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Marcos Cintra

BurocraTOcia (Prefácio)


Prefácio


As primeiras civilizações da Antiguidade sentiram necessidade de organizar as relações entre as pessoas e o Estado que se formava. Regras relacionadas à defesa dos vilarejos, à proteção física dos cidadãos, à arrecadação de impostos, à produção de bens, entre outras, foram sendo elaboradas como uma forma de racionalizar a organização humana. Delegou-se ao Estado o poder coercitivo para a elaboração de normas que permitissem à sociedade alcançar, com eficiência, seus objetivos econômicos, políticos e sociais. A burocracia foi, e continuará sendo, uma necessidade do desenvolvimento da humanidade.


O conjunto de normas burocráticas que se adotou durante milênios foi determinante para a transição do ser humano de seu estágio primitivo para uma sociedade organizada. As formas mais simples de organização evoluíram para estruturas sociais cada vez mais complexas. Entre inúmeros conflitos bélicos, as comunidades agrícolas se transformaram em feudos até chegarem à condição de cidades providas de serviços básicos e infraestrutura. Os governantes passaram a ser escolhidos através de processos políticos participativos e cada vez mais democráticos. O Estado ampliou suas atribuições, passando de mero coordenador de ações voltadas à defesa das comunidades para provedor de uma infinidade de bens públicos. Passou a ser um agente com função distributiva, e responsável pela correção de flutuações no sistema econômico.


Em suma, em todos os aspectos da evolução humana, a burocracia se fez presente como uma necessidade.


Contudo, como pode acontecer com qualquer criação humana, podem surgir distorções. No caso da burocracia, com o passar do tempo, ela passou a se alimentar dela mesma. Tornou-se um monstro disforme, voraz e cruel. Mais grave ainda é que grupos encastelados no poder passaram a usar a burocracia como mecanismo de dominação e de satisfação de seus interesses pessoais ou corporativos.


Nesse sentido, surge o oportuno trabalho de Luciano Bivar. O autor propôs um termo adequado para designar não a burocracia propriamente dita, mas uma disfunção dela: a "burocratocia", que se tornou um corpo parasitário na estrutura do Estado, tornando-a ineficiente e custosa. A "burocratocia" é um rótulo para designar a banda podre da burocracia.


Bivar chama a atenção na introdução de sua obra para uma sutileza no modus operandi da infestação dos "burocrácios". Segundo o autor, ocorre uma "invasão invisível" na estrutura social, que é difícil de ser percebida. Quando a sociedade toma consciência do mal que ela provoca, em geral, já é tarde, e o combate a ela e a seus efeitos torna-se árduo e penoso.


A disfunção da burocracia é uma característica que pode ser observada tanto no setor privado como nas várias instâncias do poder público. Ela pode ser resumida como: exagerado apego aos regulamentos, sendo os meios os principais objetivos do burocrata, em detrimento dos fins; excesso de formalismo e de papelório, fator que cria um ambiente complexo e moroso; exibição de sinais de autoridade, não raro de forma obsessiva; e resistência a mudanças, em que o burocrata luta para manter rotinas e procedimentos por temer pelo futuro na estrutura. Estas características predominantes acabam criando um sistema modorrento por conta da vida própria do corpo burocrático, que não se importa com as externalidades negativas que gera para a comunidade.


Quando se fala em burocracia, costuma-se imaginar a operação da máquina governamental em seus três níveis. Porém, o fenômeno ocorre em todos os segmentos sociais, públicos ou privados. Ocorre também nas atividades privadas, mais especificamente nas empresas. Contudo, no setor privado ele é mais facilmente combatido, uma vez que a busca pela eficiência é condição de sobrevivência.


Já no setor público a "burocratocia" encontra ambiente propício para proliferar e multiplica-se. Não há um antídoto sistêmico que a combata. A racionalidade nem sempre é a palavra de ordem de governantes, que se interessam mais em praticar atos populistas, proteger apaniguados e fazer da coisa pública um balcão de negócios. Isto gera custos crescentes para a máquina pública, inviabiliza atividades produtivas, compromete investimentos e produz enormes prejuízos para o cidadão pagador de impostos. Nesse organismo, a figura do "burocrácio" segue aumentando o alcance de seus tentáculos e destilando seu veneno contra o contribuinte.


Este parece ser o caso do poder público brasileiro, e a obra de Luciano Bivar surge como importante elemento de análise e subsídio para ações voltadas ao combate da praga da burocracia.


Vale citar que, em muitos casos, a manutenção da "burocratocia" no setor público tem lastro no setor privado, que encontra nessa anomalia um instrumento poderoso para obter vantagens de toda ordem, política ou econômica. Grupos dentro do poder público se mancomunam com agentes privados, dando origem a estruturas que sugam recursos públicos e geram distorções e injustiças sociais. Há claros interesses privados na manutenção de determinadas organizações burocráticas públicas viciadas.


Na obra Burocratocia - a invasão invisível, Luciano Bivar conceitua, na primeira parte do trabalho, a "burocratocia" como o "subconjunto dos burocratas que influenciam, boicotam, se corporatizam, sempre em benefício do Poder Dominante, e se sentem inatingíveis, em qualquer que seja o governo". Em determinada passagem do texto, diz que os "burocrácios" pretendem ser a própria lei e mostra como ocorre a transição da burocracia para a "burocratocia".


Na segunda parte, o autor insere o tema na história brasileira mostrando que, ao que tudo indica, a praga dos vícios burocráticos já se fazia presente desde o período colonial. Bivar aponta esta anomalia como um dos fatores de perpetuação de nosso subdesenvolvimento.


