado corrobora, senão agrava, com o surgimento de problemas de distribuição de renda, de explosão de custos de transação e de desigualdade crescentes.
As inovações tecnológicas recentes introjetaram características totalmente diferentes nas velhas relações de produção do século passado, particularmente nas formas e contratos laborais heterodoxos, e que eram dantes rejeitados por serem considerados (equivocadamente) como precarização do trabalho.
Vale reproduzir (ZILVETI, 2018) ao afirmar que
“O mundo globalizado se inclina, sob a perspectiva econômica, para a prestação de serviços, com contratos complexos abrangendo múltiplas relações. Assim, o cidadão não compra mais veículo, compartilha; não compra mais casa, ocupa espaços comuns de maneira consentida; não compra mais roupas ou sapatos, os imprime em impressoras 3D. Até a moeda como meio de pagamento está em profunda transformação, com as criptomoedas a tirar o sono dos financistas.”
O esforço de modernização da tributação não tem considerado adequadamente esse novo ambiente, nem criado formas de exação adequadas a esta nova realidade. Ao invés disso, buscam-se adaptações, escoras e outros artifícios pontuais de ajustes no afã de manter em funcionamento a mesma estrutura envelhecida de antanho. O resultado desta miríade de improvisações, regras casuísticas e muletas institucionais estão fazendo explodir os custos de compliance e de transação no sistema tributário mundial, acarretando incertezas, insegurança jurídica e incremento da litigiosidade.
1. “Ensaio sobre a cegueira”
Em (CINTRA, 2003), eu apontava que até a virada para o século 21
“os modelos tributários tradicionais assumiam que a produção e a geração de renda tributável surgiam em processos produtivos manuais, (e posteriormente mecânicos) concentrados em espaços geográficos definidos, centrados em estruturas organizacionais autônomas, independentes e submetidas a regras nacionais definidas por um Estado soberano. Essa realidade está moribunda...” (p.XIV).
A usual aceitação desse paradigma convencional implica que a autoridade
científica, como nos ensina (FARIA, 1999), é
“orientada por critérios de demarcação autoritariamente prevalecentes... (e, portanto,) se cada paradigma estabelece as condições de cientificidade do conhecimento produzido em seu âmbito, as provas invocadas em favor dos demais paradigmas tendem a ser desqualificados a priori” (pp.49).
1 José Saramago escreveu Ensaio sobre a Cegueira (1995), uma distopia apocalítica a nos inspirar para abrirmos novos caminhos e evitar a trilha do precipício.
Contudo, notava-se nitidamente o gradual esgotamento do conhecimento tributário convencional que perdia legitimidade a partir de sua incapacidade de fornecer explicações, e soluções, para fatos novos que surgiram no panorama econômico moderno. De fato, percebia-se o típico início do rompimento de um paradigma científico (KUHN, 1970), produzindo a perda de um consenso tido como imperativo.
A partir de estudos iniciados no começo da década de 90, era possível vislumbrar as danosas consequências que adviriam de a incapacidade dos modelos tributários convencionais evoluírem para formas de exação mais consentâneas com o mundo digital.
A construção de um novo paradigma para o melhor ajustamento da tributação ao mundo digital tem sido uma tarefa negligenciada e inconclusa nos raros debates surgidos nas últimas décadas. A visão convencional tem resistido aos desafios modernizadores.
As soluções para os problemas emergentes têm sido procuradas no espelho retrovisor da história, buscando-se sustentar os paradigmas convencionais correntes em vez de se produzir novas e modernas formas de tributação mais adequadas ao mundo hodierno. E assim, os sistemas tributários mundiais continuam apegados ao formalismo teórico da economia neoclássica que abusa, por motivos heurísticos, de premissas estilizadas e utópicas, inexistentes no mundo real. Ao se apegarem a modelos criados em laboratórios, e saídos de provetas experimentais, as tentativas de reforma tributária convencionais contrastam vivamente com as palavras de Peggy Musgrave referindo-se ao marido Richard Musgrave, falecido em 2007 e sem dúvidas o maior economista de finanças públicas de sua geração, que afirmou em (Head, 2009) que
“His visions of the good society led him (Richard Musgrave) to place emphasis on equity in taxation, a concept which has tended to become obscured in later general equilibrium models of optimal taxation in which efficiency plays a dominant role. While he was bemused by and admired the intellectual content of such latter-day optimal tax models and the insides they may provide, his major interest was in a system of taxation which would be understandable and acceptable to the electorate. The policy relevance of many optimal tax models he considered marred by the questionable assumptions made and the fact that the equity implications were less than transparent. Moreover, the assumptions such models employ frequently differ and are sometimes in conflict, thus rendering questionable their policy applicability.” (p.8)
O ponto a merecer destaque no pensamento de R. Musgrave foi sua insistência na construção de uma “boa sociedade” (good society), que não necessariamente implica adesão incondicional a uma sociedade eficiente (efficient society) segundo os cânones da economia neoclássica. Reproduzo aqui um pensamento que me escuso por não lembrar a autoria, mas que afirmava algo como “a boa teoria marginalista deve ser interpretada como a gramática da política pública, e jamais como ela própria”.
