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  • Marcos Cintra

Posse da terra urbana

O problema habitacional para as camadas populares de baixo poder aquisitivo tem desafiado continuamente os responsáveis pelo planejamento urbano no Brasil. Tomando o caso de São Paulo como exemplo, verifica-se a situação calamitosa que hoje enfrentamos como resultado de medidas supostamente de cunho social, mas que, no entanto, resultaram em um crescente contingente populacional carente de habitação. Pressionados pelo desemprego, alto custo de vida refletido em reajustes de aluguéis por vezes superiores ao reajuste efetivo de salários, e pela angústia pessoal resultante de uma situação econômica conjuntural pouco encorajadora, segmentos significativos da população da periferia de São Paulo têm sido protagonistas de invasões de propriedades públicas e privadas.


Comovidos, temos assistido ao drama pessoal dessas famílias, que, vendo-se destituídas da possibilidade de teto e abrigo, direito primário da pessoa humana, se veem compelidas a desafiar o mais básico dos princípios do sistema econômico e social em que vivemos, ou seja, o direito da propriedade. Nunca na história da cidade de São Paulo o problema do favelamento e, agora, da invasão de áreas públicas e privadas, foi tão grave, e isso resulta de um problema fundamental, o da falta de habitação. Sabe-se que a área da grande São Paulo poderia acomodar um número de habitantes igual a, pelo menos, duas vezes sua atual população. Isso se deve à existência de áreas não aproveitadas que pressionam a cidade a expandir suas fronteiras mais do que o mero crescimento populacional exigiria, sobrecarregando sobremaneira a criação de infraestrutura urbana e de transportes, além de causar uma enorme ineficiência em termos de uso de combustível e de tempo do trabalhador.


Indiscutivelmente, tais áreas inexploradas se constituem em clássicos exemplos da alegada especulação imobiliária ou do uso antissocial do direito de propriedade. Seus titulares estariam, supostamente, retirando o uso das mesmas do mercado, reduzindo a oferta e, à espera de infraestrutura urbana disponibilizada pelos poderes públicos ou por particulares, estariam pressionando o preço das mesmas para cima. Desta forma, incorporam às mesmas valor não gerado pela atividade produtiva e socialmente desejável de seus proprietários, mas sim, redistribuem, em seu benefício, excedente gerado por terceiros.


Sem dúvida, parte das áreas urbanas inexploradas assim permanecem pelas razões acima descritas. Por outro lado, uma outra parte dessas propriedades permanece inexplorada devido à política urbana e habitacional selecionada por nossa tecnocracia governamental, ou seja, a eleição dos conjuntos residenciais como solução para o problema habitacional. Tal escolha de alternativa de política de habitação foi feita em contraposição, e com o claro objetivo de estancar o processo tradicionalmente adotado de produção de habitações nos centros urbanos brasileiros, ou seja, o binômio loteamento/construção residencial individual, para substituí-lo pelo modelo integrado do tipo de conjuntos residenciais à la BNH.


Em contraposição, portanto, a um sistema de investimento gradativo, baseado não só na paulatina poupança financeira para a aquisição do lote e de material para início de construção, mas também calcado no trabalho familiar e no sistema de mutirão, tão comuns em nossa história urbana, criou-se uma solução tecnocrática de produção em massa, baseada exclusivamente na poupança financeira do adquirente. As restrições impostas ao loteamento, como forma de parcelamento e uso do solo urbano, têm produzido uma política profundamente elitista, alienando toda faixa populacional de baixa renda do direito da propriedade de lotes urbanos residenciais.


Já em 1972, com a Lei 7805/72, nosso então prefeito declarava abertamente que São Paulo precisava parar. A Lei 6766 de 1979, o projeto de Lei n.° 3499/80, em tramitação no Congresso, e as restrições e exigências impostas pela quase totalidade dos municípios do Estado de São Paulo à aprovação de loteamentos refletem, claramente, a opção contra o modelo de loteamento e de autoconstrução residencial em favor de pacotes urbanísticos dotados de toda infraestrutura urbana como rede de esgoto, captação de águas pluviais, guias e sarjetas, vias asfaltadas, iluminação pública e até colocação de hidrantes.


