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Marcos Cintra - Correio Braziliense

Dique Furado

Certas pessoas ou sociedades sofrem passivamente as mais terríveis agruras e, mesmo conhecendo as causas, não buscam eliminá-las de forma permanente. Contentam-se com analgésicos, paliativos e remendos. É o caso do Brasil que se apega com fervor a um sistema tributário podre, eivado de ineficiência, corrupção e iniquidades. Não faz a reforma tributária. É como um dique furado que, em vez de ser reconstruído, deixa a água vazar, oferecendo como resposta para tentar conter o escoamento uma sequência de barreiras pontuais e casuísticas, sem ir à raiz dos problemas. Consequências dessa postura permissiva podem ser aferidas na descoberta de mais um megaesquema de corrupção no país, maior do que todos os já vistos. A Operação Zelotes apurou que cerca de R$ 19 bilhões em multas aplicadas a empresas pela Receita Federal foram anuladas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão do Ministério da Fazenda que julga em última instância recursos de contribuintes autuados pelo fisco. Em troca de decisões negociadas, conselheiros que analisavam os casos e consultores que ofereciam o serviço para os contribuintes autuados recebiam propina que variava entre 1% e 10% do valor da dívida. O esquema desarticulado pela Polícia Federal é a consequência direta do gongórico sistema tributário que vigora no país. O Carf atua em um universo de impostos complexos, infestados de normas mutantes e de difícil interpretação até para os mais experientes tributaristas. Vale lembrar que a complexidade tributária brasileira decorre de estrutura convencional, arcaica, declaratória, burocratizada e artesanal que vem sendo paulatinamente construída ao longo de décadas. As constantes mudanças na legislação tributária brasileira não têm conseguido mais do que tapar buracos, ou aperfeiçoar o obsoleto, como dizia argutamente Roberto Campos. Disso resulta o risco constante de autuação pelo Fisco decorrente, em grande parte, de possíveis conflitos de interpretação de leis complexas, carregadas de obrigações acessórias, e que mudam em ritmo insano. Além, evidentemente, da oportunidade de identificação de inúmeros loopholes a permitirem as mais variadas formas de evasão e de sonegação. Criou-se assim ambiente fértil para a proliferação de contenciosos, como o que gerou o esquema de corrupção que a PF está investigando. Com certeza, os resultados das investigações serão seguidos de novas rodadas de controles, novos procedimentos burocráticos, estabelecimento de múltiplos controles e novos níveis de alçadas decisórias. Para coibir os crimes de uma minoria, prejudica-se toda a eficiência e agilidade de um sistema que afeta milhões de contribuintes inocentes e indefesos. Exemplo desse círculo vicioso é a babel construída em torno dos preços de transferência no comércio internacional, originado no legítimo esforço de conter a evasão tributária no fluxo comercial com o exterior. Há que se buscar a instituição de um sistema que não seja caldo de cultura para tantos desmandos, e que contemple a substituição dos burocráticos impostos declaratórios por uma forma de cobrança automática e imune à corrupção, como as movimentações financeiras nos bancos. Trata-se de uma base de tributação ampla, utilizada com sucesso no Brasil e que não exige a parafernália de obrigações acessórias como as dos atuais tributos. Cabe lembrar a experiência simplificadora da CPMF, tributo extinto em 2008 e que utilizava a movimentação financeira como base de cobrança. Por ser tributo não declaratório, ele gerou número reduzido de disputas judiciais quando confrontado com os impostos tradicionais. Isso foi constatado em levantamento do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2009, que comparou a quantidade de acórdãos envolvendo vários tributos no judiciário. No Superior Tribunal Federal (STF) ocorreram, por exemplo, 375 casos envolvendo o PIS; 359, a Cofins; e 156, o IRPJ. A CPMF teve apenas 51 casos. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) ocorreram 4.399 acórdãos em torno do PIS; 3.615, da Cofins; 1.758, do IPI; e 1.010, do IRPJ. Em relação à CPMF, foram apenas 168. A complexidade e a consequente burocracia do sistema tributário nacional é sorvedouro de recursos da estrutura produtiva, representa fator limitador da capacidade competitiva do país e consiste em facilitador da sonegação. O escândalo do Carf choca a todos. É preciso punir, mas isso não basta. De pouco valerá aumentar os controles e a burocracia fiscalizatória. A água vertida do dique sempre encontrará a vazão se um novo sistema não for reconstruído para tornar-se inerentemente resistente ao crime tributário. É preciso uma estrutura de impostos ousada, moderna, simples e, ao mesmo tempo, parruda. A movimentação financeira é a base a ser explorada nesta busca.

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