Em outras palavras, deve haver o pleno reconhecimento de que a política tributária é acima de tudo uma construção social. Neste mister contribuem economistas, advogados, e políticos, sem qualquer protagonismo de um sobre os demais. Ao contrário, seria bom se economistas pensassem mais como políticos, se os políticos pensassem mais como economistas, e se advogados pensassem mais como economistas e como políticos.
O corolário imediato desta constatação é o de que os modelos de tributação ótima que classificam tributos de acordo com a mensuração do grau de eficiência, neutralidade ou não-cumulatividade, incluíssem em suas funções objetivas a serem otimizadas variáveis adicionais como custos de aquiescência, litigiosidade, transparência, sonegação e corrupção, variáveis quase incomensuráveis e notoriamente ausentes desses exercícios.
Os trade-offs entre todas essas variáveis certamente tornaria o processo decisório muito mais complexo nas comparações e escolhas entre turnovers ou IVA´s (Imposto sobre Valor Agregado), tributação de renda ou de consumo, do trabalho ou do capital, e que são simploriamente reduzidas a singelas decisões lastreadas em critérios de pura eficiência alocativa. A modelagem tradicional é contaminada por pressupostos, premissas e fatos estilizados puramente heurísticos e acadêmicos. A construção da gramática tributária é necessária, porém está longe de ser suficiente para a formulação de critérios de escolha na construção de uma “boa sociedade”.
Em duas coletâneas recentes (ROCHA, 2021) e (BRIGAGÃO, 2020), chamei atenção para o fato de que a economia digital e a explosão da tecnologia em todas as áreas de atividade humana não vêm sendo aproveitadas para o que poderíamos denominar de tax design, mas sim, única e tão somente como ferramentas de tax administration. O primeiro implica a abertura de caminhos inovadores para tratar os novos desafios, ao passo que o segundo, se reduz a manter os antigos modelos, ainda que mais eficientemente operacionalizados, tal como a expressão popular do “remendo novo em calça velha”.
Apesar das inovações tecnológicas ocorrendo em velocidade alucinante nas últimas décadas, no mundo tributário tudo continua ocorrendo mais ou menos como sempre aconteceu.
A apuração de débitos e créditos tributários continua presidida por conceitos como territorialidade, materialidade, e tipicidade de produtores e de produtos. A estrutura de arrecadação continua sendo preponderantemente o sistema artesanal de “auto apuração e auto recolhimento com auditoria” como vem sendo feito há mais de cem anos, ainda que agilizada por registros e instrumentos de controle informatizados.
Em (ROCHA, 2021) afirmo que
“ainda que os métodos administrativos de controle e a atividade do Fisco tenham sido operacionalmente modernizados, as estruturas conceituais sobre as quais estão assentados os paradigmas usualmente defendidos nas propostas convencionais de reforma tributária continuam em grande parte em desacordo com a realidade do novo modo de produção e circulação de bens e serviços que surge na sociedade atual” (p.384).
Hoje, nas discussões em torno de reformas tributárias rejeitam-se sumariamente quaisquer propostas que possam contrariar os cânones dos modelos neoclássicos da tributação ótima, ainda que as conclusões e prescrições convencionais apenas se sustentem a partir de medidas de gestão e de controle que tornam os sistemas tributários mundiais cada vez mais complexos, burocráticos, e, surpreendentemente, antagônicos a muitos dos dogmas tidos como verdades imperativas pela ortodoxia. Ignoram-se os tradeoffs existentes entre eficiência por um lado, e por outro, simplicidade, transparência, equidade, custos administrativos e de compliance, erradicação da corrupção, combate à evasão e universalização da base de contribuintes.
2. A race to the past
Exemplos gritantes dessa tendência de buscar a solução de novos problemas com
o uso de velhos tributos (seguindo a anedótica frase de que “imposto bom é imposto velho”) podem ser observados nas proposições de novos modelos de tributação internacional em voga no mundo.
Nestas propostas, abundam algoritmos, fórmulas, regras, convenções e, sobretudo, ordenamento legal complexo para dar concretude a conceitos de difícil entendimento e de quase impossível mensuração, tais como “preço justo”, “lucros normais”, “lucros residuais” “geração de valor” e outros temas que vêm desafiando economistas há séculos. Tal mister tem resultado em propostas que, com excessiva ligeireza, ignoram considerações a respeito de custos e de crescente litigiosidade, além de tornar necessários acordos internacionais e convenções universais para sustentarem exigências cuja complexidade estimulará a evasão, a burocracia, e o aumento dos custos de produção.
No governo Trump, as medidas tributárias implementadas tiveram como objetivo reduzir a carga tributária sobre as empresas e estimular as multinacionais americanas a repatriarem os lucros gerados no exterior e a investirem internamente. O objetivo foi o de atenuar a perda de competitividade da tributação norte-americana frente à de vários países cujos sistemas tributários se apresentavam como mais favoráveis às multinacionais daquele país, como por exemplo Irlanda, Holanda, sem falar nos tradicionais paraísos fiscais.
