MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Professor do Departamento de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, produziu este texto especialmente para o Simpósio "LIBERALISMO E CONSTITUINTE", realizado em São Paulo, nos dias 16 e 17 de dezembro de 1985, por iniciativa do INSTITUTO TANCREDO NEVES, República Federativa do Brasil, FUNDAÇÃO FRIEDRICH NAUMANN, República Federal da Alemanha.
A CARGA TRIBUTÁRIA NO BRASIL
Por ocasião da apresentação do 4º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) em setembro, a Secretaria do Planejamento apresentou dados referentes à corrosão da receita governamental. A Tabela 1 mostra a carga tributária no Brasil como percentagem do PIB.
Como pode ser observado, a carga tributária bruta apresentou ligeira queda no ano de 1984. Os tributos diretos aumentaram, ao passo que os indiretos apresentaram sensível queda como proporção do Produto Interno Bruto.
Já a carga tributária líquida (carga bruta menos transferências e subsídios) aumentou substancialmente no período analisado, passando de um patamar próximo a 9% nos primeiros anos da década de 70 para 6,4% em 1984. Tal fato levou o governo a optar por um plano de recuperação da carga tributária, do que resultou o "programa de mudanças" apresentado pelo ministro da Fazenda no último novembro.
Alega-se também que, comparativamente às economias mais desenvolvidas, a participação da arrecadação tributária no PIB é baixa, justificando-se, portanto, esforços no sentido de sua elevação.
Algumas considerações se fazem necessárias. As baixas taxas de crescimento econômico entre 1981 e 1984 (negativas em 1981 e 1983) são, tipicamente, fatores de redução da carga tributária. Assim, espera-se que, com a recuperação da economia iniciada em 1984 e confirmada em 1985, ela volte a elevar-se para níveis semelhantes aos de 25% em termos de arrecadação bruta. Da mesma forma, a recuperação do crescimento deve ser fator de redução nas transferências, devido aos juros da dívida pública.
Nota-se também que, comparativamente à renda per capita, bem como aos níveis dos serviços públicos prestados, a arrecadação fiscal no Brasil já deve estar próxima do esgotamento da capacidade de pagamento dos contribuintes.
Há que ressaltar ainda que a análise da arrecadação tributária não reflete adequadamente a presença do Estado na economia brasileira, devendo-se, para tanto, avaliar a taxa de extração global, que envolveria, adicionalmente, itens como contribuições parafiscais, empréstimos compulsórios, o "imposto inflacionário" (somente este estimado em cerca de 2-3% da poupança privada canalizada para o financiamento da dívida pública), os "floats" de caixa e outros mais.
Assim, não basta uma análise imediata da carga tributária brasileira para concluir que ela foi deteriorada e que deve ser restaurada; antes, torna-se necessária a definição do que se espera da atuação do governo, e a partir daí, com base nas múltiplas formas do poder público estar presente na economia, avaliar-se seu real desempenho e a adequação entre meios.
Nota-se, contudo, que, nos últimos anos, alguns importantes decretos têm caminhado no sentido da rápida elevação da tributação, principalmente sobre as empresas e sobre aplicações financeiras (Decretos 1.704/79, 1.967/82, 2.027/83, 2.031/83, 2.065/83 e agora o "programa de mudanças" em dezembro de 1985).
Como resultado, observa-se que a composição da carga tributária brasileira encontra-se mais concentrada nos impostos indiretos sobre produção e rendas (45%), cabendo aos impostos diretos sobre renda e lucro cerca de 25%, e as contribuições sobre folha de salários cerca de 30%. Nota-se ainda que, na composição do imposto sobre a renda, a incidência sobre as pessoas físicas é de tão somente 5%, sobre as pessoas jurídicas 30%, e na fonte cerca de 65% (sendo que aqui o montante incidente sobre trabalho acumula 25%, sobre remessas cerca de 15% e sobre as empresas, outros 30%). Portanto, mesmo os impostos considerados diretos (Imposto de Renda) são basicamente indiretos, não recaindo sobre os indivíduos detentores dos rendimentos. Introduzem-se, assim, significativas distorções na estrutura tributária, com importantes reflexos negativos na incidência final daquele imposto, já que torna-se possível o repasse dos mesmos aos preços.
