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  • Marcos Cintra

Um lastro para o Real


Revista Economia em Perspectiva

Em outubro de 1993, quando o então ministro fazenda — e hoje presidente da república — Fernando Henrique Cardoso, lançou as idéias do Plano Real, foi realçada a importância da reorganização fiscal do Estado e destacada a necessidade da revisão constitucional. Esta, para extinguir restrições que impediam a coordenação e o gerenciamento das ações e dos negócios do país; aquela, com vistas a alcançar o equilíbrio das finanças públicas. Ambas consideradas indispensáveis ao êxito do Plano Real.

A revisão fiscal imediata seria conseguida com a reprogramação do Orçamento para 1994 e a criação, via emenda constitucional, do Fundo Social de Emergência (FSE), para financiar os programas sociais e outros especiais de relevante interesses econômico e social com recursos não inflacionários. Estas medidas assegurariam o equilíbrio orçamentário em 1994—1995.

As propostas a ser, na ocasião, encaminhadas ao Congresso revisor contemplavam as reformas estruturais do Estado — reorganização fiscal, enfatizando a introdução do realismo orçamentário, o abrandamento da rigidez na execução do orçamento (ditada pelas receitas vinculadas) e a redistribuição de encargos entre a União e demais níveis de governo; a reforma tributária, apregoando a simplificação do sistema (através da diminuição do número de tributos — impostos, taxas e contribuições), a ampliação do universos de contribuintes e das formas automáticas de recolhimento, aumento da progressividade e diminuição de alíquotas; a reforma administrativa do setor público, com relevo especial para a gestão do pessoal, revisão do conceito de estabilidade do servidor e de isonomia entre servidores; a reforma da ordem econômica, com a flexibilização dos monopólios estatais, como forma de abrir espaço à participação da iniciativa privada na exploração, transporte e refino do petróleo, na geração e distribuição de energia e nas telecomunicações, e a dinamização do Programa Nacional de Desestatização (PND); e a reforma da Previdência, recomendando o cessar de benefícios tidos como privilégios, o fim da aposentadoria por tempo de serviço, a instituição da previdência complementar, etc.

As reformas estruturais —já se sabe — não aconteceram, seja porque o Congresso e a opinião pública delas se desinteressaram, empolgados com as conclusões da CPI do Orçamento e com os temas da campanha eleitoral de 1994, seja por falta de empenho do próprio governo. A verdade é que as reformas de base, que constituiriam a primeira fase do plano de estabilização, acabaram sendo jogadas para a última etapa do processo, transformando-se em expectativa, em esperança. Adiadas, ao invés de atuar como lastro do plano, deixaram-no fortemente e desbalanceado. A reforma tributária limitou-se à majoração de alíquotas e à introdução de alíquota nova no Imposto de Renda da pessoa física e à criação de novo encargo tributário, representado pelo Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (PIVF).

Com essa enorme lacuna, seguiram-se as fases subsequentes do plano. A superindexação da economia foi executada com competência, com a introdução da URV, propiciando a quebra da inércia inflacionária e condições favoráveis à troca da moeda- Esta, igualmente bem-sucedida, ocorreu em julho de 1994. Desde então, o governo vem administrando percalços. A tolerada valorização do real frente ao dólar, devido à grande entrada de recursos externos, estimulada pela desinflação e as altas taxas internas dos juros; a ameaça de crise cambial detonada pela crise do México e pela atropelada e descuidada abertura da economia.

Mas a equipe econômica vem agindo com presteza. Administrou os fluxos externos de capitais, procedeu aos ajustes tarifários, desvalorizou o real, desarmou a bomba cambial e reverteu a tendência de déficit na balança comercial, sem criar pressões inflacionárias e pôr em risco a estabilidade alcançada com o real. Tanto que as taxas de juros estão em queda e a recessão tende a ser revertida.

A pauta das reformas foi retomada em 1995, sob o atual governo. Iniciada com a proposta de alterações na Previdência, gerou grande resistência e desgaste, até ser adiada, dando lugar às propostas de mudanças da ordem econômica, consubstanciada na quebra dos monopólios. Só que algumas ainda não completaram seu trâmite no Congresso ou estão na dependência de leis complementares para se tornar operacionais e ter conseqüência prática. De qualquer forma, repercutiram favoravelmente no ânimo dos investidores.

Mas as demais mudanças estruturais não progrediram. Permanecem emperradas as reformas tributária, administrativa do setor público e da Previdência. A reforma tributária, segundo declarações do presidente da República, vai ser lenta e gradual. Desconsiderando as propostas de emenda constitucional existentes no Congresso, versando sobre matéria tributária, depois de marchas e contramarchas, por conta das divergências que despertou no seio da própria equipe econômica e da sua base de sustentação parlamentar, o governo encaminhou sua proposta ao Congresso no final do mês de agosto. Tem sido considerada tímida por diferentes segmentos sociais e por aliados do governo e dela não são esperados desdobramentos antes de 1998. Entretanto, incapaz de reduzir gastos, o governo continua a produzir déficits. Tanto que o rombo orçamentário esperado para 1995 é de cerca de US$ 10 bilhões. Em face da demora prevista para o trâmite da matéria, já se cuida de prorrogar o Fundo Social de Emergência, criado em 1993 para viger no biênio 1994—1995.