Como a alíquota da tributação de lucros internos vinha sendo significativamente reduzida em todo o mundo, o governo Trump introduziu novas regras para as multinacionais norte-americanas que, contudo, aumentaram significativamente a burocracia e o contencioso tributário naquele país. A alíquota do imposto de lucros corporativo foi reduzida, e novas regras como a GILTI (Global Intangible Low Tax Income) e a FDII (Foreign-Derived Intangible Income) foram introduzidas para atenuar o problema de planejamento tributário abusivo das multinacionais americanas.
Novos ajustes casuísticos e pontuais voltaram a ser discutidos no governo Biden. Com o objetivo de financiar seu ambicioso programa de investimentos, o governo pretendeu reverter a redução de 29% para 21% no imposto sobre lucros que havia sido aprovada pelo governo Trump, aumentando-o para 28%.
Ao mesmo tempo, a ordem tributária convencional vem sofrendo impactos disruptivos causados por dois grandes problemas gerados pelo mundo digital e pela globalização: profit shifting e a competição tributária. Mais uma vez, a solução proposta pelos tributaristas mainstream se concentra em sobrecarregar com novas regras operacionais os tributos de sempre, destacadamente o Imposto de Renda.
Para tentar evitar a guerra fiscal e o fantasma lembrado por Janet Yellen, Secretária do Tesouro americano, da “race to the bottom”, o governo Biden propôs um imposto mínimo global, sugestão acatada e adotada com modificações pela OCDE e transformada nos dois pilares a serem adotados em breve, caso as negociações para a reforma cheguem a bom termo.
O primeiro pilar implica o compartilhamento dos lucros das multinacionais que antes eram tributados exclusivamente segundo a jurisdição da sede da empresa e que passariam a ser partilhados com as jurisdições de seus consumidores; e o segundo pilar implicaria a aceitação de uma tributação mínima global de 15% para controlar o profit shifting.
Vê-se, portanto, o uso de velhos tributos para solucionar novos problemas. E na esteira desse esforço, a explosão da burocracia, das regras casuísticas, e de fantasiosos algoritmos transforma os tributaristas em novos alquimistas desejosos de fazer com que uma estrutura tributária em processo de envelhecimento seja capaz de lidar com problemas inerentemente estranhos ao seu ambiente original.
Vejamos a proposta de partilha do lucro das grandes empresas globais, a serem consolidados mundialmente e subdivididos em parcelas de lucros “normais” e lucros “residuais” (ou extraordinários). Estes últimos seriam identificados, e distribuídos às jurisdições de destino das transações econômicas segundo a proporcionalidade dos consumidores nos vários países.
Não seria necessário mais de uns minutos de reflexão para aferir a virtual impossibilidade de mensuração e administração desses sistema, o custo do gigantesco aparato que se tornaria necessário, e o potencial de litigiosidade que seria gerado.
(GOULDER, 2021) assim se refere a esta tarefa:
“Treasury should demand that the OECD rethink the idea of differentiating between residual and routine profits…Asking multinationals to bifurcate their profits into these pools is asking for trouble. They’re going to game the system — and why shouldn’t they? These are amorphous numbers that don’t exist in any real context”.
Na mesma linha crítica, a opinião generalizada é de que o projeto de reforma do imposto de renda das grandes multinacionais mundiais poderá dar margem a enormes litígios e novas formas de planejamento tributário, a exemplo de (EDEN, 2021) que afirma
“The OECD’s Pillar One Blueprint proposes a new taxing right, Amount A, that would shift the pre-tax profits of multinational enterprises (MNEs) from Residence and Source jurisdictions to Market jurisdictions. The Amount A formula provides multiple opportunities for both MNEs and tax jurisdictions to engage in “tax games” that would increase the overall complexity of the international tax system.”
Uma das honrosas exceções ao frustrante uso de velhos tributos para solucionar novos problemas acha-se na DBCFT, Destination-Based Cash Flow Tax, como descrita em (DEVEREUAX, 2021). Trata-se de tributação inovadora e que por sua característica de maior simplicidade e transparência poderia auxiliar na questão de profit shifting de forma mais rápida e menos burocrática que as propostas dos dois pilares. Segundo Alan Auerbach, um dos formuladores da DBCFT, as propostas em discussão pelo governo Biden e pela OCDE são “designed for a bigone era” (DEVEREUAX, 2021). Segundo ele,
“The measures being proposed seem designed for an earlier era, when it was easy to identify the factories and refineries where companies produced and earned their profits, and when a corporation’s nationality was largely determined by the location of its main operations and its shareholders. In the modern era, multinational companies with international shareholder bases operate global supply chains, creating value using intangible capital with no natural location. As such, trying to modify a tax system based on a company’s residence and where its profits are earned amounts to trying to replace the race to the bottom with a race to the past…the most decisive reform would be a “destination-based cash flow tax” (DBCFT). Among other things, this would provide immediate expensing for all investment, eliminate the tax advantage for corporate borrowing, and impose border tax adjustments to eliminate taxes on export revenues and tax deductions for import costs. At the end of the day, only domestic cash flows would be taxed. And, because transactions between domestic companies and related foreign parties would have no US tax consequences, the practice of profit shifting would disappear.”
