A administração pública sempre foi caracterizada pela falta de compromisso com orçamentos e metas fiscais. Até há pouco tempo, governantes perdulários agiam de maneira temerária, pouco se importando com a racionalização e a otimização na aplicação dos recursos públicos. A regra era gastar, sempre, mesmo que não houvesse disponibilidade financeira ou mesmo que o endividamento explodisse no futuro. O Brasil conhece bem os efeitos desse vício no trato das contas públicas. Os déficits crônicos foram determinantes na geração da inflação galopante iniciada nos anos 80. Inúmeras obras inacabadas ou improdutivas absorveram montantes incalculáveis de recursos. A lei complementar 101/2000 instituiu a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e representou um marco na administração pública. Por meio dela, os governantes foram obrigados a obedecer a normas e a limites para administrar os recursos públicos, sendo forçados a prestar contas sobre quanto arrecadam e como gastam. A LRF foi um grande passo no sentido de disciplinar a gestão pública no país e impor responsabilidade aos atos dos governantes, uma vez que impõe teto para as despesas com funcionários públicos nos três níveis de governo, inclusive o Legislativo e o Judiciário; limita severamente o endividamento público; determina a criação de metas fiscais para melhor controle das receitas e despesas; proíbe que governantes criem novos gastos sem que se indique sua fonte de receita ou a redução compensatória de outra despesa; e aplica restrições adicionais em ano eleitoral, proibindo operações de crédito por antecipação de receita e a transferência de despesas para exercícios seguintes para as quais não haja caixa. Um dos principais méritos da LRF é a obrigatoriedade do administrador público de manter um gerenciamento constante do orçamento, de tal forma a atender os ditames da legislação e, assim, não ser enquadrado na temida Lei dos Crimes Fiscais, aprovada em 2000, e que prevê a perda de direitos políticos e cassações. De um modo geral, com a LRF, o princípio básico da restrição orçamentária imposta a todo agente econômico passa a valer também para a administração pública. É difícil imaginar que algum grupo possa se declarar contrário à LRF. No entanto, é importante lembrar que, quando de sua criação, na gestão do presidente FHC, o PT alegou inconstitucionalidade de vários de seus dispositivos. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal se manifestou contrariamente aos argumentos do partido e manteve intacta a base da LRF. Após quase cinco anos em vigor, a LRF começa a fazer parte da cultura administrativa do país. Porém fatos recentes revelam a tentativa de desmoralização dessa lei, que deveria ser prestigiada. Forças políticas têm demonstrado casuísmo em seus discursos e desrespeito às determinações da LRF em seus atos administrativos. Em São Paulo, o prefeito José Serra vem defendendo mudanças ao afirmar que a dívida do município é "impagável". Sua proposta é alterar o indexador da dívida com a União e a ampliação do limite da dívida líquida de 1,2 para 2 vezes a receita corrente. Ao casuísmo do prefeito se soma a MP 237, que tenta regularizar operações de crédito ilegais realizadas por mais de 20 prefeituras envolvendo o Reluz (Programa Nacional de Iluminação Pública). Entre as administrações envolvidas em irregularidades está a da ex-prefeita Marta Suplicy, que, segundo um ofício do ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) enviado ao Senado, "feriu o artigo 32 da LRF". A MP 237 é uma aberração. Foi editada para legalizar atos administrativos irregulares. É condenável essa aparente conspiração suprapartidária contra a LRF. De um lado, o PSDB quer mudanças em atos que o presidente FHC e o governador Mário Covas se esforçaram com afinco para se ajustar. De outro, o PT rasga uma legislação inovadora que disciplina um fundamento básico para o desenvolvimento econômico do país. Ambos oferecem um péssimo exemplo. Cabe apontar outras afrontas, como a interpretação, feita pela Fazenda, da resolução 40/2001 do Senado, jogando para 2016 o prazo para atendimento dos limites de endividamento de Estados e municípios. A punição, se houver, ficará restrita apenas à proibição de contratação de novas operações de crédito. O prazo inicial de abril deste ano para o cumprimento de limites de endividamento de Estados e municípios não vale mais. Administradores que se ajustaram à LRF, como houve em São Bernardo do Campo, onde sou secretário de Finanças, sentem-se desrespeitados após empreenderem planos de austeridade que levaram o município a atender plenamente a LRF. Já os que não cumpriram a lei são beneficiados. É inadmissível que, após tanto esforço para fazer "pegar" a LRF, o PSDB e o PT se unam para mudá-la. Os tribunais de contas e os promotores públicos não podem se omitir nesses casos. Que se punam os responsáveis pela violência contra uma lei que precisa ser defendida a todo custo. Chega de tanta farra no uso do dinheiro público.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.