Outra importante constatação prende-se à característica essencialmente financeira das deteriorações da carga tributária no Brasil. O item efetivamente predominante na queda da carga tributária líquida são as transferências financeiras, fundamentalmente juros sobre a dívida do setor público, que em 1984 chegaram a 6% do PIB. Nota-se, portanto, que o fator mais diretamente responsável pelas dificuldades orçamentárias do setor estatal está nos custos de rolagem dos déficits fiscais, e não na corrosão de suas receitas tributárias.
O DÉFICIT PÚBLICO
Tomando-se o conceito de déficit operacional (que exclui as correções monetária e cambial), observa-se que o mesmo atingiu cerca de 5,2% do PIB em 1981, e 6,2% em 1982. Com a suspensão dos fluxos de recursos externos, o déficit operacional foi contido em 1983 (2%) e em 1984, estimando-se que chegue a 1% em 1985.
Em relação ao conceito de caixa, o déficit inicialmente estimado em CR$ 109 trilhões em 1985 foi reajustado para CR$ 55 trilhões com as medidas adotadas pelo "pacote de julho", que, entre outras providências, propunha a redução de despesas em CR$ 20 trilhões (sendo CR$ 15 trilhões no nível de empresas estatais), elevação de receitas tributárias em cerca de CR$ 21 trilhões, e um "float" esperado de CR$ 12 trilhões. Esperava-se que, dessa forma, o déficit de caixa fosse reduzido para cerca de CR$ 55 trilhões. A evolução dos números mostra, contudo, que o mesmo deverá situar-se em CR$ 75 trilhões.
Para o ano de 1986, as previsões referentes à evolução do déficit público brasileiro são pouco animadoras. A primeira previsão estimava o déficit de caixa em CR$ 221 trilhões, valor hoje reestimado para cerca de CR$ 250 trilhões.
As providências incluídas no programa de mudanças apresentado em novembro último mostram que o governo pretende aumentar mais uma vez a carga tributária para enfrentar a questão do déficit público. A elevação da arrecadação de impostos em CR$ 80 trilhões representa um aumento de 30% sobre as receitas do IPI e IR, de cerca de CR$ 250 trilhões previstos em 1986. Somando-se a essa cifra uma redução de despesas de CR$ 8 trilhões, a eliminação do déficit das estatais de CR$ 25 trilhões, a redução dos encargos financeiros na rolagem da dívida pública em CR$ 35 trilhões (decorrentes da esperada redução da taxa de juros), a concretização de planos de privatização no montante de CR$ 15 trilhões, e um "float" de CR$ 30 trilhões, o "programa de mudanças" obteria a redução do déficit de caixa de 1986 para cerca de CR$ 77 trilhões (CR$ 20 trilhões seriam repassados aos Estados e Municípios). Lembrar, contudo, que, com exceção do aumento de arrecadação tributária, todos os demais itens são meras hipóteses que, dependendo das contingências, dificilmente terão condições de ser realizadas em sua totalidade.
A PRESENÇA DO ESTADO NA ECONOMIA
A questão que surge diz respeito à causa dos crônicos déficits públicos brasileiros.
Em primeiro lugar, cabe lembrar que há que se distinguir entre o que se deseja do Estado na economia e o grau de eficiência na administração do orçamento público.
Sim, não há necessariamente correlação entre a presença do governo na economia e o déficit público, sendo possível um Estado grande sem déficits, bem como um Estado pequeno com grandes desequilíbrios orçamentários.
Justifica-se a atuação do governo no domínio econômico em alguns casos clássicos, tais como a inevitável existência de "falhas de mercado" (bens públicos e monopólios naturais), além da intervenção objetivando uma desejada redistribuição de renda ou a manutenção da estabilidade e crescimento da economia.
No desempenho dessas funções surgem problemas inerentes a este tipo de atuação, tais como as dificuldades oriundas da não revelação das preferências dos indivíduos por serviços públicos (pelos mecanismos de mercado), bem como a espinhosa tarefa de definir uma função de bem-estar social que oriente a ação do setor público. Tais problemas suscitam a necessidade de utilização de mecanismos políticos, e não econômicos, na identificação das preferências da coletividade.
Outra questão refere-se aos mecanismos de custeio das atividades governamentais.
Os mecanismos tributários implicam a imposição de custos que devem ser arcados pela comunidade como um todo. Não se trata de mera redistribuição de renda e de riqueza, que obviamente significam custos para alguns segmentos sociais e benefícios proporcionais para outros, mas sim de perdas absolutas, irreversíveis, que subtraem da sociedade, como um todo, parte dos resultados de sua atividade econômica. E o "peso morto" da tributação, que, na medida em que a imposição de impostos significa a introdução de distorções nos mecanismos de alocação de recursos no mercado, impõe perdas não recuperáveis ao conjunto da sociedade.