A partir desse desencontro da prática tributária com a realidade do mundo digital temos assistido ultimamente a posicionamentos curiosos no campo tributário, como por exemplo o pedido feito por bilionários globais para que, por se sentirem injustamente favorecidos, sejam mais tributados.
O pedido de maior tributação dos super ricos foi prontamente atendido pelo governo Biden com a proposta de instituição de um billionaire minimum income tax.
De fato, a questão da equidade no sistema tributário tem ganhado muito espaço no debate público e motivado inúmeras recomendações por maior progressividade nos sistemas tributários mundiais. E no Brasil não é diferente.
A proposta do governo Biden de tributação de ganhos de capital não realizados por pessoas de alto rendimento retoma antiga discussão sobre tributação de ganhos não realizados sobre ativos. Se a tributação normal sobre rendimentos ordinários de tais pessoas físicas de alto rendimento não atingir 20% da soma dos rendimentos ordinários somados aos ganhos não realizados, a diferença será recolhida como adiantamento da tributação dos ganhos quando de sua realização. Ou seja, se introduz um imposto mínimo incidente sobre ganhos de papel travestido de adiantamento sobre a tributação de ganhos futuros.
Neste caso, contudo, sua exigibilidade alcança as pessoas físicas, com o agravante de ocorrer em um mundo digital, etéreo, virtual, diversificado, com ativos antes desconhecidos e caracterizados pela descentralização, independência de autoridades públicas, controle distribuído, intangível e não raro com “high frequency trading”. As dificuldades operacionais serão insuperáveis.
A tributação corrente de ganhos não realizados tem similar no “come cotas” aplicado há décadas nos fundos de investimentos no Brasil. Lembremos, contudo, que aqui, os rendimentos são tributados através da realização forçada dos ganhos até o limite do tributo devido, pois o valor equivalente do crédito tributário é convertido em cotas e transferido como recolhimento definitivo do tributo. Não se trata de adiantamento, mas sim tributação final dos rendimentos como se realizados naquele momento, e pagos em cotas dos respectivos fundos.
No caso americano busca-se também evitar o diferimento da tributação dos ganhos, mas com diferenças importantes relativamente ao que é feito no Brasil.
Em primeiro lugar, a tributação dos ganhos não realizados ocorre nos ativos das pessoas físicas. Em segundo lugar ele pode incidir sobre ativos não divisíveis tais como propriedades imobiliárias, além de ações, títulos, ou qualquer outro ganho de capital não realizado, inclusive obras de arte, criptos e outros ativos a serem definidos no mundo real, e até no mundo imaginário do metaverso.
O “come quotas”, por ser aplicado sobre ativos totalmente divisíveis, como é o caso de cotas de fundos de investimentos, permite a realização forçada e definitiva de parte dos ganhos apurados. No caso de ativos indivisíveis, como uma objetos, imóveis, ou participação em sociedades, por exemplo, isto seria impossível. Portanto, no caso da proposta americana, não haverá realização forçada de ganhos, mas apenas um adiantamento de um valor imputado, com a manutenção do ativo íntegro sob propriedade do contribuinte.
No caso de perda de valor de um ativo no futuro, deverá haver a necessária compensação o que naturalmente faz prever que esta forma de tributação será de difícil operacionalização não apenas na aferição dos “ganhos não realizados”, como no tratamento de casos específicos que certamente surgirão quando o tributo recolhido não ocorre de forma definitiva como no caso do “come cotas”.
Além de ter como justificativa a maior tributação efetiva dos ricos, um dos objetivos deste esdrúxulo imposto mínimo é evitar os diferimentos contínuos e sem limite de ganhos acumulados, considerado um tipo de planejamento tributário discriminatório em favor dos contribuintes de alta renda, além de aparente injustiça tributária relativamente ao cidadão menos abastado.
Intuitivamente o argumento é atraente pelos padrões convencionais de pensamento econômico. Mas há que avaliá-lo mais cuidadosamente.
Além da maior complexidade que sobrecarregará o IR norte-americano, já longe de ser simples e transparente, sua justificativa pode carecer de razoabilidade do ponto de vista do bem-estar social, qualquer que seja o extrato socioeconômico do contribuinte desta nova incidência tributária.
O que esta proposta indica é a visão convencional de que a renda no sentido de Haig-Simon deve ser tributada, qualquer que seja a forma que venha a assumir uma vez gerada. Sendo consumida ou poupada, a renda total deve ser tributada. Mas se a visão tradicional implica tributar renda gerada (distribuída ou não), o que se propõe agora é a tributação de uma valorização, ou renda, não realizada no mercado e lastreada em meras expectativas. Ou seja, o imposto de renda passaria a incidir não apenas sobre a renda, mas também sobre a expectativa de renda.
O que se percebe é que no afã de garantir a arrecadação sobre um dos fatos geradores tradicionais - a renda -, amplia-se o conceito para incluir renda potencial esperada. Diferentemente do “come cotas” que tributa em bases correntes, a proposta Biden tributa uma expectativa a ser confirmada, ou não, em futuro incerto.