A reforma administrativa do setor público vem sendo discutida, entra e sai da ordem do dia, gera controvérsias em face dos interesses corporativistas atingidos; a reforma da Previdência, depois de toda a barulhenta celeuma que causou, devido à sofreguidão e inabilidade do governo na condução do assunto, é, hoje, solene e convenientemente ignorado. As privatizações arrastam-se.

Enquanto isso, o governo e sua burocracia cuidam de exercitar seu vezo de atazanar o contribuinte, com freqüentes alterações normativas dos impostos hoje existentes ou da criação de impostos adicionais, buscando, sempre, elevar sua capacidade de extrair-lhe, mais e mais, recursos. O arrocho tributário é brutal. Em 1995, a receita de tributos deve superar 30% do PIB, o nível mais alto da história. Nos primeiros seis meses, a arrecadação federal aumentou cerca de 40% em relação a 1994, que, por sua vez, já havia aumentado 30% sobre a do ano anterior. Em outras palavras, em dois anos, os impostos federais aumentaram 70%. Cabe lembrar que, ao longo dos últimos quinze anos, a carga tributária total tem se situado na faixa de 22% a 25% do PB. Se chegar a 35% do PIB, como dizem alguns, o aumento de impostos terá sido de mais de 50%, em apenas dois anos! Agora, já se fala em modificar o Imposto de Renda, pessoa jurídica e pessoa física, e em criar a Contribuição sobre Movimentação Financeira — Cbf. Cuida-se, portanto, de acentuar a já altíssima concentração do sistema tributário. Pois setenta empresas representam 50% da arrecadação do PI; 170 respondem por 50% da arrecadação do Imposto de Renda pessoa jurídica; 350 arcam com 50% do total da Cofins. A base de incidência é concentrada tanto no setor produtivo como geograficamente. Quatro mil municípios têm, como receita própria, 3% da receita disponível. Uma constatação que põe em xeque a noção de federalismo: até que ponto não é uma abstração, se 80% dos municípios têm uma receita própria que representa 3% da receita disponível?

A proposta de reforma tributária do governo, em extremo conservadora, mantém a estrutura do sistema atual, com o predomínio dos impostos declaratórios, aumentando o estímulo à sonegação. Junte-se a isto a necessidade de maior alíquota do novo imposto decorrente da união do ICMS com o PI, a fim de assegurar a mesma arrecadação atual. Se com alíquota de 17% a taxa de evasão, hoje, já é elevada, é de se esperar que venha a aumentar, substancialmente, se subir para 25% a 30%, porque isso vai elevar a relação custo/beneficio para o sonegador. Por aqui, também, já se perde a desejada redução de alíquotas. Ademais, ameaça o propósito da simplificação, pois, com a extinção do PI, deverá duplicar o aparato burocrático, as normas e exigências operacionais da competência tributária compartilhada por Estados e União, no novo ICMS. O objetivo de aumentar a base de incidência mais equânime da carga tributária é de alcance duvidoso, pois a progressividade formal, quando a evasão é alta, vira regressividade efetiva. Como se não bastasse, a proposta do governo tumultua, ainda mais, o cenário, ao trazer, em seu bojo, a figura do empréstimo compulsório.

Em meio a tanta controvérsia, o governo e sua equipe econômica poderia romper com sua postura tradicionalista e o preconceito do "não vi e não gostei" e conhecer a proposta do Imposto Único, examiná-la, seriamente, e tomá-la como a alternativa inovadora e revolucionária de reforma tributária que ela é. Ou, pelo menos, considerar as sugestões de alteração constitucional de ordem tributária já existentes no Congresso.

A citada presteza da equipe econômica na administração dos fluxos externos de capitais, na condução dos ajustes tarifários, na área cambial, nas taxas de juros e na reversão da recessão, não obstante seu êxito, encerrou os traumas das improvisações, hesitações, marchas e contramarchas, faltas e excessos e, não raro, quebra drástica nas regas do jogo, que toldaram as expectativas dos agentes econômicos, internos e externos, por lhes negar um horizonte de planejamento em cenário pleno de embaraços e incertezas.

Tudo porque a irracionalidade do sistema tributário não foi rompida, a sonegação e a evasão fiscais perduram, cada vez mais os cortes de gastos são difíceis, a receita insuficiente e os déficits persistentes. Isto, evidentemente, limita ou retarda a eficácia das medidas de política econômica em todos aqueles pontos em que o governo atuou para conjurar a crise e resguardar a estabilidade alcançada até agora. O custo tem sido elevado, a plena inserção competitiva do país no mercado internacional tem sido obstaculada pelo "custo Brasil".

Sem o lastro das reformas, permanecem as causas e o risco de novas crises. Então, cabe perguntar: até quando o Plano Real vai suportar?

 

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 50, é doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), vereador da cidade de São Paulo pelo PL e professor titular da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi secretário de Planejamento e de Privatização e Parceria do Município de São Paulo (administração Paulo Maluf).

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