A obra enfatiza a questão fiscal e tributária no Brasil como um dos campos mais férteis para a disseminação de resistentes focos de anomalias burocráticas. Mostra a composição dos quase dois milhões de servidores públicos federais. Concordo plenamente com o autor quando ele diz que não cabe atribuir a eles a responsabilidade pelo peso dos impostos. Acrescento ainda que a maioria desses servidores não carrega o rótulo de "burocrácio", mas aproveito a oportunidade para lembrar, de passagem, que reside neste segmento uma das maiores aberrações no tocante ao poder da burocracia pública.


Bivar mostra que 970 mil servidores federais são inativos, agravando o desequilíbrio das contas públicas do País. O poder corporativo dos servidores foi capaz de criar privilégios na concessão de aposentadorias e pensões que sangram as despesas previdenciárias. Muitos dos inativos recebem seus benefícios (a média dos regimes próprios é muito superior à verificada no RGPS) em descompasso enorme com o valor com que contribuíram quando estavam na ativa.


No âmbito das finanças públicas, a burocracia brasileira se delicia. A área tributária é, seguramente, a que mais conta com contingentes de burocratas ávidos por exercer seus poderes. Entre todos os aspectos da vida moderna, em nosso país, os impostos são emblemáticos do poder burocrático. Isto vem desde o período colonial, quando os burocratas da Coroa chegavam às raias da violência física para extrair tributos do colono. Hoje, a opressão apenas mudou seus métodos, mas continua tão dramática como foi há cinco séculos.


O sistema tributário brasileiro é absurdamente custoso, complexo e impregnado de normas e procedimentos que proliferam dia após dia. Entre 1988 e 2004, foram editadas no País quase 220 mil regras tributárias, através de leis, medidas provisórias, instruções normativas, decretos, entre outros. Isto equivale a 55 medidas por dia útil.


Outro caso exemplar da espasmódica burocracia tributária brasileira foi a mudança na forma de cobrança da Cofins, a partir de 2004. Em pouco mais de dois anos da nova sistemática, ocorreram quase 150 mudanças na legislação do tributo. Virou uma colcha de retalhos absurdamente confusa, a ponto de a Secretaria da Receita Federal reconhecer, no início de 2006, que nem os fiscais e técnicos do órgão conseguiam entender o tributo.


O aspecto tributário é a principal patologia burocrática, como bem demonstrado por Bivar. O imposto, como elemento estratégico ao desenvolvimento, é fator secundário na visão do burocrata. As mudanças vão ocorrendo numa velocidade absurda e tornando o sistema cada vez mais complexo e moroso. As guias de arrecadação e os livros e registros contábeis exigem uma convivência com papelório, que é um inferno para o contribuinte. Ninguém consegue acompanhar as normas e procedimentos, a não ser o todo-poderoso burocrata, que surge como a autoridade que pode destrinchar a lei e punir seus infratores. Nesse caos, surgem os corruptos e a sonegação é prêmio a quem consegue praticá-la.


A última parte da obra de Bivar traz propostas que poderiam eliminar os males provocados pelos "burocrácios". Destaco a necessidade apontada pelo autor de uma imediata reforma política e eleitoral no País. Bivar aponta a resistência criada pelo corpo burocrático a quaisquer mudanças que possam eliminar privilégios. Uma das mais gritantes é o sistema eleitoral que permite que candidatos "sem voto", como vices e suplentes, assumam vagas de outros candidatos legitimamente eleitos. Além disso, Bivar chama a atenção para a perpetuação no poder de velhos caciques da política, que vivem sintonizados com a estrutura doente da "burocratocia".


Outra proposta insistentemente defendida e patrocinada por Luciano Bivar se refere à reforma da burocracia fiscal do País. O projeto do Imposto Único propõe uma mudança ampla e profunda na estrutura de impostos. A ideia é substituir todos os impostos declaratórios por um incidente sobre as movimentações financeiras que ocorrem no setor bancário. Acabaria a necessidade de livros contábeis e das declarações de toda natureza. O Imposto Único seria cobrado automaticamente quando o correntista movimentasse sua conta através de cheques, débitos eletrônicos, transferências e outras formas de lançamento. A alíquota seria muito baixa por conta da expansão da base imponível e as empresas não teriam mais os elevados custos, necessários apenas para cumprir a lei tributária. A sonegação se tornaria remota e a corrupção praticada por fiscais acabaria. Toda e qualquer operação mercantil somente seria considerada legalmente liquidada, a partir de determinado valor, se ocorresse dentro do sistema bancário.


A proposta do Imposto Único, que foi objeto de importante projeto de Emenda à Constituição, de autoria do então deputado federal Luciano Bivar, é a maior inovação tributária que já surgiu no País. Há uma estrutura pronta para sua implementação, uma vez que o sistema bancário brasileiro é altamente informatizado, cobrindo em tempo real todo o território nacional. Além disso, a sociedade brasileira já deixou há décadas de usar a moeda manual, substituindo-a pela moeda escritural bancária. Os "burocrácios" resistirão às mudanças que Luciano Bivar nos apresenta. Mas a evolução do mundo está contra eles. Já não se está mais nas pequenas e isoladas aldeias da Antiguidade, mas, sim, em marcha acelerada rumo à globalização.


O Brasil pode, e precisa, ter coragem para mudar. Esta é a principal mensagem de Luciano Bivar. É preciso mobilização para acabar com a resistência de grupos que se beneficiam das ineficiências geradas pelos interesses dos "burocrácios". É fundamental uma cruzada contra a burocracia, que relega o País ao atraso, na economia ou na política.


O presente trabalho de Luciano Bivar é uma arma e um instrumento com que o leitor, engajado na luta pela modernização, poderá contar em sua batalha.

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