Nota-se aqui uma tentativa desastrada de adaptar um veículo clássico de tributação, a renda, a um mundo incerto, onde o planejamento tributário, a mobilidade de todos os fatores de produção e a imaterialidade do objeto das transações econômicas ameaçam os Estados nacionais em sua capacidade soberana de tributação. Tendo como objetivo a tributação de renda em todas as suas configurações, gastas ou poupadas, realizadas ou esperadas, criam-se mecanismos de suporte ao conceito tradicional de renda para ajustá-la a essas expectativas, ignorando-se custos, difícil operacionalidade, evasão e outras contraindicações deles resultantes.
Não seria a hora de mudar o conceito tradicional de renda tributável afastando-se da visão convencional do conceito globalizante de renda no sentido dado por Haig-Simon? Não seria o momento, considerando a dificuldade material da correta identificação e mensuração dentro de um mundo digital, considerar como alternativa a tributação do consumo seguindo Fisher, Kaldor e Meade? Ou mesmo considerar princípios totalmente novos, porém fruto do mundo digital, como a tributação dos fluxos de pagamento?
O esforço conjunto de capital e trabalho abastece a sociedade com bens e serviços disponibilizados para consumo ou investimento. Existe consenso na área tributária que há preferências sociais pelos investimentos de capital, pois recebem incentivos e estímulos para ocorrerem. Ao permanecerem dentro do circuito produtivo, o capital, juntamente ao trabalho, está gerando bens e serviços e abastecendo o pool comum de produtos colocados à disposição da sociedade. E ao se tributar apenas o consumo evita-se a bitributação da poupança e o desestímulo à acumulação de capital, essencial para o aumento da produtividade e dos salários.
Vê-se, portanto, que sob esta ótica a tributação deve se assentar sobre o ato de retirada de bens e serviços do pool coletivo para satisfação de desejos individuais (rival goods). Já o ato de incrementar o estoque de bens deve ser estimulado, e, portanto, não tributado.
Na interpretação convencional, a progressividade atinge uma abrangência na qual a mera posse ou propriedade de riqueza, independentemente do uso que esteja sendo dada a ela deve ser tributada, ou seja, retirada para uso do setor público. Mas ao permanecer no circuito produtivo a riqueza acumulada e não consumida, e, portanto, utilizada para multiplicar a geração de mais emprego e renda, não estaria cumprindo uma função social, semelhante ao gasto público, lato sensu?
A renda não distribuída, e, portanto, não consumida, gera benefícios sociais tal qual uma despesa pública, ainda que pertencente a um agente econômico privado de alta renda. O lucro não distribuído ao proprietário da empresa, e, portanto, não disponível para consumo, permanece no circuito produtivo, contribuindo para a geração de emprego, produto e renda. E isto independe da característica econômica de seu proprietário. Nesse sentido, um indivíduo que não consuma a sua renda, mas que poupe e invista não deveria ser tributado, independentemente de seu extrato socioeconômico.
3. Follow the money
Em artigo incluído na coletânea organizada por (BRIGAGÃO, 2020) afirmo que
“Não obstante o uso intensivo em tecnologia como instrumento de gestão do sistema tributário, as bases e conceitos fundamentais da política tributária hodierna são as mesmas de um século atrás, ou seja, renda, consumo, folha salarial e patrimônio. A principal forma de cobrança dos fiscos se dá em moldes convencionais. Continua centrada na movimentação física de produtos, com inspeções visuais de mercadorias feitas em barreiras estaduais ou nacionais para conferências com as respectivas notas fiscais que as acompanham.” (p.380)
No mesmo texto sugiro que a preocupação com o ajustamento dos sistemas tributários atuais às novas circunstâncias deveria adotar a mutação do alvo tributário básico atual, que são os bens e serviços, para o pagamento. O rastreamento da mercadoria seria substituído pelo verificação do pagamento, o que se adaptaria melhor ao mundo tecnológico digital no qual as mercadorias e serviços tornam-se crescentemente “invisíveis” e a contraparte da transação econômica, o pagamento, é cada vez mais transparente.
Propus o que chamei de “follow the money”. (p.383)
Propostas de uso do conceito de pagamento como base de incidência tributária têm sido levantadas desde a virada do século, estimuladas pelo uso no Brasil de um tributo sobre movimentação financeira (IPMF/CPMF) que perdurou quase doze anos e cuja detalhada avaliação acha-se em (CINTRA,2009).
Vários trabalhos sustentando a tributação sobre pagamentos são encontrados em (CINTRA, 1990, 1994(a), 1994(b), 1994(c), 2003(a), 2003(b), 2008(a), 2008(b), 2008(c),
2010), (FEIGE, 2000), (SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, 2019 (a) e (b)), (SUESCUN, 2004), (MATTOS FILHO, 1993), entre outros. Críticas a eles têm alimentado a polêmica com posicionamentos contrários à tese2.
