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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Vontade de enterrar ou de salvar


"Ninguém gosta de quem traz más notícias". (Sófocles)

A irracionalidade humana é infinita. Um exemplo é a síndrome do avestruz. Ela ocorre quando, por temor da doença, se evita consultar o médico. Ou achando que, maltratando os portadores de más notícias, se consegue evitar a concretização de fatos indesejáveis que os mesmos têm a anunciar.

Se alguém deseja conhecer de perto o efeito dessa síndrome, basta ler a matéria denominada "Os coveiros do Real não se rendem, publicada na revista "Exame" de 05/07/95. Na página 43, alguns economistas sofrem os ataques dos que acham que podem salvar o Real, higienizando as páginas dos jornais contra os germes do que se chamou de "fracassomania".

Esqueceu-se aquela revista que a avaliação permanente é a base do controle de qualidade. Analisar, de forma crítica, está na essência da atividade acadêmica. Trata-se de mecanismo de aperfeiçoamento.

A revista extraiu desta coluna trecho publicado em outubro de 94, que dizia: "no painel de comando do Plano Real todas as luzes amarelas devem estar piscando". Extraiu a seguir alguns alertas decorrentes daquela análise, como a perspectiva de alta da inflação, âncora monetária frouxa, problemas emergentes na área cambial e perspectivas de reindexação generalizada.

O IPC-r subiu de 1,51% em setembro para 3,27% em novembro; O IGP-DI saltou de 1,55% em setembro para 2,55% em outubro; o ICV do Dieese, de 0,96% para 3,54%; o IPC da Fipe, de 0,82% para 3,17%.

A queda no preço da cesta básica, desde o início do Plano Real, não ocorreu de forma monotônica. Em novembro, chegou a R$ 108,25, acima dos R$ 106,95 de julho e dos R$ 97,42 de setembro.

Naquele período aflorou a crise cambial. Seria ficção ou a valorização do real foi um erro? As importações saltaram de US$ 2.535 milhões em julho de 94 para US$ 4.611 em dezembro e US$ 4.895 em maio de 95. As exportações caíram de US$ 4.282 em setembro para US$ 2.952 em fevereiro.

O saldo comercial, de US$ 1,5 bilhão em agosto, desapareceu a partir de novembro de 94, tendo chegado a um déficit de US$ 1 bilhão em março de 95.

Como se vê, estavam certos os que anteciparam os efeitos negativos da excessiva dependência da âncora cambial como instrumento antiinflacionário, o que levou o governo a duas alterações de política no primeiro semestre de 95.

Estavam certos, também, aqueles que anteciparam a única saída viável para o impasse em que o Plano Real estava no último trimestre de 94. Contrair a demanda agregada, por intermédio de controles de crédito e da explosão dos juros.

Estavam certos, ainda, os que previram a forte contração econômica, com repercussões drásticas no crescimento econômico, nos investimentos e na taxa de emprego.

Ainda mais evidente foram os erros cometidos na política monetária. Os meios de pagamento cresceram 220% entre julho e dezembro de 94. Remonetização, aumento de demanda por moeda? Pode ser. Mas perdeu-se uma oportunidade de firmar-se a âncora monetária para auxiliar a estabilização. A correção de rumos começa em janeiro de 1995. Mas até maio a expansão dos meios de pagamento acumula taxa de 122% após o Real.

No último trimestre de 94, começou-se a antever que a reindexação da economia seria inevitável, com a ameaça da reinflação. O problema está na pauta do dia. O governo encontra dificuldades para extirpar a indexação.

As tarifas públicas ainda são discutidas segundo a velha lógica inflacionária, calculando-se os atrasos tarifários em relação aos índices de preços. A agenda de reajustes das tarifas públicas parece inevitável. Alarmismo? Fracassomania? Ou um grito de alerta para que se iniciem, urgentemente, as reformas constitucionais capazes de mudar a lógica da indexação?

Privatização, reforma administrativa do setor público, busca de maior eficiência e redução do "custo Brasil" são as alternativas disponíveis. Como evitar a indexação, se já se anuncia para julho taxas de inflação próximas de 4%?

Há que se avançar nos fundamentos da estabilização. O ajuste fiscal não foi feito. O arrocho nos gastos públicos serve apenas para degradar a qualidade e disponibilidade de serviços públicos.

Enquanto as reformas tributária, previdenciária e administrativa do setor público não forem aprovadas e implementadas, a contração econômica continuará sendo a única alavanca disponível para evitar a alta da inflação.

Vontade de enterrar ou vontade de ajudar? Há como negar que a queda do monopólio da Petrobrás só será efetiva se o governo desejar fazê-la? As evidências são contrárias a isso, já que, após a reforma, a estatal acabou angariando simpatia e compaixão até dos mais altos mandatários brasileiros. Hoje, o governo pode acabar com o monopólio. Mas quer fazê-lo?

Se o Plano Real vai bem e tem conseguido superar, com dificuldades e sacrifícios, algumas das armadilhas que proliferam no campo da estabilização, em parte isto se deve ao alerta dos "coveiros".

Quase todas as críticas levantadas eram verdadeiras. Se seus efeitos indesejáveis não se fizeram sentir, não foi por erro de avaliação dos controladores de qualidade, mas sim pela adoção de medidas corretivas adotadas, tempestivamente, pelo governo. Quem sabe, atiçado pelas críticas dos "coveiros".

 

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA).

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