top of page
  • Marcos Cintra

A função arrecadatória dos impostos precisa ser resgatada

A reforma tributária no Brasil tornou-se algo difuso e excessivamente diversificado, perdendo foco e dificultando a formação de apoios para sua aprovação. Tecnicamente, a confusão é enorme, e certos conceitos essencialmente heurísticos, como cumulatividade, equidade e neutralidade, foram assimilados de forma acrítica, destituídos de conteúdo finalístico específico. Tornaram-se chavões e palavras de ordem, sem significado empírico definido. Nesse debate, que não instrui nem encaminha soluções, o processo de instituição de um novo modelo de impostos para o país encontra-se paralisado.


Um exemplo marcante dessa disfunção é a tendência de enxergar no sistema tributário o instrumento para o atendimento de inúmeros desejos da sociedade. Visões românticas enxergam nos tributos a expressão do espírito cívico do cidadão. Humanitários passaram a acreditar que a única forma de distribuir renda e riqueza é através da tributação punitiva dos mais eficientes. Economistas e líderes políticos buscam nos impostos, ou na isenção deles, o caminho principal para estimular o desenvolvimento. Ecologistas e sanitaristas usam o sistema como forma de proteção ao meio ambiente e de punição aos infratores. Planejadores urbanos e regionais utilizam-no como mecanismo de indução para o controle espacial das atividades econômicas. Defensores da reforma agrária querem a tributação corretiva dos latifundiários. Os exportadores querem câmbio competitivo pela cobrança de tributos dos investidores externos e assim por diante. Em síntese, a visão extra fiscal dos tributos sufoca sua função essencial, a fiscal. Fica em segundo plano o objetivo fundamental do sistema tributário, que é arrecadar recursos para o Estado financiar suas atividades.


Nesse jogo de múltiplos interesses conflitantes, gerou-se um conjunto de equações simultâneas com mais incógnitas do que equações, portanto, sem solução. Urge resgatar a função arrecadatória dos tributos, que devem ser utilizados para gerar receitas para o poder público e apenas secundariamente para serem instrumentos para obtenção de outras finalidades. Os demais objetivos do Estado podem ser atingidos com outros instrumentos complementares à disposição dos formuladores de política econômica. Subsídios, transferências diretas, punições pecuniárias, compras governamentais, regulação e até mesmo intervenções diretas são instrumentos à disposição dos governos para atingir os objetivos alternativos que hoje sobrecarregam os tributaristas públicos.


O mais preocupante ainda é que os princípios que deveriam nortear a função arrecadatória dos tributos ganharam status de metas em si mesmos. Por exemplo, um princípio basilar é o de que os tributos devem arrecadar recursos da forma mais neutra, justa e econômica possível. Mas a primeira meta é arrecadar. Depois de atendida esta premissa é que se impõem as condições subsidiárias. De que adianta tributos justos e neutros se não arrecadam? O exemplo mais gritante deste conflito são os impostos sobre valor agregado, no caso brasileiro o ICMS. São teoricamente neutros, ainda que na prática estejam longe disso. Mas isso em nada perturba seus defensores, que querem a pureza de sua aplicação mesmo que isso implique sérios obstáculos arrecadatórios e profundas distorções nos padrões aceitáveis de equidade. Neutros, porém com dificuldades arrecadatórias; permissivos com a evasão, portanto injustos! Mas há quem os continue defendendo escorados apenas em seus princípios técnicos heurísticos de livros-textos de finanças públicas, ainda que destituídos de qualquer projeção dessas qualidades às condições do mundo real. Então, quando para garantir que cumpram a função arrecadatória praticam ajustes, como a substituição tributária, mas os puristas continuam entoando seus gritos de guerra contra a cumulatividade.


Dizem os críticos da substituição tributária que seus defensores sacrificam tudo pelo princípio da facilidade (ou comodidade) tributária. Por outro lado, esquecem-se de que eles mesmos adoram a facilidade (ou comodidade) intelectual, e que ao invés de analisarem a realidade a partir de novos e desafiadores fatos concretos, adotam, à revelia da realidade e dos dados empíricos, os marcos teóricos convencionais já desgastados por décadas de evolução da economia mundial.


Outra consequência funesta desta visão ortodoxa e comodista dos tributaristas tupiniquins, que se auto-bloquearam dentro dos livros-textos e dos conceitos teóricos assimilados em seus bancos universitários, é o repúdio à cumulatividade ou "cascata tributária". Partem do princípio heurístico de que a cascata é inerente aos tributos cumulativos (o que é correto), e afirmam que os tributos sobre valor agregado nunca o são (o que é incorreto).


Como vamos voltar a debater a reforma tributária a partir de 2011 convém aos envolvidos na questão que sejam mais críticos, deixando de lado em suas análises conceitos essencialmente teóricos, e se concentrem em aspectos da realidade tributária.


 

Marcos Cintra é doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

Topo
bottom of page