Em vários momentos o uso da tributação sobre movimentação financeira foi sugerido como um tributo substitutivo de vários outros, como em (CINTRA, 2003,2009), ou como um tributo para recepcionar a função de financiamento da seguridade social, como no Relatório Final da Comissão Executiva de Reforma Fiscal (CERF), (MATTOS FILHO,1993), criada no governo Collor para propor a revisão do capítulo tributário da Constituição de 1988. As conclusões da CERF resultaram no envio de uma PEC ao Congresso Nacional, mas que não teve andamento em função do impedimento do então presidente da República, mas influenciou profundamente todas as demais PEC´s de reforma tributária discutidas no país desde então.
Interessante notar, contudo, que o relatório final da CERF incluiu o uso da tributação da movimentação financeira para complementar a base de financiamento da seguridade social, cuja incidência na folha de salários vinha sofrendo erosão pelas inovações nos contratos de trabalho e pela inclusão dentre os beneficiários da previdência pública de uma massa significativa de não-contribuintes. Dizia o relatório final (MATTOS FILHO, 1993) que
“A fonte de recursos deste regime (de seguridade social) deve ser um imposto de ampla base de arrecadação, a exemplo da contribuição sobre operações relativas à movimentação financeira ou transmissão de titularidade de numerário, créditos e direitos. A preferência por esta forma de financiamento para o regime universal é clara obediência ao princípio da equidade fiscal: como todos os cidadãos serão beneficiados, não se deve restringir o financiamento apenas ao mercado formal de trabalho.” (p.45).
Na PEC sugerida ao Executivo em 1993, o relatório propôs a tipificação do tributo sobre movimentação financeira, e o texto foi a base da criação do IPMF em 1993 pelo Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso no governo de Itamar Franco, e que depois foi transformado em CPMF em 1996, vigendo até 2007. Seu uso, porém, como um tributo auxiliar para o ajuste fiscal do Plano Real implicava ter como objetivo o aumento da carga tributária, o que foi conseguido ao custo de grande antipatia popular.
A tributação da movimentação financeira, vem sendo fortemente criticada por agredir formalmente o conceito de eficiência, dada sua natural cumulatividade. Contudo, tais afirmações exigem uma validação empírica por três razões fundamentais, como pode ser visto em (CINTRA, 2009). Em primeiro lugar, a alegação de existência de distorções alocativas nos tributos cumulativos depende da aceitação de premissas referentes ao funcionamento dos mercados que, sabidamente, não são atendidas factualmente; em segundo lugar, e nestas condições, a própria lógica neoclássica indica que em um mundo em second best, onde há distorções alocativas, apenas aferições empíricas permitiriam um ordenamento de ambientes econômicos alternativos, o que exclui que a priori um imposto cumulativo seja considerado necessariamente mais ou menos eficiente que outro nãocumulativo; e em terceiro lugar, trabalhos empíricos demonstram que um tributo cumulativo com baixas alíquotas pode ser menos distorcivo que um tributo sobre valor agregado com alíquotas mais elevadas, dado nível determinado de arrecadação.3 4
Importante considerar que dois estudos feitos pelo Banco Central (ALBUQUERQUE,2001) e (KOYAMA 2001) demonstraram efeitos indesejados da CPMF no mercado financeiro. Os problemas apontados levaram ao aperfeiçoamento daquele instrumento que deixou de incidir no mercado financeiro e de capitais, sanando o problema identificado. Não obstante, estudos da (SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, 2001) da lavra de Andrea Lemgruber Viol, hoje chefe de divisão na área tributária do Fundo Monetário Internacional, apontam em outra direção. No texto, em defesa da CPMF, se busca desfazer os mitos e preconceitos que rondam o tributo:
“Este trabalho procurou desmistificar os chamados impostos sobre débitos bancários, em particular, a CPMF. Como muitos outros fatos em matéria tributária, há uma série de mitos em torno dessa contribuição, a maioria deles desprovida de
3 A cumulatividade nos IVA´s se instala automaticamente dependendo do período de produção, ou seja, do descasamento entre o registro de crédito na aquisição de insumos, e os débitos constituídos na venda da mercadoria. A neutralidade exigiria alíquota única, universalidade de incidência, e creditamento instantâneo. Adicionalmente, o problema de créditos acumulados é fonte de forte cumulatividade praticamente todos os IVAs utilizados no mundo, em maior ou menor escala, o que desarma qualquer argumentação acerca da neutralidade inerente aos IVAs.
4 Para uma demonstração formal de como um tributo cumulativo pode ser menos distorcivo e socialmente preferível a um tributo não-cumulativo, vide capítulos 1 e 2 de (CINTRA, 2009), pp.26-125.
uma análise bem fundamentada acerca dos reais impactos desse tributo. Torna-se necessário, portanto, rever alguns conceitos que caíram na vala comum e reavaliálos em termos de uma teoria econômica centrada na realidade do País, e não apenas utilizar modelos abstratos para sustentar argumentações que não se sustentam quando aplicadas aos processos políticos, econômicos e sociais de uma nação”. (p17)
Curioso observar que, como demonstrado por (CAGNIN, 2015), (CINTRA, 2009) e (SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, 2001) a experiência da CPMF no Brasil foi extremamente bem-sucedida, sem que nenhuma das graves distorções apregoadas por seus críticos ocorresse com significativa intensidade. Até mesmo estudiosos críticos de tributos sobre movimentação financeira, como por exemplo (KIRILENKO, 2003) reconhecem que, diferentemente de outros países analisados por ele, onde a implantação deste tributo causou perdas de superavit do consumidor (deadweight losses) e desintermediação financeira, o caso brasileiro foi diferente.