Os impostos geralmente introduzem distorções na decisão dos indivíduos entre trabalho e lazer, consumo e poupança; a nível de empresas, implicam alterações nas decisões de investimento, na manutenção da competitividade externa, nas formas de financiamento de produção e no equilíbrio dos preços relativos.
A título de exemplo, vale lembrar que alguns estudos revelam que nos EUA o "peso morto" da arrecadação tributária representa cerca de 30% do total de impostos arrecadados. Como estes últimos correspondem a aproximadamente um terço do PIB, chega-se à conclusão de que o custo da atividade pública naquele país implica em perdas absolutas de cerca de 10% do PIB americano.
É evidente que a atuação governamental gera benefícios que deverão ser contrapostos aos custos, que os mecanismos de funcionamento do mercado livre também geram distorções, como no caso de monopólios, oligopólios e outras formas de concorrência imperfeita. Mas o importante a ser ressaltado é que o Estado não atua de forma neutra dentro da economia, e que toda ação pública deve ser analisada cuidadosamente numa comparação de custo e benefício.
Assim, há que se tentar custear o setor público por meio de uma tributação eficiente, que garanta a distribuição da carga tributária, que minimize a ocorrência do "peso morto", que evite que a intervenção em um determinado setor alvo extraia para outros de forma indesejada, e que se reduza ao limite do possível os custos de administração da arrecadação pública, bem como o chamado "custo de aquiescência", ou seja, os custos que os contribuintes devem suportar para manter os controles e registros exigidos pela legislação tributária.
Assim, o moderno liberalismo econômico não nega a necessidade de intervenção estatal seletiva, nem demonstra desatenção às questões sociais. Antes, preconiza a intervenção do governo na manutenção da concorrência de mercado e no combate às formas de exploração monopolística ou oligopolística; incentiva a atuação governamental nas áreas em que o mercado demonstra incapacidade de atuar de forma eficiente ou quando entram em jogo questões de equidade social; contudo, enfatiza a inexorabilidade dos custos que tais ações sempre deflagram, privilegiando sempre as soluções que signifiquem elevação de capacidade produtiva, antes que aquelas meramente redistributivas.
De certa forma, este último ponto gera um paradoxo, na medida em que admite-se que o mercado nem sempre é capaz de conduzir a economia a um ponto "Pareto eficiente", contrariando assim um dos mais importantes fundamentos do funcionamento da economia de mercado. Destarte, a possibilidade de uma trajetória que implique em melhorias para todos significa que o mercado não é eficiente. Já os mais aguerridos intervencionistas, insistindo na mera transferência de renda ou de riqueza, admitem, implicitamente, que o mercado é eficiente.
O PROCESSO DE AJUSTAMENTO
Como vimos, o déficit público vem sendo um dos pontos focais na condução da política econômica brasileira. Estima-se que a dívida pública global (interna e externa) seja, hoje, aproximadamente CR$ 850 trilhões, ou 65% do PIB. O que preocupa, contudo, não é tanto sua magnitude relativa atual, mas sim as aceleradas taxas de seu crescimento.
A relação entre a dívida pública mobiliária interna da União em poder do mercado e o PIB aumentaram de menos de 5% em 1980 para 20% em 1985. Assim, enquanto no período o PIB nominal aumentou 75 vezes, a dívida mobiliária cresceu 302 vezes, podendo atingir CR$ 400 trilhões no total de títulos da dívida pública emitidos (cerca de 60% estando fora das autoridades monetárias). Nota-se ainda que o prazo médio de vencimento, que em setembro de 1983 era de 26 meses, caiu em setembro de 1985 para tão somente 11,5 meses.
A gravidade da situação orçamentária brasileira é perturbadora, e torna-se ainda mais evidente ao se levar em consideração as rígidas exigências e as dificuldades encontradas pelo setor público para combatê-la.
Observa-se que, não obstante a presente necessidade de redução do déficit público, o Tesouro Nacional vem obtendo superávits, que são transferidos para as autoridades monetárias e empresas estatais. As contas da execução financeira do Tesouro mostram que até setembro último havia um superávit acumulado total de forços de mais de CR$ 20 trilhões, ou quase 20% das receitas (CR$ 78,5 trilhões). Embora não haja limite para os esforços de contenção de despesas e de aumento da eficiência administrativa, é forçoso reconhecer que alguns resultados positivos já foram obtidos, e que a prestação de alguns tipos de serviços públicos não pode ser comprometida; pelo contrário, acumulam-se pressões no sentido de elevação de investimentos do governo para dar suporte à vigorosa retomada do crescimento econômico observada desde 1984.