Esses equipamentos urbanos são exigidos do empresário loteador que, evidentemente, repassará seus custos, adicionados de uma margem de lucro, ao adquirente final do lote. Todas essas exigências, tão incompatíveis com o poder aquisitivo de nossas camadas populacionais de baixa renda, tiveram como único resultado a total impossibilidade da realização do sonho da casa própria em São Paulo.


Prova cabal deste processo elitista e excludente é que, desde 1972, somente 8 projetos de loteamentos foram aprovados em São Paulo, espaço de tempo em que a população paulistana mais do que duplicou. Ademais, segundo projeções das Nações Unidas, as grandes áreas metropolitanas brasileiras deverão se colocar entre as maiores do mundo. Em 1950, o Rio de Janeiro, com 2,9 milhões de habitantes, e São Paulo, com 2,5 milhões de habitantes, situavam-se respectivamente em 16,° e 23.° lugares dentre as 50 maiores áreas metropolitanas do mundo. Em 1975, São Paulo passou a 6.° lugar, com 10 milhões de habitantes, e o Rio de Janeiro passou para o 13.° lugar, com 8,3 milhões de habitantes. Previsões para o ano 2000 colocam São Paulo em 3.° lugar dentre as áreas metropolitanas mais populosas do mundo, com 26 milhões de habitantes, o Rio de Janeiro em 6.° lugar, com 19,4 milhões, e Belo Horizonte em 44.° lugar, com 5,7 milhões, colocando o problema habitacional urbano brasileiro como um dos mais sérios a serem solucionados nos próximos 20 anos.


Permanece a questão: como o problema habitacional tem sido atacado? Infelizmente, a resposta é que ele ainda não foi resolvido, e o resultado tem sido a constatação de fatos como índices alarmantes de favelamento, altos aluguéis resultantes de uma demanda que tem se expandido mais do que a oferta de residências e a existência de milhares de loteamentos clandestinos e/ou irregulares.


Embora as exigências de instalação de equipamentos urbanos resultem de louváveis cuidados com a saúde e conforto públicos, deve-se reconhecer que ainda somos um país pobre, cuja renda per capita, além de desigualmente distribuída, é apenas 49,5% da média levantada pela ONU em 1979. A tecnocracia brasileira esquece, com inusitada frequência, o fato de que nossa renda per capita é aproximadamente igual à da Argélia, Equador, Jamaica e tão somente 43% da de Barbados, 49% da de Chipre, 63% da do México, 60% da de Costa Rica e 72% da renda per capita da Malásia. Esse tipo de "wishful thinking", julgando-nos mais abastados do que somos, impondo soluções urbanísticas utópicas e insustentáveis, chegando mesmo às raias do jocoso, como a exigência de colocação de hidrantes em localidades ainda sem corpo de bombeiros, só pode ser lamentado quando se considera o fato de que a drástica redução da oferta de lotes residenciais em São Paulo não impediu sua população de duplicar em curto espaço de tempo. Igualmente, as exigências, em nome da saúde pública, de colocação de infraestrutura como água encanada, rede de esgotos, pavimentação etc., não têm impedido crescentes contingentes populacionais favelados de habitarem em núcleos sem qualquer precaução de ordem sanitária e com densidade populacional muitas vezes superior à de qualquer loteamento popular.


Vemos, então, que a preocupação louvável, porém extemporânea, do legislador só tem agravado os males que se desejava combater. Ao invés de se buscar uma solução compatível com nosso nível de renda, utilizando tecnologia intermediária disponível, as exigências impostas ao parcelamento do solo urbano têm compelido as camadas populacionais de baixa renda a se favelarem e a viverem no mais completo abandono em termos de saúde pública e demais equipamentos urbanos.

 

(Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.)


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