Segundo o autor, “This analysis does not find significant disintermediation or deadweight losses in Brazil, for which the data series is not really long enough to allow effective use of the study´s method.“ 5
Propostas divergentes dos cânones tradicionais da teoria da tributação, como é o caso do eterno conflito entre tributos cumulativos, como a tributação sobre pagamentos, e os IVAs, não-cumulativos, não podem ser sumariamente rejeitadas por serem consideradas distorcivas sem um esforço de validação empírica. Quando muito, e com raras exceções, tais estudos se baseiam em corolários formais da teoria convencional, sem aprofundamento quantitativo empírico que confirmem tais pressupostos.
Andrea Lemgruber Viol, em (SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, 2002) complementa suas observações ao afirmar que
“Não é objetivo do presente estudo questionar a superioridade da tributação sobre o valor agregado, em termos de distorção econômica, para sistemas de fácil administração, harmonizados nacionalmente e de baixo grau de sonegação. Isso é pacífico em termos de teoria econômica e os autores concordam que um IVA realmente amplo e nacional, com uma ou duas alíquotas, gera uma solução
5 A qualificação feita pelo autor para justificar o sucesso do caso brasileiro é curiosa, considerando que o tributo vigorou por doze anos praticamente de forma ininterrupta no país.
econômica superior ao modelo atual. Porém, dentro da restrição do factível, pois o ideal não nos parece uma solução possível de curto prazo, é preciso orientar o debate e não permitir que soluções parciais acabem por comprometer o funcionamento do sistema... A divergência é aparente porque a transposição de um IVA conceitual para o mundo real está sempre sujeita a adaptações que desvirtuam o pretenso caráter neutro da tributação. Tal fenômeno é mais evidente no Brasil, onde, dada a sua restrita abrangência e multiplicidade de alíquotas, ainda há controvérsia na identificação do ICMS e IPI como impostos sobre o valor agregado. O PIS/COFINS, ao contrário, embora não possua a característica essencial da incidência sobre valor agregado, incorpora as outras duas características desejáveis: abrangência e reduzido número de alíquotas. E é exatamente essa desvirtuação do conceito puro de IVA que explica os resultados obtidos.” (p.18)
Considerando as limitações impostas pela realidade e pelas inovações tecnológicas à operação ideal de impostos convencionais, há que se buscar formas de tributação mais consentâneas com a realidade e com a evolução do mundo digital. Nesse sentido, a uso do fato gerado, ao invés de fatos geradores como base imponível pode ser uma forma mais simples, mais realista e mais moderna de tributação.
A proposta da compra de ativos como o Twitter pelo valor de US$ 45 bilhões ocorrida recentemente, jamais poderia ter sido antecipada por qualquer algoritmo tradicional de cálculo de valores. Já o valor da transação realizada, sem qualquer outra necessidade de qualificação, torna-se um instrumento mais confiável e mais objetivo para compor uma estrutura de arrecadação de impostos.
A tributação deve acompanhar a sociedade em sua evolução natural. Os padrões de consumo se alteraram profundamente, concentrando-se em serviços em detrimento de bens. Isto não pode deixar de influenciar os padrões tributários, como afirma (ZILVETI, 2018) ao afirmar que
“Se o consumo mudou profundamente, é de se esperar que o tributo sobre ele também seja alterado. Não parece razoável que se siga pensando em "valor agregado" ou "circulação de mercadorias" se a tecnologia e o consumidor desprezam essas expressões. Não se pensa mais em cadeia produtiva, como Von Siemens idealizou no início do século 20 para o IVA (imposto sobre valor agregado) europeu.
Tampouco se considera relevante o "trânsito de bens", perceptível pela entrada ou saída física de bens em fronteiras hoje inexistentes. O tributo de mercado, como se diz do IVA, pressupõe um limite jurisdicional, hoje virtual.”
De fato, os conceitos tradicionais de renda, patrimônio, consumo, poupança e ganhos de capital eram mais transparentes e homogêneos do que são hoje no mundo digital. As formas de recebimento de valores, de pagamento e a valoração de ativos passaram mais recentemente a ser de mais difícil identificação e tipificação. Tomemos como exemplo a questão da valoração de ganhos de capital não realizados, como analisada acima.
Considerando o grau de inovação tecnológica e mercadológica dos ativos gerados na economia exponencial de hoje, a forma usual de tomar as transações registradas como parâmetro para uma marcação a mercado não são confiáveis. O exercício usual de calcular o valor presente de fluxos previstos de valores futuros transformou-se em exercício de enorme incerteza, senão nebuloso e indecifrável no mundo do blockchain, das criptomoedas e de novos ativos difíceis de serem categorizados pelos conceitos tradicionais. Pior ainda quando se trata de antecipar tributação sobre ganhos esperados de papel, como no caso da proposta Biden.