Pelo lado das empresas estatais, contudo, a questão torna-se mais complicada. Não obstante haverem recebido até janeiro de 1985 mais de CR$ 16 trilhões do Tesouro, prevê-se que ainda gerarão um déficit de CR$ 30 trilhões até o final do ano.
O quadro 3 mostra a evolução dos gastos reais das empresas estatais no período 1980/86. Observa-se que os investimentos foram sensivelmente reduzidos, mas que os encargos financeiros mais do que triplicaram no período, exercendo considerável pressão nos demais componentes de gastos.
Aliás, a dimensão financeira do déficit é sentida no setor público como um todo, e não somente nas estatais. Dos dispêndios atuais do setor público, os encargos financeiros passaram de CR$ 20 trilhões em 1983 para CR$ 100 trilhões em 1985, podendo alcançar no ano de 1986 a cifra de CR$ 250 trilhões, ou cerca de 2/3 do total das receitas tributárias da União.
Não cabe aqui discutir as causas dos custos do setor público, apontados por alguns como resultados de ineficiência e, por outros, como uma opção de política econômica. O importante é saber como contornar a questão, que ameaça tornar-se explosiva.
Um simples cálculo aritmético mostra que, se o governo continuar rolando toda sua dívida (como vem ocorrendo), a um custo médio de 20%, e considerando-se que o seu endividamento atinge hoje 65% do PIB, somente o pagamento dos juros absorverá cerca de 8% da renda nacional.
E ainda mais grave, se o governo não conseguir controlar o déficit anual, que vem permanecendo em torno de 2% do PIB nos últimos anos, e considerando-se uma taxa de crescimento econômico de 7% ao ano, a relação dívida/PIB, somada à taxa de juros, passaria a exigir cerca de 10% do PIB somente para o pagamento de encargos.
Assim, o financiamento dos déficits brasileiros vem se tornando um dos mais complicados problemas para as autoridades.
As formas de financiá-lo são: o financiamento pelo endividamento externo, que só é possível havendo disponibilidade de meios de captação, e um déficit no balanço de pagamentos em conta corrente, que impede que os recursos externos se transformem em reservas. Outra forma é a simples emissão de moeda – o chamado imposto inflacionário – e, finalmente, o endividamento pela colocação de títulos da dívida pública.
O quadro 4 mostra as formas de financiamento interno, de onde se depreende a perda de potência do financiamento inflacionário, decorrente da própria aceleração da taxa de inflação.
A alternativa, pela venda dos títulos da dívida pública, vem se expandindo aceleradamente, como já pudemos observar anteriormente, pressionando a taxa de juros e comprometendo a capacidade de investimento do setor privado.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Conclui-se que se esgota rapidamente a capacidade de financiamento do déficit público brasileiro. Concomitantemente, a rigidez do setor estatal impede que o processo de endividamento seja revertido pela eliminação dos déficits. Agravando a situação, observa-se que o custo da rolagem da dívida supera, por ampla margem, a taxa de crescimento do PIB, gerando um processo circular com enorme potencial vicioso, tanto a nível orçamentário quanto na geração de fortes impulsos inflacionários.
As conclusões não podem ser otimistas, podendo-se antever a inexorabilidade da tomada de medidas de impacto tais como congelamento de preços e salários, desvalorização da dívida pública pela desindexação e/ou amplas ciclações das dívidas externa e interna.
Tudo isso demonstra claramente os custos de uma política econômica hipertrofiada do setor público.
Há que se atentar para a imediata reversão desta tendência, como única forma de se impedir a desestruturação da economia brasileira.
Finalizo repetindo as palavras ditas neste mesmo simpósio pelo Ministro Marco Maciel: "Não há por que temer o Estado ou segmento que ponha ação à sua vontade, representado pelo governo. Pelo contrário, nosso dever é lutar para conquistá-lo, como expressão máxima do poder político, porque só de posse dos instrumentos que ele oferece poderemos realizar os próprios fins da política. São os meios por ele proporcionados que poderão realizar as aspirações fundamentais do liberalismo contemporâneo: assegurar a igualdade de oportunidades, que é a aspiração de toda a sociedade liberal."
Publicado em dezembro de 1985.