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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Repactuação da dívida pública e o "triângulo intocável"


Dando seqüência à série de artigos iniciada em 17 de maio, vamos analisar hoje mais uma alternativa para impulsionar a retomada do crescimento econômico brasileiro: a renegociação da dívida mobiliária do governo. Como afirmado nos textos anteriores, a boa política econômica requer um conjunto de ações que afete positivamente os lados do "triângulo intocável", ou seja, que permita simultaneamente a redução do endividamento público, o controle da inflação e o equilíbrio do balanço de pagamentos. Praticar uma política que promova o desenvolvimento, mas que afete negativamente um desses pré-requisitos essenciais para o crescimento auto-sustentável da economia a médio e longo prazos, seria política populista e que apenas daria seqüência à característica de "stop-and-go" que vem marcando a evolução da economia brasileira nos últimos 20 anos. Renegociar a dívida mobiliária compreende a redefinição de novos termos para um compromisso público que cresceu aceleradamente a partir de meados dos anos 90 pela assunção de dívidas de Estados e municípios e de "esqueletos" da União. Além disso, a estratosférica taxa de juros praticada no país contribuiu para a explosão do endividamento nacional. De 1994 a 2003, a dívida mobiliária em relação ao PIB quase triplicou. A dívida líquida do setor público consolidado (União, Banco Central, Estados, municípios e estatais) registrou um estoque no final de março deste ano de R$ 924,4 bilhões, montante correspondente a 57% do PIB. Desse total, a dívida mobiliária do Tesouro Nacional corresponde a R$ 710,5 bilhões. No PAF (Plano Anual de Financiamento) apresentado pela Secretaria do Tesouro Nacional para o ano de 2004, o estoque da dívida mobiliária em poder público era de R$ 731,4 bilhões em dezembro de 2003, com prazo médio de 31,3 meses e 35,3% do total a vencer em 12 meses. O PAF mostra ainda que esse estoque no final de 2003 era indexado em 61,4% à Selic, em 13,6% a índices de preços, em 12,5% a juro prefixado, em 10,8% ao câmbio e em 1,8% à TR. A dívida mobiliária brasileira é de alto custo e de prazo muito reduzido quando comparada com a de outros países. A taxa real de juro de cerca de 10% ao ano é a segunda maior do mundo. Segundo estudos da Globalinvest, em abril deste ano, o juro real médio anual era de 0,8% nos países desenvolvidos e de 4% nos países emergentes. A média mundial era de 2,2%. O perfil da dívida mobiliária brasileira é o retrato de um país com economia instável e de risco elevado. Mudar essa situação somente seria possível por meio de um processo de crescimento sustentado, com estabilidade monetária e com regras conhecidas. Recentemente alguns economistas voltaram a propor a renegociação da dívida como alternativa para a crise de crescimento do país. Segundo esse grupo, a redução do serviço da dívida tornaria possível a retomada do crescimento da economia. Os defensores da renegociação argumentam que a medida não teria a conotação de calote, uma vez que deveria ser adotada de modo consensual com os credores. Ou seja, não haveria quebra de contrato, e sim uma proposta negociada de tal forma que a dívida seja honrada no futuro. O efeito dessa proposta de renegociação da dívida sobre o "triângulo intocável" mostra que a ampliação dos prazos de vencimento e a redução das despesas com os juros poderiam canalizar recursos para investimentos na ampliação e na modernização da estrutura produtiva brasileira. Os encargos exigidos pelo endividamento público vêm sendo um dos principais fatores de pressão na carga tributária. São um elemento determinante na transferência de renda da produção para os rentistas. No ano passado, as despesas com juros somaram quase R$ 150 bilhões e neste ano devem ultrapassar os R$ 180 bilhões. O déficit público que o país registra todo ano é em grande parte explicado pelo elevado custo do serviço da dívida, que, se reduzido, permitiria a realização de investimentos na deteriorada infra-estrutura física e na maior oferta de crédito para o setor privado. O efeito do maior fluxo de investimentos seria um maior crescimento do PIB e, conseqüentemente, a proporção da dívida em relação ao PIB seria declinante. Portanto a renegociação equacionaria o problema do lado do endividamento do "triângulo", ou seja, teríamos uma redução na relação dívida/PIB. Por outro lado, a renegociação da dívida pode deflagrar um abalo na credibilidade do país ante os investidores. O fator "expectativa" é determinante para o movimento da economia. O aumento da incerteza, ou seja, a desconfiança dos aplicadores em fundos de investimento, aplicação lastreada em títulos públicos federais, poderia acarretar a fuga de capitais. A mudança de posição dos rentistas tenderia a ser direcionada para ativos como imóveis e moeda estrangeira. A maior demanda por essas aplicações teria como efeito a pressão sobre o nível geral de preços da economia. Em suma, renegociar a dívida poderia ter um efeito pernicioso no lado da inflação do "triângulo". No lado do balanço de pagamentos, a expectativa de que o governo poderia ter dificuldades em honrar seus compromissos tenderia a causar retração no fluxo de recursos externos. O capital internacional buscaria alternativas em países em que a percepção da capacidade do governo de resgatar seus compromissos fosse positiva. Historicamente, as transações correntes brasileiras sempre foram deficitárias, com breves exceções. A entrada de capital externo é fundamental para o país equilibrar o balanço de pagamentos. A renegociação pode deteriorar as expectativas dos investidores externos e comprometer esse equilíbrio. Em resumo, repactuar a dívida pública pode não ser medida adequada. Seria um paliativo que poderia criar uma bolha de crescimento, cujo estouro demandaria ajustes de elevado custo social para a correção de desequilíbrios na inflação e nas contas externas do país.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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