Dadas as incertezas e dificuldades apontadas com a tributação convencional no mundo digital a exação do fato gerado, em contraponto ao do fato gerador, se mostra mais simples e dispensa qualquer mensuração prévia, pois incide sobre um fato conhecido e realizado.
Ademais, vale lembrar, como em (CINTRA 2009) que o fato gerado do pagamento, ainda que de forma cumulativa, é uma síntese de todos os fatos geradores convencionais, exceto a riqueza (ou patrimônio). Não obstante, a alcança com mais eficiência que os tributos convencionais quando qualquer transferência de riqueza ou patrimônio é realizada.
É compreensível que novas formas de tributação como a tributação dos pagamentos enfrentem resistências pois em economias como a brasileira a maior parte do processo produtivo ainda se encontra no estágio da indústria 2.0. Nesse sentido, a rejeição a propostas como a da tributação sobre movimentação financeira é respaldada na ausência de problemas graves a serem solucionados e, portanto, os paradigmas convencionais ainda são operacionais nestes setores mais antigos da sociedade.
Contudo, uma reflexão sobre a velocidade da revolução tecnológica nos levaria rapidamente a imaginar um mundo onde o ambiente econômico, social e cultural passe a ser dominado pelos espaços virtuais como o metaverso, onde transações comerciais de compra, venda, aluguel e acumulação de patrimônio ocorram com características semelhante às que ocorrem no mundo real. Daí surgem problemas. Devem ser tributadas?
Podem ser tributadas? Como tributá-las?
Antes de abordar estas questões gostaria de relembrar uma estória de ficção científica, mas que coloca com clareza o tom do problema.
Nações em guerra tradicional causam perdas de vidas e destruição de ativos. Incomodados com a destruição de bens e propriedades, convencionou-se que a guerra seria virtual, realizada em um mundo paralelo onde, através de algoritmos e levando em consideração o potencial bélico real de cada país, se determinaria o vencedor. Nesta guerra virtual não haveria destruição de bens. O preço da guerra, como indenizações ou reparações, seria pago em vidas humanas, no mundo real. O país perdedor executaria um número de pessoas definido pelos algoritmos das batalhas virtuais, e as guerras seriam travadas sem destruição de ativos. Vejam que na paródia aqui relatada, o mundo virtual tem sua lógica e sua dinâmica no mundo paralelo, mas ao cabo de tudo, o seu efeito final, a execução dos seres humanos, ocorre no mundo real.
Transpondo esta paródia ao mundo tributário, haveria no metaverso uma economia onde as atividades seriam tributadas dentro deste mundo imaginário, com suas regras e métodos de recolhimento, mas em algum momento a ligação com o mundo real teria que existir pois as necessidades de governos para a produção de bens públicos são reais, como escolas, hospitais, infraestrutura, segurança e outras.
Conclusões
Nesse sentido, a indagação de se as transações no metaverso devem ser tributadas, endereçam uma resposta positiva pois há conexão entre as atividades virtuais e ganhos financeiros no mundo real.
De fato, as cripto moedas usadas no metaverso são compradas, e eventualmente convertidas em moeda de curso forçado emitida pela autoridade monetária dos Estados nacionais. Ou seja, por enquanto as criptomoedas utilizadas nos circuitos econômicos virtuais mantêm ligações com os circuitos reais.
A compra de uma obra de arte em NFT paga em bitcoin tem vínculo com o mundo real por meio da aquisição dos bitcoins pagos em moeda convencional. Portanto, abre-se o espaço para a tributação, ainda que com enormes dificuldades de enquadramento dessas operações nos regulamentos dos tributos existentes, e que não raro levam a intermináveis discussões que deságuam nas cortes da lei após décadas de incertezas e frustrações.
Em outras palavras, as moedas virtuais utilizadas no metaverso são, por enquanto utilizadas como unidade de conta, e ao final e ao cabo das operações dentro do circuitos virtuais, elas são liquidadas por meio da moeda convencional, que ainda mantém sua função de meio de pagamento.
Vê-se, portanto, que o pagamento, ou a transação financeira convencional é o elo entre o mundo real e o virtual. Assim sendo, o conceito da tributação do fato gerado, ou seja, a tributação do pagamento puro e simples, se apresenta como uma alternativa viável e de singela implementação para a tributação do mundo virtual. Tributam-se os fluxos de pagamento, sem a tentativa bizantina de enquadrá-los aos tributos convencionais.
Deixo, no entanto, para reflexão, uma visão apocalítica do futuro da tributação no dia em que as criptomoedas assumirem funções de meios de pagamento. Sendo universalmente aceitas, descentralizadas e não sujeitas a qualquer autoridade central, nem a governos, a tributação como hoje a conhecemos desaparecerá inapelavelmente. É difícil imaginar qual a nova forma de organização social que a substituirá, e quais seus impactos políticos e sociais que terão no futuro da humanidade.
Finalizo esta nota parafraseando distopicamente a Professora Lorraine Eden da Texas A&M: Hic sunt dracones.
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